04 dezembro 2006

extractos de 'a neve' (ana teresa pereira, relógio d'água, 2006)

'estou deitada na erva, a humidade atravessa-me a roupa, os ramos das camélias desenham teias por cima de mim, e há cores, luz, vento, nuvens que passam entre as folhas (...). e há no meu corpo um abandono que apenas conhecem os que são amados. e quando a solidão se tornava insuportável, ele apareceu. na verdade fui eu que o procurei, sem saber o que fazia, no nevoeiro e na chuva, perto do mar. há muito tempo, quando o inverno começava.'

'não estava longe do mar. o seu corpo conhecia a proximidade do mar, tinha o sentido da neve. aos onze ou doze anos acreditava que era capaz de fazer nevar. (...) mas ao fim de duas ou três semanas deixava-se ficar no quarto, encostada à janela, a olhar a paisagem branca, e sentia no mais íntimo de si um desejo de primavera.'

'e havia qualquer coisa no silêncio. rose gostava do silêncio e de alguma música, de sons de animais, do som da água. estava perto do mar, e perguntou a si mesma se aquele caminho terminaria no mar, todos os caminhos acabam no mar, ou pelo menos o meu acaba, sempre o soube, como um barco ou uma gaivota.'

'era uma dessas ideias estranhas que tinha às vezes, a de que existia desde sempre (...) e que no fundo quer dizer que ela escrevia livros, e só pode escrever livros quem existe há muito tempo e ainda se lembra, pelo menos vagamente.'

'teve a impressão de ver uma cabana ao fundo, o telhado branco de neve; um pássaro cruzou o céu deixando-a quase assustada. desejou com muita força que o pássaro tivesse um ninho debaixo dos telhados, um lugar seguro e quente, como é que ele podia sobreviver com aquele frio, porque ficara quando os outros tinham partido. talvez porque é como eu, eu que vou embora quando os outros ficam, e depois me encontro gelada e com fome.'

'e depois a história formara-se naturalmente, como se devem formar as histórias, quando são feitas da matéria de que é feito o mundo e dão a impressão de já existirem há muito tempo, de serem parecidas com todas as histórias excepto no facto de serem parecidas com todas as histórias. ele deixara um leitor de cassetes na cozinha e ela ouvia paganini, violino e guitarra, aquela música alucinada tinha a ver com as suas histórias e com o seu abandono, quando fechava os cadernos cansada quase não sabia o que escrevera, era depois ao ler as páginas que as coisas se revelavam, as que pensara e as que de algum modo haviam passado através dela, e tinham sempre o gosto de um milagre.'

'(...) teve consciência do silêncio, o silêncio estava concentrado naquele lugar, era um lugar denso, onde não se sentia qualquer presença, só o vazio que talvez seja a presença de Deus.'

'era uma história de amor, era um conto de fadas, ela sempre achara que nada é tão bom como escrever um conto de fadas, ou, next best thing, uma história de fantasmas. o texto era feito da matéria do mundo, e daquilo que existe e fala no silêncio, o som do vento e da água, o vôo dos pássaros. e a ligação entre as coisas: o mar, as casas, os quadros da national gallery, a neve, e o desejo, e fazer amor.'

'e sonhava com noites de tempestade, com passagens entre as rochas que as plantas transformavam em túneis, e com uma casa em ruínas que tinha as paredes e os tectos cobertos de roseiras, que às vezes estavam em flor, rosas brancas. e havia uma torre de pedra com uma escada em espiral, lá em cima a vista era de tirar o fôlego, as rochas escarpadas e o mar muito azul, as gaivotas.'

'ele perguntou com um sorriso:
-tem personagens?
sim, mas não são mais importantes do que o resto, para mim as pessoas nunca foram o mais importante.'

'rose sentiu-se quase comovida, aquele corpo nu ou vestido com roupas de marca, aquela beleza toda, aquela solidão toda, devia doer ter uma beleza daquelas, e não saber o que fazer com ela, isso fazia pensar na morte.'

'o homem passou-lhe o braço pela cintura e puxou-a para si, perguntou-lhe se tinha alguma coisa contra o amor; rose disse que não e ele disse vamos para a cama.'

'queria tempestades e naufrágios, nos seus livros e na sua vida, e a crueldade dos piratas, que levavam as jóias a mulheres adormecidas em quartos sujos, e depois entravam nelas com a mesma violência quase inconsciente com que viviam; um mundo de piratas e princesas que podiam ser prostitutas em bares dos portos (dormir com homens diferentes todas as noites e amá-los da mesma forma, e depois sentar-me no quarto em silêncio, ao amanhecer, e tocar com os dedos trémulos as jóias, as pedras preciosas e as pérolas ainda sujas de sangue).'

'agora tinha a impressão de ver peixes nas águas escuras dos tanques. os tanques estavam cheios de vida (...). perguntava a si mesma onde teriam ficado durante o inverno, quando a água se encontrava coberta por uma fina camada de gelo. deviam ter estado tão fundo.'

'gostavam de passear no nevoeiro, nas noites de nevoeiro. vestiam as gabardines e ele punha-lhe ao pescoço uma echarpe azul do tempo da universidade. colocava uma echarpe cinzenta com um ar ainda mais velho, e saíam para a rua, de mãos dadas. o nevoeiro rodeava-os logo, arrefecendo-os por dentro. andavam pelas ruas e pelos jardins, de vez em quando passava alguém por eles e sentiam-se mais juntos, mais isolados no seu mundo.'

'(...) era o seu desejo de envolver tudo, de abraçar tudo, e abraçava-o a ele e era quase tão bom.'

'eu estava perdida quando cheguei aqui.
eu sei.
(...)
esta novela é minha e mistura-se contigo nos meus sonhos de ti.'

'mas na manhã seguinte quando releu as últimas páginas que escrevera sentiu uma alegria enorme, o seu desejo passara para o livro, encontrava-o em todas as palavras, nas que estavam escritas e nas que não estavam escritas. o seu livro estava cheio de deuses.'

'e quando a solidão se tornava insuportável, ele apareceu. na verdade fui eu que o procurei, sem saber o que fazia, no nevoeiro e na chuva, perto do mar. há muito tempo, quando o inverno começava. porque havia em mim um longo sonho de primavera, como nas flores que dormem debaixo da neve, e surgem antes de a neve desaparecer. e a primavera chegou.'

'ficamos abraçados e não dizemos nada, é a nossa forma de estarmos felizes.'


(um dia, com tempo e engenho, explico-vos porque considero ana teresa pereira uma voz única nas letras portuguesas e porque quanto mais a leio, mais gosto. das palavras que escreve e das que não escreve - mas que estão lá. lá e cá.)

4 Comments:

Blogger Sofia Viseu said...

um atrevimento: o início fez-me lembrar uma música que podia ser uma banda sonora do conto
"Come with me
Into the trees
Well lay on the grass
And let the hours pass"

quarta-feira, dezembro 06, 2006 9:15:00 da manhã  
Blogger gi said...

pois é, 'isto anda tudo ligado'.. lá diz o bom povo.
faz sentido. música crepuscular, poesia telúrica, contos góticos, cinema noir, anjos caídos, demiurgos espectrais, a pintura de dante gabriel rossetti e edward burne-jones..
muito bonito esse início, posso saber o que é ? (um atrevimento: walt withman ?; finais do século XIX / início do século XX ?).

quarta-feira, dezembro 06, 2006 9:51:00 da manhã  
Blogger Sofia Viseu said...

o atrevimento era por ser pouco literário, apesar de sentido. a letra é de uma música de depeche mode :)
curiosamente é um 7

quarta-feira, dezembro 06, 2006 10:04:00 da manhã  
Blogger gi said...

talvez tenha sido a primeira vez que os depeche mode foram confundidos com walt whitman. esta já ninguém me tira! ;-).
como vês, de 'pouco literário' não tem nada. a mim, esses versos fizeram recordar 'esplendor na relva', poema do referido senhor.
atrevimentos assim.. venham eles!
('seven is the magic number', cantariam os de la soul na sua 'daisy age')

quarta-feira, dezembro 06, 2006 10:28:00 da manhã  

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