14 maio 2007

andré valente, n-º 5

'the heart is a lonelly hunter'
carson mccullers



optou pelo registo observador, como o ornitólogo que se dissimula por entre a vegetação, para melhor deixar brilhar as plumas da surpresa.
encostado ao bar, prescruta o horizonte, tentando concentrar-se no todo e assim escapar ao efeito-boomerang de um olhar mais detalhado. mas não estamos seguros em lado algum, ouviu dentro de si. em linha recta, a abordagem do pássaro chegou. 'e então, poseur, vejo que gostas de observar, de controlar o mundo à tua volta'. pensa lânguidamente se vai responder. pensa que controlar, no seu caso, é controlar-SE. não deixar os fantasmas subirem ao palco. matá-los e à sua espessa sombra. continua a pensar no registo a adoptar. sai-lhe uma tentativa quase articulada de dizer qualquer coisa: 'se pensas que observo como aquelas aves que observam, para melhor prepararem o seu mergulho letal, enganas-te; observo a estética do absurdo, para melhor me instruir. e para melhor me defender. vê-se que não estudaste psicologia ('história da arte' - ouvi bem?), caso contrário terias percebido que a pose pode ser o registo mais neutro possível; apago-me para poder resistir a mim próprio, no fundo sou apenas um rapaz e o seu omnipresente mas não plenipotenciário ministério da defesa' ('caraças para ti, falas com palavras impenetráveis!') 'não, caraças para ti, falo com palavras-couraça, única defesa possível para afastar da minha própria boca as palavras simples. que, como todos sabemos, são as únicas palavras que incendeiam o mar e que apagam o sol. não me digas que não sabes isto, em que planeta é que tu vives?!!?'.
a batida continua, a negritude sonora faz o pleno por entre os corpos que brilham. o fumo arrastado de sábado à noite. patilhas bem escanhoadas e camisas abertas a preceito rimam com feminis brilhos avulsos de peles meticulosamente paramentadas. the beat goes on.
'o suor não tem aqui lugar, nem a visceralidade do coração' - pensa para consigo. 'poseurs de sábado à noite, amadores ridículos'.
puxa a cigarrilha, cuja ponta de fogo parece um foguete luminoso cruzando o céu da cidade. cá fora, sózinho, é ele outra vez.

2 Comments:

Blogger Abssinto said...

Sempre ausente. Tão verdadeiro para mim este texto...

quarta-feira, maio 16, 2007 2:42:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

não me surpreende, caríssimo.
sim, podia ter como sub-título: 'pequeno ensaio sobre a ausência'.
um abraço.
gi.

quarta-feira, maio 16, 2007 5:04:00 da tarde  

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