28 novembro 2006

in memoriam

e em todo o caso
há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar

já todos sabemos que morreu mário cesariny. como quase sempre, de súbito parece que era um autor acarinhado pelas nossas gentes, a julgar pelos destaques na imprensa do costume, pelos telejornais do costume, pelo costume do costume.. não era. e é pena.

não conheço a sua obra a fundo. fui e sou apenas um leitor bissexto, alguém que se foi cruzando com as suas palavras - algumas 'faróis iluminantes', algumas 'estacas cravadas em pleno peito'. mas sempre incomuns, sempre criativas, sempre desafiantes, quase sempre certeiramente certas.

mário cesariny, um dos últimos surrealistas vivos (sobrevivo a si próprio), tocou-me ao de leve várias vezes. deixou sempre qualquer coisa, o que é deixar muito.

há anos atrás, ao ler uma entrevista com/um artigo sobre cesariny, dado ao 'mil folhas' (suplemento do jornal 'público'), deparei-me com 2 frases minimais, que ainda hoje guardo como aforismos para a vida:

a vida é bela. comecemos

ama como começa a estrada

na sua simplicidade, são frases que contêm um desafio radical e ontológico, expressões-manifesto-repto que encerram em si um programa e uma ética de vida. são exigentes, porque nos interpelam e precisamente exigem de nós uma resposta (de nós para nós). não há meios-termos, não há fuga possível, há que - uma vez lidas - seguir em frente, levando-as na nossa 'bagagem de coração'.

a primeira vez que reparei 'a sério' no mário foi nesse meteoro que foi o cd de poesia musicada editado pela assírio & alvim (de nome 'entre nós e as palavras' - título retirado precisamente do primeiro verso do poema de cesariny 'you are welcome to elsinore'), no qual se escutava, entre as vozes de herberto helder, luiza neto jorge, al berto, antónio franco alexandre, e mais uns quantos moicanos da palavra, o próprio cesariny dizendo alguns dos seus poemas mais emblemáticos. deixo-vos dois deles:

1. You are welcome to Elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício


Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição


Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras noturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar


2. Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura


Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra


por entre a espuma molhada destes dias cinzentos, pareceu-me ouvir um lamento em surdina - pouca gente no velório, não muita gente no funeral.

eu vou lá hoje, ao cemitério dos prazeres.
porque é preciso dizer EU em vez de dizer ELES.