04 junho 2007

poetas cá de casa: antonio cicero

desprezar a morte, amar o doce,
o justo, o belo e o saber

poeta e ensaísta contemporâneo brasileiro (nascido em 1945), mais conhecido na sua qualidade de letrista de alguns compositores de MPB.
pela mão da quasi editores, chegou-nos, em 2006, um livrinho de capa amarela, de sua graça 'a cidade e os livros'.
diz-nos assim:

canção do amor impossível

como não te perderia
se te amei perdidamente
se eu teus lábios em sorvia
néctar enquanto sorrias
se quando estavas presente
era eu que não me achava
e quando tu não estavas
eu também ficava ausente
se eras minha fantasia
elevada à poesia
se nasceste em meu poente
como não te perderia

nênia

a morte nada foi para ele, pois enquanto vivia não havia a
morte e, agora que há, ele já não vive. não temer a morte
tornava-lhe a vida mais leve e o dispensava de desejar a
imortalidade em vão. sua vida era infinita, não porque se estendesse
indefinidamente no tempo mas porque, como um campo visual,
não tinha limite. tal qual outras coisas preciosas, ela não se
media pela extensão mas pela intensidade. louvemos e contemos
no número dos felizes que bem empregaram o parco
tempo que a sorte lhes emprestou. bom não é viver, mas viver
bem. ele viu a luz do dia, teve amigos, amou e floresceu. às
vezes anuviava-se o seu brilho. às vezes era radiante. quem
pergunta quanto tempo viveu? viveu e ilumina a nossa memória.

perplexidade

não sei bem onde foi que me perdi;
talvez nem tenha me perdido mesmo,
mas como é estranho pensar que isto aqui
fosse o meu destino desde o começo.

sair

largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito e largar a alma, abrir a
porta principal e sair. esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. já o sol,
as cores da terra e o
ar azul - o céu do dia -
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.

antonio cicero