19 junho 2007

o inverno

por vezes o destino é como uma pequena tempestade de areia que não pára de mudar de direcção. tu mudas de rumo, mas a tempestade de areia vai atrás de ti. voltas a mudar de direcção, mas a tempestade persegue-te, seguindo no teu encalço. isto acontece uma vez e outra e outra, como uma espécie de dança maldita com a morte ao amanhecer. porquê? porque esta tempestade não é uma coisa que tenha surgido do nada, sem nada que ver contigo. esta tempestade és tu. algo que está dentro de ti. por isso, só te resta deixares-te levar, mergulhar na tempestade, fechando os olhos e tapando os ouvidos para não deixar entrar a areia e, passo a passo, atravessá-la de uma ponta a outra. aqui não há lugar para o sol nem para a lua; a orientação e a noção de tempo são coisas que não fazem sentido. existe apenas areia branca e fina, como ossos pulverizados, a rodopiar em direcção ao céu. é uma tempestade de areia assim que deves imaginar.

(..) e não há maneira de escapar à violência da tempestade, a essa tempestade metafísica, simbólica. não te iludas: por mais metafísica e simbólica que seja, rasgar-te-á a carne como mil navalhas de barba. o sangue de muita gente correrá, e o teu juntamente com ele. um sangue vermelho, quente. ficarás com as mãos cheias de sangue, do teu sangue e do sangue dos outros.
e quando a tempestade tiver passado, mal te lembrarás de ter conseguido atravessá-la, de ter conseguido sobreviver. nem sequer terás a certeza de a tormenta ter realmente chegado ao fim. mas uma coisa é certa. quando saíres da tempestade já não serás a mesma pessoa. só assim as tempestades fazem sentido.


haruki murakami, in 'kafka à beira-mar'
in http://www.citador.pt