06 março 2007

desconsolo & polaroids

por mais que me resguarde da 'realidade', ela chama-me pelo meu nome. impossível ficar indiferente a alguns polaroids destes últimos dias..

viviam sózinhos, como casal, há décadas. uma doença de nome germânico instalou-se e fez o seu impiedoso caminho nela. nos últimos anos, já em queda acentuada, ele tratava de tudo em casa; a começar por ela. para além do enorme esforço físico e emocional, a idade de ambos não ajudava. cansado e extenuado, pediu ajuda - ajuda que nunca veio. da última vez, já em desespero, pediu que o internassem a ele - só queria descansar alguns dias e podia ser que assim se forçasse uma qualquer solução - solução que não veio. sentou a mulher no sofá, cobriu-a docemente com um lençol e deixou a fiel arma de estimação falar pela última vez. falou para ela, falou para ele. e calaram-se os três.

de pé, junto ao balcão, os homens observam aquele cortejo de duas pessoas só. comentam qualquer coisa entre dentes e quase em surdina, num misto de impotência, sentido de inevitabilidade quase determinística e cobardia com caução cultural / social. encolhem os ombros e passam adiante, ao benfica ou coisa assim. sentado dissimuladamente, por entre os jornais do dia, o rapaz não acredita no que acabou de presenciar. acreditar acredita, o problema é como integrar o que pressentiu em si (dentro de si); o problema é saber já que não vai conseguir contar a ninguém aquilo com que acabou de se cruzar, quase olhos nos olhos: a violência mais estúpida e dissolvente (a do forte contra o fraco). como guardar dentro de si, sem se transformar a si próprio num poço de ódio, a imensa vergonha por ter continuado sentado, no canto, tentando (e já não conseguindo) ler as letras de jornal ?

de manhã bem cedo, o triste café - cantinho da menina, de seu nome -, parecia ainda ensonado. por entre o um torpor quase analgésico, distinguiam-se os vultos dos primeiros e fiéis clientes. seriam que horas, 7h30 ? que faziam por ali aquelas pessoas ? (melhor: que fariam fora dali aquelas pessoas ? - corrigiu imediatamente, de si para si). pobres, perdidos, à margem, na margem. dentro da cidade, mas do lado de fora. fora da cidade, mas bem no seu centro. coordenadas geográficas vãs, perante a resignação mansa da reforma miserável, do biscate de ocasião, da falta de brilho e de destino. aquela falta de alegria, o ambiente glauco, cor de chumbo quando chove, cortaram-no por dentro. ou então foi só do café madrugador. madrugador e queimado.

1 Comments:

Blogger Abssinto said...

Os náufragos... Que eu morra sem conhecer a velhice se tal vai ser o meu fim...

Abraço

terça-feira, março 06, 2007 6:56:00 da tarde  

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