30 novembro 2006

amanhã, outra vez

Leaving Songs
by Stuart A. Staples

Stylus Magazine
Leaving Songs sounds a lot like a Tindersticks album, one that eschews their more baroque offerings for mature balladry.

All Music Guide
He emerges here as a more "traditional" kind of songwriter; the tunes are more conventional in structure, but like his spiritual mentor Leonard Cohen, Staples' lyrics are rooted firmly in the terrain of love, loss, regret, passage, dissolution, and absence.

Delusions of Adequacy
Its warmth, honesty and intuitive sensitivity capture Stuart Staples firmly back to the dizzy high-quality heights of his cherishable early-career with the Tindersticks.

Uncut
Stately, thoughtful balladry.

musicOMH.com
If you loved Tindersticks then you will adore this.

Mojo
It might have been captured anytime in the past four decades.

New Musical Express
It's heady stuff, that fans of Serge Gainsbourg, Nick Cave, Scott Walker and anyone else that's ever sung miserable songs in a rumpled suit will be at home with.

Pitchfork
As a solo record, it's no declaration of independence, but by sticking to what he does best, Staples makes it ring with sadness and sophistication.

PopMatters
Not surprisingly, this record sounds very much like a Tindersticks album. Or, rather, it sounds like a well-chosen compilation of that band’s more restrained and subdued material.

Tiny Mix Tapes
It's a pleasure to be embraced by a record this pretty and soulful.

29 novembro 2006

poesia apenas

um amor largado às sombras,
irreconhecível
até de perto.

josé tolentino mendonça

28 novembro 2006

1 mês e 45 posts depois..

fez no sábado, dia 25, um mês que iniciei a minha actividade pro-bloguista (pro de 'profissional', no sentido de interesse continuado e obedecendo a um certo canône - e não necessariamente de 'a favor de').

o debate sobre os blogs está na ordem do dia, existindo já algumas primeiras peças de reflexão sobre o tema, debates (!) sobre a deontologia e a ética dos blogues, etc. o douto dr. pacheco pereira já se debruçou sobre o assunto nas suas colunas de jornal, isto para não falar dos próprios bloguistas de linhagem mais intelectual, que não raras vezes entram numa espécie de discurso sobre o próprio discurso. um pouco como este vosso amigo, neste preciso e exacto momento.

gosto particularmente de dois eixos da discussão, a saber: i) o blog como substituto da vida vivida (se dermos de barato que ela equivale a uma espécie de realidade); ii) a (não-) cultura democrática, bem visível na falta de um código de conduta universal e ancorado em valores directamente associados aos conceitos de república e de democracia (na sua acepção moderna e ocidental).

que vos posso dizer, da minha experiência pessoal:

* que o blog é uma extensão do que somos, mas raramente uma identidade forjada na sua essência. um blog pode ampliar a intensidade dos nossos traços de personalidade, ou revelá-los (nos casos de sujeitos menos expansivos na sua normal interacção diária), mas não é susceptível de construir uma persona alternativa. conheço poucos bloguistas, mas conheço mais do que um - em todos, ao ler os seus posts, encontro uma linha (directa ou ziguezagueante, mas sempre numa certa direcção, mais atalho menos desvio) de continuidade;

* uma leitura comum dos blogs radica (e aqui chegados há que fazer um pouco de arquelogia dos media) no perigo da substituição da interacção social clássica (face a face) por formas de comunicação dinâmica que são intermediadas por meios tecnológicos que promovem a descontinuidade (espacial, temporal, de linguagem) entre sujeitos; quer-me parecer que esta linha de argumentação é compreensível, sendo legítima herdeira das discussões em torno do impacto sociológico (e psicológico) da internet, do mail, dos chat rooms, etc. no meu caso pessoal, a tentação não é bem a de usar um blog como 'substituto da realidade' - é muito mais a tentação de olhar excessivamente para o espelho, de uma forma em que o espelho nos devolve os abismos da nossa alma, com uma nitidez que obriga a olhar, olhar, olhar. se assim é, não podemos ignorar que 'o que vemos de nós' não é 'anulável em nós'. por outras palavras, a geração bloguista pode ter, em tese, um sentido de auto-consciência muito mais apurado do que, digamos, há 10 ou 20 anos (ceteris paribus, tudo o resto constante). ora a auto-consciência interpela ou ensimesma: obriga-nos a agir ou a reagir pela inacção (ensimesmamento - fechar-me em mim). acho, pessoalmente, que este é um efeito ainda não suficientemente debatido, mas que, numa lógica mais psicologista, fará o seu caminho a médio-prazo;

* o tema (mais visível para quem tem contacto regular com blogs e com a actividade de posting) da existência ou não de cultura democrática na blogosfera é o outro grande eixo de debate. aqui imperam três escolas de pensamento: os bloggers ferozmente personalistas (que acham que o seu blog é um irredutível domínio privado, podendo geri-lo a seu bel-prazer, incluindo censura activa de posts colocados, respostas em jeito de 'sai do meu quintal, antes que'); os bloggers que aceitam que a sua caixa de correio pública (exceptuando-se junk e.mail, por exemplo) deve transmitir fielmente aquilo que foi escrito por terceiros e como foi escrito, não actuando portanto como publishers/editors dos posts; e aqueles que nem sabem do que estamos a falar ;-).
[comentário lateral: esta terceira tipologia existe sempre, qualquer que seja o debate - temo que, se votasse, ganhava todas as eleições.];

* talvez haja uma correlação entre o tipo de abordagem aos blogs (porque escrevo, o que escrevo) e a forma de gerir o interface entre espaço privado e espaço público (como escrevo, que linguagem uso, como interajo, como uso o poder coercivo que me foi institucionalmente atribuído); se a anterior correlação está por provar, sendo mera intuição, já me parece que um bloguista, no fundo do fundo, age e interage (selecciona, escreve, responde, edita, silencia, etc.) de forma consequente com aquilo que é como indivíduo. o anonimato funciona como desinibidor, catalizador, factor de exponenciação (ao jeito do álcool e de outros 'estimulantes' nocturnos, por exemplo), mas não de definição estruturante do que quer que seja.

depois desta digressão mais ou menos académica, os meus bons amigos (os meus bons leitores) dir-me-ão: 'oh pá, para a próxima mais vale ler directamente o http://abrupto.blogspot.com !'
. entendo o reparo, mas calma que ainda não me fui embora da minha 'torre de controlo'! (lá está, a linguagem a definir o conceito..)

1 mês depois, 45 posts depois, devo dizer-vos que:

a) é bom escrever (sim, é uma forma de auto-ajuda, não há que ter vergonha);
b) é bom partilhar, aqui e ali, 'coisas que valem a pena', citações espectrais ('fractais'), inquietações;
c) um blog pode ser um 'caleidoscópio' de emoções, estados de espírito, usando criativamente pequenos estímulos para criar alguma beleza estética e, com sorte, um bocadinho de rigor ético (em nós e nos outros);
d) como em nossa casa, sabe bem receber os amigos, franquear portas, servir um cafézinho, ficar na conversa com quem nos visita - exercer o supremo magistério da amizade cordial e substantiva;
e) um blog obriga-nos a olhar para dentro de nós. tem riscos, admito (ver as minhas próprias palavras uns parágrafos acima). mas, por vezes, há que correr certos riscos para evitar correr outros (teoria pragmática do mal menor - não gosto, mas tem que ser);
f) um blog vale a pena enquanto valer a pena e enquanto fizer sentido no todo que somos. não por acaso, há blogs que acompanham certas fases da vida dos seus autores. é assim mesmo, não tem que enganar (principalmente, quando falamos de blogs de um só autor e que não são de 'pura divulgação').

termino com 2 perguntas, muito simples:

1. comentários ao que escrevi ?
2. o que gostariam de ver (ou ver mais vezes) nascer neste jardim d'inverno ?

muito obrigado pela v/ atenção.

fractais IX

o amor não se define; sente-se.

nunca a fortuna põe um homem em tal altura que não precise de um amigo.

a parte mais importante do progresso é o desejo de progredir.

ninguém é tão velho que não espere que depois de um dia não venha outro.

alguns [chefes] são considerados grandes porque lhes mediram também o pedestal.

foges em companhia de ti próprio: é de alma que precisas de mudar, não de clima.

apressa-te a viver bem e pensa que cada dia é, por si só, uma vida.

lucius annaeus seneca
roma antiga, [-4, -65], filósofo, escritor

in memoriam

e em todo o caso
há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar

já todos sabemos que morreu mário cesariny. como quase sempre, de súbito parece que era um autor acarinhado pelas nossas gentes, a julgar pelos destaques na imprensa do costume, pelos telejornais do costume, pelo costume do costume.. não era. e é pena.

não conheço a sua obra a fundo. fui e sou apenas um leitor bissexto, alguém que se foi cruzando com as suas palavras - algumas 'faróis iluminantes', algumas 'estacas cravadas em pleno peito'. mas sempre incomuns, sempre criativas, sempre desafiantes, quase sempre certeiramente certas.

mário cesariny, um dos últimos surrealistas vivos (sobrevivo a si próprio), tocou-me ao de leve várias vezes. deixou sempre qualquer coisa, o que é deixar muito.

há anos atrás, ao ler uma entrevista com/um artigo sobre cesariny, dado ao 'mil folhas' (suplemento do jornal 'público'), deparei-me com 2 frases minimais, que ainda hoje guardo como aforismos para a vida:

a vida é bela. comecemos

ama como começa a estrada

na sua simplicidade, são frases que contêm um desafio radical e ontológico, expressões-manifesto-repto que encerram em si um programa e uma ética de vida. são exigentes, porque nos interpelam e precisamente exigem de nós uma resposta (de nós para nós). não há meios-termos, não há fuga possível, há que - uma vez lidas - seguir em frente, levando-as na nossa 'bagagem de coração'.

a primeira vez que reparei 'a sério' no mário foi nesse meteoro que foi o cd de poesia musicada editado pela assírio & alvim (de nome 'entre nós e as palavras' - título retirado precisamente do primeiro verso do poema de cesariny 'you are welcome to elsinore'), no qual se escutava, entre as vozes de herberto helder, luiza neto jorge, al berto, antónio franco alexandre, e mais uns quantos moicanos da palavra, o próprio cesariny dizendo alguns dos seus poemas mais emblemáticos. deixo-vos dois deles:

1. You are welcome to Elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício


Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição


Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras noturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar


2. Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura


Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra


por entre a espuma molhada destes dias cinzentos, pareceu-me ouvir um lamento em surdina - pouca gente no velório, não muita gente no funeral.

eu vou lá hoje, ao cemitério dos prazeres.
porque é preciso dizer EU em vez de dizer ELES.

24 novembro 2006

bom fim-de-semana

morrer de amor
ao pé
da tua boca

desfalecer
à pele do sorriso

sufocar de prazer
com o teu corpo

trocar tudo por ti
se for preciso

mª tereza horta

---

há sem dúvida quem ame o infinito,
há sem dúvida quem deseje o impossível,
há sem dúvida quem não queira nada.
três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
porque eu amo infinitamente o finito,
porque eu desejo impossivelmente o possível,
porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
ou até se não puder ser...

álvaro de campos

de tudo, para todos..

25.11.2006 Ed Harcourt/Sparklehorse, Festival Para Gente Sentada (Santa Maria da Feira)
25.11.2006 Adam Green, Clube Lua (Lisboa)
01.12.2006 Blixa Bargeld, Teatro Municipal (Guarda)
01.12.2006 Stuart Staples, Aula Magna (Lisboa)
02.12.2006 Lisa Germano, Santiago Alquimista (Lisboa)
04.12.2006 Cat Power, Aula Magna (Lisboa)
10.12.2006 Lambchop + Hands Off Cuba, Aula Magna (Lisboa)

cortesia: http://www.flur.pt

23 novembro 2006

fractais VIII

'all truth passes through three stages. first, it is ridiculed. second, it is violently opposed. third, it is accepted as being self-evident.'

arthur schopenhauer

(especialmente verdade quando lida em português, digo eu)

fractais VII

uma verdade universal:

'os nossos amigos conhecem-nos na prosperidade. nós conhecemos os nossos amigos na adversidade.'

john churton collins
inglaterra, [1848-1908], educador/ensaísta

22 novembro 2006

one evening with an old friend

perfect skin
rattlesnakes
are you ready to be heartbroken
jennifer she said
no blue skies
music in a foreign language
my other life
no more love songs
grace
how wrong can you be

há 'músicos', 'bandas'.. esmagadore(a)s.
há 'músicos', 'bandas'.. bigger than their sound.
há 'músicos', 'bandas'.. seminais.
há 'músicos', 'bandas'.. de um lirismo arrebatador.
há 'músicos', 'bandas'.. absolutamente singulares.

e há aqueles 'músicos', aquelas 'bandas' que nos oferecem subtileza, autenticidade despojada de artifício, simplicidade que comove.

we will never be ready to be heartbroken, mr. cole;
but we have always been around for you and we WILL always be.

20 novembro 2006

caleidoscópio: C

(com dedicatória)

a partir da última fila de cadeiras, a aula parecia sempre um filme em 'slow motion' - como se, ganhando vida própria, se fixasse numa permanente dúvida: fazer parte da realidade ou continuar numa espécie de limbo, algures a meio caminho entre realidade e ficção.

a. gostava de escrever e gostava da tensão agradável que aquelas aulas lhe causavam. um bocadinho à maneira das primeiras aulas do seu tempo de estudante-mesmo-estudante, o 'frisson' da descoberta de matérias, professores, colegas (ou da simples rugosidade táctil do tampo da mesa que lhe havia calhado em sorte dessa vez). anos depois, revivia interiormente essa espécie de fogo manso que teimava em persistir ('há coisas que serão sempre iguais' - lembrava-se perfeitamente deste pensamento recorrente).

o curso de 'filosofia holística' apareceu-lhe por acaso, na figura de um papelito colorido em que o seu olhar pousou, certo dia em que passeava vagarosamente pelas alamedas de granito da sua cidade. foi um passo até estar ali, sentada outra vez, menina-colegial de caderno por estrear bem espraiado à sua frente. a. era uma pessoa elíptica, viajava frequentemente entre dois pontos, pouco recordando da distância física ou temporal ou psicológica entre os dois. era o contrário de bruce chatwin, esse moderno nómada-escritor (ou escritor-nómada?) que, havia lido algures, proclamava a beleza essencial do hiato entre partir e chegar. era, pois, com uma naturalidade desarmante que se lembrava do papelito colorido, varrendo da sua memória coisas tais como telefonemas, propinas, e palavras (úteis mas inestéticas) como secretaria. o que lhe interessava era que estava ali, e que antes tinha estado lá. era tudo o que importava.

a meio desse dia, a professora de ocasião (monitora, dizia no plano do curso, afixado à porta da sala), pediu àquela dúzia de alunos (adultos em modo de 'search for a meaning' ou tão-só em intervalo entre dois estados de conforto) para fazerem um exercício especial: deveriam sair à rua e simplesmente seguir alguém durante um par de horas. registariam num caderninho, vermelho e discreto, que lhes foi distribuído, o mundo interior da pessoa que observassem - a partir do estímulo externo e visível, construíriam a identidade e o estado de alma. 'parecia fácil ou difícil ?' - perguntou a monitora-professora. ninguém respondeu.

algumas horas depois, de regresso àquela remediada sala de aulas, o grupo preparava-se para, em monólogos sucessivos, contar a história e as estórias dos sujeitos que, por um acaso (por certo), cada qual havia seleccionado como 'objecto de estudo'.

a. falou então. contou a história de um homem, sózinho numa esplanada, com um jornal aberto numa estranha diagonal, bebericando um café (parecia-lhe, que a distância era grande) e escrevinhando num bloquito, de quando em vez. por vezes, tinha a sensação de o homem fazia vôos razantes com o olhar, uma espécie de 'travelling' sincopado. 'procuraria algo ?' - pensou, mais do que uma vez.

a. continuava a sua exposição, perante uma turma visivelmente interessada. era um homem de meia-idade, solitário. um homem ainda não velho, e já não claramente novo. um homem que, por entre notícias de algibeira, fazia o balanço da sua vida, como se procurando um ângulo que, improvavelmente, lhe revelasse um sentido. a. descobriu-lhe uma biografia sumária, mas impressiva - 'um homem na cidade', lembrou-se desse título de romance de um autor português pouco na moda. a. ia falando com desenvoltura crescente, alguns colegas comentaram entre si que parecia mesmo que a. acreditava na estória que estava a contar.

semanas depois, numa outra aula do mesmo curso, a monitora-professora, pediu à mesma dúzia de alunos que fizessem um novo exercício prático. desta feita, munidos de um jornal e de um cadernito preto que lhes foi distribuído, deveriam sentar-se numa esplanada próxima - havia dezenas de esplanadas próximas - e procurar alguém que, com um cadernito vermelho entre mãos, parecesse observar fixamente alguém ou alguma coisa (quem sabe, eles próprios). deveriam, a partir do que viam, inventar uma 'persona', uma 'vida'. e deveriam escrever, a partir daí, sobre o que estaria escrito no tal cadernito preto, a partir daquilo que agora sabiam e daquilo que ainda não sabiam.

a. sentiu-se zonza. observador-observado, caçador-caçado, 'o homem como lobo do homem' (das velhas aulas de ciência política), tudo lhe sobreveio e ao mesmo tempo. afinal, semanas antes, enquanto observava era observada; enquanto inventava era inventada. e essa sua biografia alternativa estaria algures, apontada (e corrigida, afinada, riscada por certo em trechos) no caderninho de um homem de meia-idade que, por um acaso certo, se tinha inscrito num curso similar algumas semanas antes. sentiu-se estranha. sabia que era justa essa espécie de reciprocidade, mas agora pagava, literalmente, para ter acesso ao cadernito dessa homem a que chamou 'um homem na cidade'. afinal, talvez ele a tivesse re-inventado e nesse processo a tivesse tornado uma mulher feliz.

estava nestes pensamentos, havia ficado para trás na azáfama da saída da turma para a rua, quando a professora-professora a interrompeu, tocando-lhe levemente no braço. 'se estava tudo bem ?' - perguntou -; 'que não se assustasse com os exercícios, faziam parte de um processo a que se chama 'a alteridade em mim', que era normal a surpresa' - acrescentou.

a. não conseguiu evitar perguntar sôfregamente 'professora: o que disse aquele homem sobre mim, o homem que eu observei, e que agora, vejo-sinto-sei, me observava a mim ?'.

a professora-professora sorriu, daquela forma maternal que só uma professora-professora sabe sorrir, e respondeu: 'sabe, a., as regras éticas não me permitem entrar em pormenores, seria contra a deontologia da minha profissão. mas anos e anos a ensinar filosofia holística ensinaram-me que não existe uma ética da felicidade, existe um imperativo da felicidade. e esse imperativo diz-me que lhe devo mostrar aquilo que estava escrito no cadernito do seu, digamos, colega'. tirou então de uma gaveta uma folha quase em branco que dizia:

'cara professora, no momento em que escrevo, observo uma rapariga que me parece observar a mim. reparo no cadernito (que reconhecço) sobre o seu colo, vejo-a perfeitamente fazendo de mim - em espelho -, umas semanas depois de eu ter estado ali. invento-lhe uma história, uma vida, uma biografia ? ou simplesmente encontro o seu olhar ? vou inventar-lhe uma história, está decidido. chama-se ' uma mulher na cidade' - assim mesmo, sem ponto final. é uma história que, em vez de falar do passado, fala de futuro. talvez este futuro comece daqui a umas semanas ou daqui a uns meses. mas ela ainda não sabe, porque ainda não pode saber.
peço-lhe, cara professora, que lhe mostre estas palavras, quando achar que é o tempo certo. ela que faça delas o que quiser, mas que note bem que é ela própria que está nelas. e, de certa forma, um seu futuro.
sei que a desiludo ao abandonar aqui o curso - não era minha intenção que a vida entrasse pelo curso dentro, assim desta maneira.
respeitosamente, nome ilegível'

a. releu as palavras a uma velocidade vertiginosa. em micro-segundos as letras estavam já incrustadas em si, poderia repeti-las numa lenga-lenga contínua, que não se equivocaria numa palavra, na pontuação, (quase juraria) na entoação.

a. queria saber quem era aquele homem de meia-idade. parecia-lhe, de repente, que era a única coisa que importava. a professora-definitivamente-professora, sorriu para si, daquela forma discreta que distingue a aristocracia da alma de outras nobrezas mais pedestres. disse-lhe baixinho 'a., tome o seu tempo; se e quando quiser, escreva qualquer coisa. eu cuidarei de fazer chegar as suas palavras ao destinatário certo'. a. pegou numa esferográfica barata e escrevinhou

'o meu nome é a. li a sua mensagem, tal como a fez chegar à (nossa) professora. estarei na esplanada de sempre no próximo sábado. traga os caderninhos vermelho e preto, por favor. eu levarei os meus. até lá. a.'

no sábado seguinte, cedo, alguém observava, a uma distância segura, duas pessoas (homem e mulher mais jovem) numa esplanada que ainda bocejava. num caderninho de capa vermelha, lutava consigo para interpretar os estímulos exteriores de um par e, a partir deles, inventar uma história de amor (tinha sido esse o desafio proposto na sala de aula). como quem observa pássaros - sabendo que tem que saber esperar mas que vale sempre a pena esperar -, registou uma dança curiosa: por entre chávenas de cafés e jornais matutinos, aquele homem e aquela mulher pareciam trocar entre si uns livrinhos pequeninos e coloridos. reparou especialmente quando ele tocou no cabelo dela, porque nesse momento lhe pareceu que o azul do céu estava - coisa infantil! - mais azul.

horas depois, de frente para os seus onze colegas de ocasião e perante uma professora-professora, contou a sua história, a história deles - aquele homem e aquela mulher, sob o céu de inverno.

disse:
'chama-se: nesta cidade';
e continuou:
'não há muito a dizer sobre a maior parte das grandes histórias de amor'.

fechou o cadernito e saiu porta fora. o céu de inverno continuava azul, profundamente azul, como se fosse verão. verão ali e agora, verão aqui e agora, verão agora, verão aqui. verão para sempre.

19 novembro 2006

homesick blues (just like a woman)

Nobody feels any pain
Tonight as I stand inside the rain
Ev'rybody knows
That Baby's got new clothes
But lately
I see her ribbons and her bows
Have fallen from her curls.
She takes just like a woman, yes, she does
She makes love just like a woman, yes, she does
And she aches just like a woman
But she breaks just like a little girl.
Queen Mary, she's my friend
Yes, I believe I'll go see her again
Nobody has to guess
That Baby can't be blessed
Till she sees finally that she's like all the rest
With her fog, her amphetamine and her pearls.
She takes just like a woman, yes, she does
She makes love just like a woman, yes, she does
And she aches just like a woman
But she breaks just like a little girl.
It was raining from the first
And I was dying there of thirst
So I came in here
And your long-time curse hurts
But what's worse
Is this pain in here
I can't stay in here
Ain't it clear that-
-I just can't fit
Yes, I believe it's time for us to quit
When we meet again
Introduced as friends
Please don't let on that you knew me when
I was hungry and it was your world.
Ah, you fake just like a woman, yes, you do
You make love just like a woman, yes, you do
Then you ache just like a woman
But you break just like a little girl.

bob dylan

(ouçam esta canção, no original dylaniano, ou na versão, mais despojada, de jeff buckley. é como escolher entre o céu ou o mar - escolher para quê ?)

17 novembro 2006

bom fim-de-semana

é preciso dizer rosa em vez de dizer ideia

é preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem
é preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora


mário cesariny

aos amigos

amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
-temos um talento doloroso e obscuro.
construímos um lugar de silêncio.
de paixão.


herberto helder

libera me

livrai-me, Senhor,
de tudo o que for
vazio de amor.
que nunca me espere
quem bem me não quer
(homem ou mulher).
livrai-me também
de quem me detém
e graça não tem,
e mais de quem não
possui nem um grão
de imaginação.


carlos queirós

16 novembro 2006

polaroids de figuras vivas

..hoje acordei assim.
apetece-me escrever; mas não consigo escrever.
apetece-me levantar vôo; mas faltam-me as asas - e o resto.
hoje acordei assim. 'transformei-me nisto' - no sentido em que gregor samsa, naquela imprecisa manhã, se tinha 'transformado naquilo'.
fui à gaveta dos fundos e encontrei-o(-me).

(hoje o meu nome é douglas coupland, uma formulação radical de mim)

You see, when you're middle class, you have to live with the fact that history will ignore you. You have to live with the fact that history can never champion your causes and that history will never feel sorry for you. It is the price that is paid for day-to-day comfort and silence. And because of this price, all happinesses are sterile; all sadnesses go unpitied.
Your own nature will triumph. We are all born with our natures... And I think back over my life and I realize that my own nature -the core me- essentially hasn't changed over all these years. When I wake up in the morning, for those first few moments before I remember where I am or when I am, I still feel the same way I did when I woke up at the age of five.
Time ticks by; we grow older. Before we know it, too much time has passed and we've missed the chance to have had people hurt us. To a younger me this sounded like luck; to an older me this sounded like a quiet tragedy.
Technology does not always equal progress.
I thought that intimacy with another soul was the closest I could ever come to leaving my body.
When you're young you always feel that life hasn't yet begun...But then suddenly you're old and the scheduled life didn't arrive.
I realized a capacity for not feeling lonely carried a very real price, which was the threat of feeling nothing at all.
Is feeling nothing the inevitable result of believing in nothing? ...I thought it would be such a sick joke to have to remain alive for decades and not believe in or feel anything.
I realized that once people are broken in certain ways they can't ever be fixed, and this is something nobody ever tells you when you are young and it never fails to surprise you as you grow older as you see the people in your life break one by one.
Compromise is said to be the way of the world and yet I find myself feeling sick trying to accept what it has done to me.
I'm trying to feel more well adjusted than I really am, which is, I guess, the human condition.
When you're in love, all of your doors are open, and all of their doors are open. And you roller-skate down your halls together.
The two of you start talking about your feelings and your feelings float outside of you like vapors, and they mix together like a fog. Before you realize it, the two of you have become the same mist and you realize you can never return to being just a lone cloud again, because the isolation would be intolerable.
I told Ethan that I speak in an unrestricted manner to animals -- things like, aren't you just the cutest little kitty... that kind of thing, which I wouldn't dream of doing to humans. Then I realized I wish I could.
I used to always think I had to have a reason to record my observations of the day, or even my emotions, but now I think simply being alive is more than enough reason.
Language is such a technology.
Destiny is what we work toward. The future doesn't exist yet. Fate is for losers.
At what point in our lives do we stop blurring? When do we become crisp individuals? What must we do in order to end these fuzzy identites - to clarify just who it is we really are?
We had all awakened X number of years past our youth feeling sleazy and harsh. Choices still existed, but they were no longer infinite. Fun had become a scrim, concealing the hysteria that lay behind it.
At twenty you know you're not going to be a rock star... by twenty-five you know you're not going to be a dentist or a professional... by thirty, a darkness starts moving in - you wonder if you're ever going to be fulfilled, let alone wealthy or successful... by thirty-five, you know, basically, what you're going to be doing the rest of your life; you become resigned to your fate.
Nobody believes the identites we've made for ourselves. I feel like everybody in the world is fake now - as though people had true cores once, but hucked them away and replaced them with something more attractive but also hollow.
There's nothing at the center of what we do.
Her friends have become who they've become by default. Their dreams are forgotten, or were never formulated to begin with.
There's a hardness I'm seeing in modern people. Those little moments of goofiness that used to make the day pass seem to have gone. Life's so serious now.
What's the point of being efficient if you're only leading an efficiently blank life?
If you're not spending every waking moment of your life radically rethinking the nature of the world - if you're not plotting every moment boiling the carcass of the old order - then you're wasting your day.


http://www.coupland.com

15 novembro 2006

pessoal & transmissível

hoje, pelas 19h10, TSF, carlos vaz marques reabre as portas do seu jardim para a voz cavernosa, profunda e quase demiúrgica de antónio lobo antunes.
não sou leitor de lobo antunes, não sou fã incondicional - faço já a minha (não) declaração de interesses.
porém, quando a inteligência encontra a sensibilidade, dá-se aquele fenómeno raro do qual se pode dizer (de alguém): 'fala como quem ilumina'.

antónio: fala-nos!

fractais VI

'Madrid revisited'

Não sei talvez nestes cinquenta versos eu consiga o meu propósito
dar nessa forma objectiva e até mesmo impessoal em mim
habitual
a externa ordenação desta cidade onde regresso
Chove sobre estas ruas desolada e espessa como esmiuçada chuva
a tua ausência líquida molhada e por gotículas multiplicada
0 céu entristeceu há uma solidão e uma cor cinzentas
nesta cidade há meses capital do sol núcleo da claridade
É outra esta cidade esta cidade é hoje a tua ausência
uma imensa ausência onde as casas divergiram em diversas ruas
agora tão diversas que uma tal diversidade faz
desta minha cidade outra cidade
A tua ausência são de preferência alguns lugares determinados
como correos ou café gijón certos domingos como este
para os demais normais só para nós secretamente rituais
se neutros para os outros neutros mesmo para mim
antes de em ti herdar particular significado
A tua ausência pesa nestes loca sacra um por um
os quais mais importantes que lugares em si
são simples sítios que em função de ti somente conheci
e agora se erguem pedra a pedra como monumento da ausência
Não vejo aqui o núcleo geográfico administrativo de um país
capital de edifícios centro donde emanam decisões
complexo de museus bancos jardins vida profissional turismo
que um dia conheci e não conheço mais
Aqui só há o facto de eu saber que fui feliz
e hoje tanto o sei que sei que sê-lo o não serei jamais
12 esta a capital mas capital não de um certo país
capital do teu rosto e dos teus olhos a nenhuns outros iguais
ou de um país profundo e próprio como tu
Madrid é eu saber pedra por pedra e passo a passo como te perdi
é uma cidade alheia sendo minha
é uma coisa estranha e conhecida
Abro a janela sobre o largo e o teatro onde estivemos
e onde na desdémona que vi te vi a ti
Não é chuva afinal que cai só cai a tua ausência
chuva bem mais real e pluvial que se chovesse
Mais do que esta cidade é só certa cidade que jamais houvesse
numa medida tal que apenas lá profundamente eu fosse
e nela só a minha dor como uma pedra condensada
de pé deitada ou de qualquer forma coubesse
uma cidade alta como as coisas que perdi
e eu logo perdi apenas conheci
pois mais que a ela conheci-te a ti
Foi de uma altura assim que eu caí
superior à própria torre desse hotel
por muitos suicidas escolhida para fim de vida
Não é esta cidade essa cidade onde vivi
onde fui ao cinema e trabalhei e passeei
e na chama do corpo próprio a mim sem compaixão me consumi
Aqui foi a cidade onde eu te conheci
e logo ao conhecer-te mais que nunca te perdi
Deve haver quase um ano mais que ao ver-te vi
que ao ver-te te não vi e te perdi ao ter-te
Mas a esta cidade muitos dão o nome de madrid

(mas a esta cidade muitos dão o nome de lisboa)

ruy belo

14 novembro 2006

fractais V

'escrevo como vivo, como amo, destruindo-me. suicido-me nas palavras.'

ruy belo


'Muriel'

Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido

ruy belo

hoje aprendi (o que já sabia (que sabia))

8h45 da manhã, radar sintonizada (nem precisava de dizer, não é?), lá apareço eu outra vez no 'em repeat' do dia. até aqui tudo bem, é giro, claro que gosto de me ouvir (moderamente, mas sim dá-me uma pontinha de satisfação).. simplesmente, não é que 'os malandros' editaram a minha voz gravada, de modo a bater certo com a canção que passaram e que não era a que eu tinha escolhido!?! apesar de ser do mesmo 'artista' (jens lekman), a canção ('you are the light') era um pudim euro-disco, com o seu quê de azeite (mais do que um fio!).. a milhas da canção que eu verdadeiramente seleccionei ('when i said i wanted to be your dog')

lição 1:
a confiança demora quase uma vida a ganhar-se; mas perde-se antes das 9h da manhã (ou a qualquer hora).

lição 2:
entre amador e profissional-profissional, há um longo continuum de possibilidades (falo da radar, claro está).

hora de almoço, de um dia cheio de trabalho. como é que se pode preparar uma 'apresentação estratégica' (!) em 2 dias (para uma pessoa que é assim como que o novo chefe do meu chefe - que já é importante, numa escala qualquer), quando estamos constantemente a ser convocados, interrompidos, solicitados, para mais não sei quantas reuniões e discussões - que, em bom rigor, nem deviam ser da nossa responsabilidade?

lição 3:
às vezes, a vida é uma espécie de 100 metros barreiras. mas ad eternum, ad nauseam. nestas alturas, o melhor é seguir o mote do joão loureiro de outros tempos e 'surrealizar por aí' - e por aqui, que é onde estou (e onde o surrealismo pode ser terapêutico).

lição 4:
isto de sermos profissionais e termos brio pessoal é uma armadilha dos diabos. como diria o 'special one': é um 'mind game' tramado, daqueles em que jogamos dos dois lados do tabuleiro. qual 'champions league', qual quê!!

13 novembro 2006

prazeres simples

cruzando a cidade à hora de almoço, sob um imenso céu azul mais forte do que a circunstância do lugar; a luminosidade esplendorosa deste sol de inverno banhando tudo e todos.
no rádio do carro, o sempiterno bowie, cantarolando 'chaaa, chaaa, chaaa, chaaa, chaaa, chaaanges!'.
se ele o diz (e com açúcar), quem sou eu para duvidar..?

hmp (His-Majesty-the-Poet)

enquanto comparava o dólar com o iene
o outro preferia escutar valerie etienne
a cantar no último disco dos two banks of four
sempre a bloomberg television
faça frio ou faça calor.

julgava o amor coisa perene?
tinha havido uma revolta no iémen do sul?
ouviu-se uma canção: come in and close the door.
tirou da estante yeats: a vision
e não conseguiu ler, estalava-se-lhe o coração de dor.

helder moura pereira, página 39, 'mútuo consentimento', assírio & alvim

--

quando as minhas, as tuas pernas
não andarem e ao horário marcado
os comboios partirem finalmente a desoras
da estação de s. pedro - e de todas as estações
até ao fim da linha - eu poderei finalmente
dizer de óculos escuros espreitando
sobre o vermelho do teu jornal meu deus
como eu te queria, como em sonhos
te sonhava rindo, só rindo, depois do tão pouco
prazer que as minhas mãos fora dos livros
te haviam de saber dar. esse meu livro
que nunca abro, esse meu livro que finjo ler
e afinal não, nunca, só tu e a paisagem marítima.

helder moura pereira, página 82, 'mútuo consentimento', assírio & alvim

fractais IV

'o sexo é conservador (pode ser rebelde, mas é conservador). o amor é revolucionário.'

francesco alberoni
in entrevista à revista 'pública', ontem, 12 de novembro

juventude (slow motion bossa nova)

algures por 2003, celso fonseca e ronaldo bastos gravaram um disco belíssimo - espécie de côte d'azur tropical, fixada para sempre num photomaton musical. o título (que podem ver como epígrafe deste post) é todo um programa: sim, é bossa nova; sim, parece slow motion; sim, andam por lá as cores, os sons, a textura da juventude, numa dança belíssima (mil fogos fátuos, iluminando o final de um verão que sabemos não voltar).

inscrita no cd, uma espécie de oração-ladaínha-pagã - sintam-na, sim..?

'matar a burrice com bossa. botar a sede pra secar. sentir a fruta se abrindo. arder nas nuvens. sonhar. olhar o pássaro cair. seguir a trilha além do ar. torcer a fala até falir. ouvir o tom ao pé do mar. beber num beco o anoitecer. negar a luz do seu olhar. morrer de rir até doer. luzir na dor sem envergar. içar as velas com a voz. dizer talvez pra confirmar. fundir a cuca só de um lado. deixar o zen arrepiado. colher os louros com as mãos. sair sorrindo de um lugar. nicas pros entes vazios. pisar as pedras dos rios. dormir. acordar em lumiar. dar um rolé na mancada. usar a expressão errada. reinventar o parangolé. lamber o prato. de agenda marcada, flanar. pegar o prazer no laço. amar. roer a corda pra viver. sumir do mapa até ficar.'

10 novembro 2006

caleidoscópio: B

havia semanas que ele não respondia às tentativas de contacto dela. o mail permanecia mudo, como que um museu de homenagem a esse antigamente; as sms esbarravam num muro de silêncio; nenhum registo surtia efeito. até esse dia.
esse dia meridiano viu uma sua última mensagem (ou pelo menos o que ela pensava ser a sua última mensagem) devolvida com meia-dúzia de caracteres adicionados. uma resposta simples e minimal não deixa ser uma resposta - lembra-se de ter pensado.
horas depois, por entre os jardins de um subúrbio de ocasião, trocaram as primeiras palavras em muitas semanas.
não demoram a chegar ao que os trouxera ali - o desencontro activamente promovido por uma das partes.
a medo, mas com uma certa dureza distante, ele confessou que tinha lido um artigo numa revista qualquer que contava como, nas grandes urbes, há pessoas - mulheres, no caso - que se dedicam a uma espécie de caça: predadoras em saltos altos e de tailleur imaculado que, parecendo procurar consolo, procuram outra coisa, junto de parceiros de ocasião, num carrossel frenético de estímulos, sensações, momentos. uma euforia perpétua e sensual, o eterno devir possível e acessível.
ele contou-lhe como o artigo o fez enrolar-se por dentro, afinal tudo (mas tudo!) encaixava com o perfil dela. uma sms recebida por engano há tempos e em tudo igual às que ela lhe costumava enviar, um comentário dúbio de um porteiro de hotel há ainda mais tempo, um conjunto de coisas que, vistas agora e em conjunto, pareciam fazer sentido. todo o sentido. o único sentido. daí a ter cortado o contacto foi um passo, uma reacção quase instintiva, misto de desconsolo, raiva, desilusão, renúncia. afinal, ela não valia a pena. afinal, ninguém vale a pena.
ela escutou-o atentamente. e falou. de sopetão, sem interrupção, contou-lhe como certos factos (como ele os apresentava) nem sequer eram factos ou, noutros casos, como as presumidas evidências não passavam de actos banais que apenas confirmavam o que ele já sabia dela (mas que subtilmente tinha optado por esquecer). falou-lhe de uma vida complexa e inverosímil, de como, pelo facto de existirem 'verdadeiros-homens-desviantes' (não ela!, não ele!) com direito a perfil psicológico e comportamental numa revista de ocasião, ela havia desenvolvido dentro dela uma espécie de zona de silêncio, como se os mundos paralelos em que vivia nunca se tocassem totalmente. um puzzle com espaços em branco por entre as peças, revelando o fundo, lá atrás - e portanto o artifício relativo de todos os puzzles, meras construções e não as ansiadas 'revelações'. isto explicava certas lacunas de informação que ele dizia ter sobre ela, e que ela sabia serem verdade.
ela falou com aquela ânsia urgente que dá autenticidade; ele ouviu, em silêncio primeiro, anuindo levemente depois, sorrindo finalmente.
o café foi tomado num ambiente já mais distendido. como se uma nuvem cinzenta se tivesse desvanecido, mesmo à frente deles, deixando apenas a memória.
o café, normalmente amargo, nesse dia soube-lhes especialmente bem - comentaram o facto um com o outro, nessa espécie de cumplicidade poética que interrompe qualquer banalidade.
ele recuperava o ânimo a olhos vistos - olhava-a agora como 'rapariga de novela' - a mocinha -, como por vezes lhe chamava.

foram felizes. tanto quanto os deixaram ser felizes. foram felizes, à sua maneira.

muitos anos depois, ela encontrou, por entre arrumações domésticas, uma velha revista, amarelada e já ligeiramente enrugada. curiosa, como sempre desde menina, os seus olhos foram ao encontro de um post-it deixado muitos anos atrás. ao fundo da página, o artigo remetia para o final da revista, ao jeito de algumas publicações do séc. XX, no tempo em que não havia ainda edição electrónica. o post-it dizia 'ler o final do artigo!!', numa letra agitada e imperativa (e masculina). com uma ansiedade que desconhecia, procurou as últimas páginas, dedos deslizando papel fora. aí chegada, leu a conclusão do artigo escrito muitos anos antes:

'(..) com mulheres com este perfil, caçadoras modernas equipadas com impecáveis maquilhagens, roupas de griffe e um sem acabar de utensílios que vincam simbolicamente a sua autonomia perante as multidões urbanas do novo século, todo o cuidado é pouco. mestres na caça, são, por um fenómeno que a psicologia ainda não decifrou, mestres ainda mais exímias na arte da negação, usando de estratégias de contra-informação com um grau de sofisticação absolutamente invulgar (..)'

final 1

já não leu o resto. pensou apenas que acaso ele tivesse lido, nos dias que antecederam aquele meridiano dia há tantos anos atrás, o artigo até ao fim, talvez a resposta à sua última sms (simples e minimal, mas resposta) não tivesse acontecido.
e com esse dia-resposta, ter-se-ia desvanecido também toda uma vida. de felicidade, à maneira deles.
lembrou-se dele e da sua tocante fragilidade com uma urgência intolerável. as saudades prostraram-na de tal forma, que as lágrimas misturaram-se com o velho e já não tão amarelo post-it, numa formidável dança de letras. letras fundidas, dizendo agora: 'é favor viver até ao fim!'.

final 2

já não leu o resto. pensou apenas que acaso ele tivesse lido, nos dias que antecederam aquele meridiano dia há tantos anos atrás, o artigo até ao fim, talvez a resposta à sua última sms (simples e minimal, mas resposta) não tivesse acontecido.
talvez tivesse, de certa forma, 'sido melhor', uma espécie de justiça divina por antecipação, que teria evitado uma vida feliz (à maneira deles, mas feliz) que ela afinal não havia merecido. a resposta, tão convincente, tão autêntica, tão intensa, que havia dado nesse dia tinha sido apenas mais uma das suas muitas fugas em frente - em que ela era - qual a palavra certa? - exímia, isso mesmo, exímia. exímia e sofisticada.
mas ele não leu, nunca chegou a ler. mas chegou a viver, e viveu até ao fim.

09 novembro 2006

coisas que valem a pena II

(re)ler
.paul auster, ao acaso (para iniciantes, começar pelas obras do meio - cronologicamente falando)
.eugénio de andrade, como que por acaso ;-)

escutar
.dias úteis, rádio radar, os finais de tarde com pedro ramos, em 97.8 (lisboa) ou via internet
.canções que marcam estes dias: 'slide away', joseph arthur; 'another one goes by', the walkmen

(re)ver
.paris no grande écran: sessão dupla 'paris, je t'aime' & 'em paris'
.obras fundamentais de anime japonês, já editadas em dvd ('ghost in the shell II', 'o túmulo dos pirilampos', etc.)

lembrar que há 10 anos (1996)
.'the ramones' deram o seu último espectáculo (festival lollapalooza) - punk-rock almost dead!
.osama bin laden escreve o seu manifesto "the declaration of jihad on the americans occupying the country of the two sacred places", enquanto bill clinton é reeleito presidente dos estados unidos da américa

ousar
.um almoço bem diferente ('autencidade, modernidade & pesquisa'), na quinta de catralvos, algures perto de azeitão. arriscar o menú degustação e deixar-se levar - tenho a certeza de que o meu amigo k sabe do que fala!
.visitar a fundação elipse (rua das fisgas, alcoitão), que acolhe a colecção de arte moderna detida por um fundo liderado pelo banco privado português (passe a publicidade, como se dizia antigamente) e que, diz quem sabe, 'é coisa para valer a pena'

saborear
.um batido de banana & canela, na retocada cafetaria do teatro são luiz, lisboa
.um almoço tardio, prolongado, lânguido no belíssimo (em várias acepções) restaurante '100 maneiras'. aproveitar as cores do inverno, para aquecer a alma e exercitar o (bom) espírito. reservar uma mesinha junto a uma janela

beber
.'quinta das cerejeiras', reserva (2000 a 2002; tinto; região da estremadura)
.o sempiterno merlot que dá pelo nome de 'má-partilha' (tinto; região de palmela / setúbal)

espreitar
.http://www.vidroazulruc.blogspot.com
.http://www.franciscamoreira.blogspot.com

08 novembro 2006

nesses jardins onde nos sentimos seguros..

como previa, a inês escolheu, das 6 possibilidades de 'em repeat' que gravei, a menos óbvia e a mais exigente para os ouvidos do auditório madrugador da radar.
é engraçado como 'sabia' desde o momento em que gravei este 'em repeat' que seria o que ela escolheria - sexto sentido masculino, talvez..
e assim, entre um tenebroso grupo de rock malaio (zé pedro rock & roll oblige - os 'red flag', ou coisa no género) e os velhinhos 'madness' ('it should be love'), passeámos por um 'jardim zen'.
é caso para dizer: mission? not impossible!
convido-vos a descobrirem virginia astley.
não é novo, não faz a moda, não tem electricidade. mas tem aquilo que vale a pena - alma; e beleza a rodos.

http://www.virginiaastley.com/

07 novembro 2006

caleidoscópio: A

ontem, s/x cruzou-se com x/s.
x/s vive num quarto, está desempregada, é mãe-solteira. a filhita passa a semana em casa dos sogros de x/s, única forma de poder crescer com algum equilíbrio.
o ex-companheiro de x/s, rapaz de maus fígados e ainda piores instintos, está longe. felizmente. haverá coisa mais triste do que dizer de alguém (que nos foi próximo e foi dono, em tempos idos, do nosso coração) 'ainda bem que está longe'?
c - a sua filhita -, entra em qualquer café e não pede nada, nunca pede nada. repete baixinho 'não é pexiso', naquela entoação própria dos 7 anos. c não pede nada, nunca pede nada, porque há flores que nascem em pleno inverno, tal como nas imensas lixeiras do nosso mundo vivem crianças-mil, que conservam uma tocante e inteira dignidade.

ontem, x/s cruzou-se com s/x.
s/x vive num quarto (confortável), tem uma vida (confortável e apetrechada), está empregada, é solteira. não é nova, e ainda não é velha - é uma mulher-em-ponto-de-rebuçado (mais é demais, menos é de menos).
s/x não tem namorado fixo - colecciona rapazes, com a mesma placidez de quem colecciona borboletas. cada borboleta é única, com cores que formam combinações impossíveis de replicar noutra borboleta. cada borboleta merece toda a atenção e exclusividade - tal como todas as outras, em seu tempo.
s/x não é má-rapariga, muito pelo contrário. amiga da sua amiga, s/x reparou em x/s - devolveu-lhe o olhar, captou-lhe o sorriso tímido e arriscou retribuí-lo.
momentos à frente, conversa de ocasião encetada, ficou-lhe a bailar a memória da palavra dignidade (que deixou de ser uma palavra, para ser uma coisa outra) e a imagem daquela jovem mãe, em dificuldades mas ainda capaz de sorrir a uma estranha.

ontem, em sonhos, cruzei-me com s/x - que me fez cruzar com x/s.
adormeci embalado pela simetria assíncrona daquelas duas, unidas num abraço 'em suspensão'.

a vida fica (mesmo) para outro dia?

06 novembro 2006

hyde park by the dawn

ela era uma máquina:
calculava probabilidades como quem descasca cebolas
- à espera da lágrima inevitável (mas descartável).
as marés nas suas pálpebras
eram como tempestades sem som:
puro artíficio visual
longínquo e lânguido,
que desperta sorrisos de condescendência
e olhares de falso espanto, próprios
de quem se sabe em porto seguro.
como as tempestades cálidas de turner
que deixamos nas paredes da national gallery,
enquanto, modestamente felizes,
nos afastamos com envergonhado júbilo.
tudo esqueceremos (até o teu rosto)
- qu'amanhã é outro dia, e assim é que está bem.
a vida? a vida fica para outro dia.

o verso 'a vida? a vida fica para outro dia', foi escrito por manuel de freitas, um jovem poeta (e crítico literário) que vale a pena descobrir.

coisas que ficam

I
'(..) um dia perguntaram a jean cocteau: "se visse uma casa a arder, o que é que salvava primeiro?" e ele respondeu: "salvava o fogo." (..)'

eduardo prado coelho, página 16, suplemento 'mil folhas', jornal público de 3 de novembro

II
'(..) há sempre qualquer espécie de grandeza em viver as coisas, há sempre mediocridade em classificá-las (..)'

agustina bessa-luís, 'aforismos', 1988, pág. 207
citada por fernando pinto do amaral, página 6, suplemento '6-ª', jornal diário de notícias de 3 de novembro

[recomendo vivamente a leitura dos textos de fernando pinto do amaral e de pedro mexia sobre a obra e o mais recente livro ('a ronda da noite') de agustina, no suplemento acima mencionado]

o rapaz, o chef, a música e o éter

impressões digitais:
.adorei a experiência de gravar um programa de rádio. não sei explicar bem, mas há, tal como nas grandes viagens que preparamos com intensidade e um sentido de missão, algo que mistura os conceitos de 'finitude' (o programa como uma flor que nasce, vive e 'morre') e de 'eternidade' (algo que passou a fazer parte do que somos, inexoravelmente). em linguagem mais simples, digamos que senti na pele o formigueiro normalmente associado à expressão 'o bichinho da rádio'.
.claro que tinha que 'acontecer qualquer coisa' (ver post anterior 'porque somos assim, Senhor?'). logo a abrir, tinha preparado afincadamente o texto para rimar com 'are you ready to be heartbroken?' - daí a referência aos 'obscuros rapazes escoceses' (os 'camera obscura') que cantam por estes dias 'hey lloyd, i am ready to be heartbroken'. quando começo a escutar os acordes de 'perfect skin'.. tremi! mas, pronto, também não ficou mal. podia ser pior o engano ;-). de resto, o alinhamento estava 100% fiel e verdadeiro.
.das muitas mensagens (i am the king of sms - 800 num mês!) que simpaticamente os meus bons amigos e familiares e etc. me foram enviando (em comum a simpatia terna de todos), não resisto a partilhar as palavras de L. ('a minha filha M dança ao som de The Smiths') ou a marcante percepção de que a sensibilidade feminina é coisa diferente e especial (vocês sabem de que é e de quem é que eu estou a falar, como diria o outro..). também gostei da transmutação da palavra 'bolo' em 'lobo' - ou como com pouco se pode dizer tudo.
.a minha avó já fez saber que esteve a ouvir 'o programa do neto', que, modéstia de avó à parte, até 'tem boa voz para aquilo' (o que o amor faz, vejam lá). mas lindo, lindo, foi quando me disse que adorou a faixa.. dos alpha. quando falava em 'síntese perfeita entre classicismo e modernidade', parece que acertei ;-).

o alinhamento completo, com indicações dos discos de onde retirei as músicas. estão todos disponíveis em minha casa, para ouvidos mais curiosos.

Lloyd Cole & The Commotions - "Are You Ready To Be Heartbroken" (LP: "Rattlesnakes")
Ryan Adams - "Come Pick Me Up" (LP: "Heartbreaker")
Ed Harcourt - "Methaphorically Yours" (LP: "From Every Sphere")
Eric Matthews - "My Morning Parade" (LP: "The Lateness of the Hour")
Bright Eyes - "First Day Of My Life" (LP: "I'm Wide Awake, It's Morning")
Perry Blake - "Ordinary Day" (LP: "California")
The Go-Betweens - "You Can't Say No Forever" (LP: "16 Lovers Lane")
Galaxie 500 - "Strange" (LP: "On Fire")
Maximilian Hecker - "Daylight" (LP: "Rose")
R.E.M. - "Nightswiming" (LP: "Automatic For The People")
Azure Ray - "Nothing Like A Song" (LP: "Hold On Love")
The Smiths - "I Know It's Over" (LP: "The Queen Is Dead")
John Cale - "I Keep A Close Watch" (LP duplo ao vivo: "Fragments Of A Rainy Season")
Alpha - "Somewhere Not Here" (LP: "Come From Heaven")

03 novembro 2006

porque somos assim, Senhor ? (ser Português)

..telefonaram-me há momentos da radar.
'pedimos imensa desculpa, é um bocado inexplicável, mas as gravações que fizémos ontem para o teu programa, estão deficientes. o ritmo está demasiado rápido e a voz resulta um tudo-nada mais aguda. importas-te de vir cá gravar outra vez?'.
não, não me importo.
mas porque é que será que me dá a impressão que se a conversa tivesse sido noutra língua (e penso em várias) não teria acontecido?
e arrisca-se uma pessoa a ver, durante um dia, a sua voz adulterada digitalmente espalhada aos quatro ventos - ainda me deixam com inquietações metafísicas quanto ao meu 'gender' ;-).
lá vou eu, outra vez.
desta vez, talvez encontre a inês meneses - ou melhor, o seu humor e a sua coolness. que, para o resto, chegou-me a experiência de ontem - se a voz é boa, não procures o/a dono/a..

bom fim-de-semana!

fractais III

mata:
'é necessário estar sempre embriagado. tudo está aí: é a única questão. para não se sentir o horrível fardo do Tempo que quebranta os vossos ombros e vos curva em direcção à terra, deveis vos embriagar sem trégua. mas de quê? de vinho, de poesia ou de virtude, como quiserdes. mas embriagai-vos.'

charles baudelaire, in 'pequenos poemas em prosa'


& esfola:
'há sempre alguma loucura no amor. mas há sempre um pouco de razão na loucura.'

friedrich wilhelm nietzsche

ladies & gentlemen I was floating in space

e assim aconteceu. lá fui, ontem pela tardinha, até aos estúdios da rádio radar, para gravar a minha receita para o bolito de sábado. que vos posso contar com interesse ? em vez de um relato em jeito futebolístico, deixo-vos antes notas soltas, curiosidades, impressões avulsas:

. fui recebido com muita simpatia (mais do que esperava) e informalidade (tanta quanto suspeitava). o anfitrião, pedro dias, tem 22 aninhos (!), é um menino. meus amigos, não se metam nisto - fazer a colagem daquela(s) voz(es) com aquela(s) pessoa(s) é um exercício pesado de desconstrução! estamos ali e aquele rapazinho à nossa frente orienta-nos assertivamente, dando uso a uma espécie de paternalismo - é assim uma coisa tipo 'mundo do avesso', não sei se estão a ver..
. quando a meio da (muita) conversa lhe disse o que fazia, respondeu sem hesitar: 'ganda seca'!! pois é, eram mesmo 22 aninhos..;
. este vosso escriba, que não hesita em 'ir por ali fora', permitiu-se tecer considerações sobre a radar, alguns dos seus programas, discutir ideias, etc. (estão a ver o filme). ia eu embalado, quando me lembrei de criticar o programa que passou no último ano 'universidade radar'. resposta pronta: 'obrigadinho, oh pá, era eu que o fazia!'. silêncio no estúdio.. e passamos à próxima música! enfim, é a chamada bola ao poste (até senti a vibração);
. para além da 'hora do bolo', pedi para gravar um 'em repeat'. preparava 3 faixas (jens lekman, 'when i said i wanted to be your dog'; the walkmen, 'another one goes by'; parker & lilly, 'suit of fire') e pensava para comigo 'qual escolher, qual escolher, qual escolher', quando o bom do pedro dias me disse: 'gravamos já 10, que fica feito; a inês (meneses) agradece!'. os meus olhitos brilharam e imediatamente comecei a seleccionar mentalmente mais uma meia-dúzia de 'em repeat'! o que vos posso dizer é que há de tudo, até um pouco de 'experimentalismo', assim a inês concorde com as propostas ;-);
. durante a sessão, abordámos o tema 'pedro ramos', a mini-estrela da estação. o pedro dias falou-me do seu feitio especial (não gosta de ser interpelado por ouvintes, é muito reservado, etc.). pois bem, acabada a gravação, estou eu a sair do estúdio sózinho (o pedro dias estava a mudar de roupa!), eis que encontro o pedro ramos (foi um feeling) e o zé pedro rock & roll.. foi um micro-segundo até estar em amena cavaqueira com ambos, mandando umas bocas sobre o episódio da capa do disco do david bowie a fazer de cara do pedro ramos numa foto que saiu há uns meses no suplemento 6-ª, do DN; escutando o Zé Pedro dizer que 'rock & roll até partir já passou de moda, desde a morte do kurt cobain!'; etc. e tal. enfim, uns minutos de charla em torno da rádio, da música - outros mundos, de facto;
. e lá fui levar o pedro dias (que não conduz, nem tem carro) a um jantar algures em lisboa, mais ou menos como gesto de retribuição pela sua imensa simpatia. fomos a conversar sobre as vantagens de não andar de carro, sobre o bairro alto e a sua fauna, sobre o que calhou.
é assim, as coisas simplesmente acontecem, quando têm que acontecer (e não estamos.. 'ensimesmados').
são historietas simples, porventura sem significado, mas que me souberam muito bem.
e, com modéstia, achei que vos podiam desenhar um sorriso.
amanhã, 17h00 - o pasteleiro é fraquito, mas pode ser que a receita e os ingredientes bastem por si ;-).

02 novembro 2006

esboço ensimesmado

era uma manhã como as outras.
uma manhã cheia de manha.
era, portanto, uma manha cheia.
uma mã-cheia?
- era antes uma mancha
(uma mancha azul).
veio a tarde, como sempre veio.
uma tarde vazia.
uma tarde vazada.
uma tarde varrida,
quase desbotada.
depois caiu a noite.
ou melhor, caiu na noite.
a noite engoliu-o, mas engasgou-se,
a noite insistiu, mas desistiu.
(que azul não desbota,
nem se mastiga.
azul segue azul dia fora,
- quer que repita?).

a cup of tea (and a slice of my own private cake)

hoje à noite, se voz me não doer e os nervos soprarem a meu favor, vou até à rádio radar (97.8 - Lisboa para emissão via éter, mas também disponível via internet) gravar o meu modesto contributo para o programa 'a hora do bolo'.
sabem que definir um conceito (sim, que 'só um alinhamento' não me parecia bem - esta minha mania de fugir das coisas simples..) e depois transpô-lo para 12 a 14 faixas é um exercício ingrato. ingrato porque fica tanta coisa de fora, tanta coisa importante. de certa maneira, é como pedirem-nos para escolher 'o amigo de que gostamos mais' - não se faz!
com maior ou menor dificuldade, lá vou eu. de saco a tiracolo, transportanto duas dúzias de cds (sim, levo os titulares e uma equipa inteira de suplentes!). às vezes, o impulso de última hora faz das suas, 'we never know').
para aqueles que me conhecem (ou aos meus gostos musicais), diria que tenho 10 alinhamentos diferentes na cabeça. mas que vou passar só um :-(. vou passar aquele que tem mais a ver comigo, foi esse o critério. a partir de uma lista inicial de 16 músicas, dei uns retoques, eliminei peças de artilharia emocional demasiado pesada (leonard cohen, dylan, nick cave, scott walker e afins) e tentei construir um puzzle que faça sentido (para mim) e que dê um 'prazer mínimo' (a quem vai escutar, os milhares de milhões de ouvintes esclarecidos e de bom-gosto imaculado que a radar tem!).
poderia ter feito outros alinhamentos:
- 'electrónicos em suspensão low-fi' (bent, kruder and dorfmeister, alpha, air e amigos);
- 'nós-os-pós-modernos' (interpol, the strokes, the killers e amigas)
- 'saudades d'outro império português' (caetano veloso, elis regina, heróis do mar, j.p. simões, jorge palma, chico buarque, radar khadafi, ban, sétima legião, seu jorge e outros compinchas);
- 'fragmentos subtis' (este não digo - perguntem-me ;-).
- um loooooooongo etc.
ficou, fiquei-me por, uma selecção bi-polar: meia-hora mais solar, pujante e afirmativa, sentida-dita-gritada; uma segunda-parte mais sussurrada, mais nocturna, mais lunar, essencialmente sentida.
espero que gostem. esta hora conta muitas histórias - e vocês todos estão lá, mesmo sem o saberem.

[este post é dedicado ao meu amigo pedro miguel figueiredo, que algures nos já longínquos anos de 1990/1991, me abriu as portas do seu programa 'ponto final' - rádio tom dela, 19h-20h, dias úteis - e me deixou fazer a primeira emissão de rádio, em directo absoluto. como cantavam os rem, nesse disco (i'm your fan) de homenagem ao incomparável senhor cohen, o que é preciso é acreditar que
'first we take manhattan, then we take berlin'.
outros tempos, outras músicas - mas outras coisas são as mesmas.]