30 novembro 2007

p.s.

dar e receber.
(não precisam de saber mais nada.)

bom fim-de-semana

mesmo lendo com voracidade o jornal, mesmo com o som da televisão em registo baixo, mesmo com o ruído natural do serviço de café, mesmo com os ritmos sincopados das conversas de ocasião, captamos os acordes únicos de um anúncio único. os olhos num galope rotativo fazem um travelling entre a página que líamos e a pequena caixa mágica.
este anúncio faz-me sempre parar.
não consigo exprimir com inteireza e propriedade as sensações / sentimentos que experimento, de cada vez que ele me embala.
não é a publicidade, não é o produto, não é a técnica. talvez nem seja a estética.
o que me embala neste filmezinho é o que não é dito.
e é tanto.
e é, talvez, o tudo que nos resta.





manhã cedo, ao longo da cidade, há um roteiro alternativo. o roteiro dos rostos que esperam. junto às esquinas das ruas, perto de certas paragens de autocarro, colados às ombreiras das portas de alguns prédios, os rostos esperam, arrastando os seus donos.
esperam pela boleia do colega.
esperam pela carrinha da escola.
esperam pelo transporte do empreiteiro, que os conduzirá à obra.
rostos à espera, recolhidos devido ao frio. mãos nos bolsos. o silêncio matinal ensurdecedor.
o estado de espírito de um país pode ser medido a qualquer hora do dia. de manhãzinha, bem cedo, mede-se pelo itinerário dos rostos expectantes.
os rostos que esperam acendem cigarros como nenhuns outros.
os rostos que esperam têm olhos como nenhuns outros.
os rostos que esperam são rostos como nenhuns outros.
na cidade branca, os populares de rosselini (gente simples, sofrida e digna), o povo de loach (gente sem gosto de que se gosta) e a gente de costa (as margens interiores) juntam-se a outra gente (a classe média possível, a pequena burguesia urbana), nesse denominador comum - um rosto que espera é sempre um acto igualitário.
gente à espera de boleia.
gente à espera da centelha.
gente à espera de gente.

e, algures, gente à espera da gente que espera.

(e, algures, gente à espera da gente.)
5 rapazes e uma menina, a caminho da escola.
sob o sol descendente de novembro, a ascensão da infância - esse espectáculo que comove.
não há frio que nos congele, quando temos a chama a carburar cá dentro.
como me ensinaste, avô: 'chove lá fora, qu'importa, se há calor nos nossos corações'.
5 rapazes e uma menina, a caminho da escola.
pela janela do carro, espreito e vejo-me, nesses outros tempos em que tudo parecia ainda possível.
e era.
(tenham uma boa vida, meninos).
obrigado, johnny.
por este ano e meio de meias-de-leite máquina mornas; pelo palmier simples; pelo scone com pouca manteiga, metade para agora / metade para levar; pelos pãezinhos gémeos com manteiga.
pela converseta a abrir o dia.
pelo sorriso a selar a noite.
pelo pequenino sinal de humanidade e de claridade, após tantas e tantas noites mal dormidas.
the comfort of strangers, como sempre.
boa sorte, rapaz.
take care.
i will be watching (for) you in some mysterious way.

29 novembro 2007

encontrar no mundo paralelo as existências paralelas de pessoas oblíquas. ou, talvez, perpendiculares.
o caçador de emoções é um personagem decadente. ou decente. depende do observador e da altura do seu cadeirão ético-moral.
o caçador sai à rua e leva no alfobre a sua fragilidade e a sua abertura ao mundo. é quanto basta, em dias de lua cheia. é quanto basta, em dias de lua vaza.
ver a filosofia cruzar-se com uma espécie de obscuridade mística.
viver na lâmina da improbabilidade, acelerador e travão em insondável luta de titãs.
ler os contos do escritor famoso.
ver o escritor famoso numa improvável fotografia. passar ao lado do óbvio, por ser tão óbvio que passa para o domínio do improvável.
saber que o escritor escreve, mas também edita no seu texto escritos alheios.
ler em voz alta e pensar reconhecer a voz do escritor - afinal outra e irreconhecível.
oscilar entre a farsa, o pastiche, a semiótica.
tentar entender.
muito à frente ou muito ao lado. significado susbtantivo ou jogo frívolo.
escrita ou vida. morphing fusional.
escrever posts que ninguém entende.
escrever posts porque ninguém entende.
escrever posts porque quem entende não os pode ler.
assimilar o estranho em nós. saber percorrer as cordas suspensas da alteridade.
suspender a verosimilhança como aproximação ao real.
dias estranhos, noites estranhas, danças estranhas e fantasmagóricas.
vertiginoso e sinuoso caminho nocturno que aproxima da luz.
calcular as probabilidades fosforecentes.
beber a meia cerveja de ocasião, partilhar o fumo de um cigarro, tocar a margem.
ser sujeito ou ser objecto. sujecto. objeito. abjecto sujeito?
o escritor escrevendo-se.
o livro inscrevendo-se.
a vida circunscrevendo-nos.
credo, façamos é greve. que é a situação é grave e aguda, a um tempo só.
quase rima. como quase vivemos. como quase somos. como quase chegamos lá.
e afinal talvez o devaneio de flaneur seja assim. nada mais.
ou afinal talvez seja apenas vida a acontecer. like it or not. asked for it or not.

para uma ilusão e nada mais,
acelerador a fundo.
e nada mais.
há dias estranhos ou talvez sejam as pessoas que se comportem de forma estranha em certos dias ou simplesmente há que aceitar o facto de que 'as pessoas são estranhas' (lá dizia a canção do rei lagarto..).

para o melhor, não ter os privilégios; para o pior, ter a responsabilidade ou, como agora se diz, ser accountable.

num sítio que não pedi, com um desafio que aceitei a contra-gosto (que remédio..), após um ano em que as coisas andam longe de estar bem, o sermão habitual.

já sabia: a culpa é também minha. esperava-se mais. onde está o insight? (que outros, que têm posições bem acima de mim, sejam simplesmente incapazes ou fujam, por conveniência política e refinado cinismo táctico, de o encontrar e/ou comunicar.. tudo isso é aceitável).

o habitual: tenho um mês para fazer o trabalho de outros. e, já agora, para fornecer os alibis intelectuais e emocionais que permitirão o salto em frente de umas quantas personagens. já agora, que a dita bandeja de prata não vá desta vez desprovida de umas quantas cabeças.

feliz natal, rapaz. desenrasca-te. e vê lá se o resto de coluna vertebral que te resta não acaba como decoração de natal de algum figurão. seria chique, pós-moderno e tão em linha com o ar de chumbo deste tempo.

o que vale é que conheço bem a canção dos outros, aquela do 'surrealizar por aí'.

ele há dias que sim senhor.

o patrão manda, ora pois.

olaré.

(se alguém perceber exactamente de que estou a falar, que o/as há, faça-me um favor: finja que isto é um exercício abstracto. e, importante, não tenha pena de mim. para isso, já basto eu e olhem que cumpro bem tão rasteiro desígnio).

28 novembro 2007

'um dia um aguerrido guerreiro samurai desafiou um mestre zen para lhe explicar os conceitos de céu e de inferno.
o monge respondeu de imediato:
- não passas de um estúpido e eu não perco tempo com gente da tua laia!
o samurai, ofendido na sua honra, encheu-se de raiva e puxou da sua espada, dizendo:
- podia matar-te, aqui e agora, por causa disto!
ao que o mestre zen respondeu:
- isso é o inferno..
sobressaltado e desconcertado, ao perceber a verdade, o samurai embainhou de novo a espada e acalmou.
continuou o mestre:
- e isso é o céu.'


adaptado de 'negociação para (in)competentes relacionais', josé crespo de carvalho, edições sílabo, 2007, página 196.

27 novembro 2007




a ética (o exemplo exemplar), a inteligência (o rasgo fulminante) e a beleza em sentido lato (inescapável força centrípeta) sempre me fascinaram.

hoje calhou ser a do meio. mas, palpita-me, um pouco mais de tempo e as outras duas não tardam a cruzar-se no meu caminho, sob o mesmo propósito.

a razão: o senhor ali de cima. roland barthes.

inescapável rasgo exemplar. fulminante força. exemplo centrípeto.

house of love, 'christine'

no início da segunda metade dos anos 80, bandas como os 'house of love' anunciavam o movimento 'shoegazer' (literalmente: tocar a olhar para o chão, sem interacção com o público ou com a câmara, músicos quase imóveis, numa espécie de suspensão do tempo nas malhas de uma frente de guitarras eléctricas) e, de certa forma, o 'brit pop' do início dos anos 90.

esta canção é, ainda hoje, icónica para uma certa rapaziada mais 'indie'.

o som, que atravessa toda a canção (espécie de espasmo, espécie de lamento arrastado) é único.

christine
still walking at me
still talking at me
christine
such a sense of loss

estação de inverno: 5-ª estação

hoje, a quinta estação de inverno.


a saudade poética e voraz de maria do rosário pedreira.

e as canções em ponto de rebuçado de don mclean.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

26 novembro 2007

25 novembro 2007

home

24 novembro 2007

despojos do dia*

[dos jornais:]


imagem: 'don't come knocking', de wim wenders


that is no country for old men. (yeats, citado por cormac mccarthy)


'- mr. hemingway, acredita em Deus?
- à noite, às vezes.'

23 novembro 2007

bom fim-de-semana



[há azuis eléctricos que deveriam ser proibidos]



it is night
and the city is deserted.
the lucky ones are at home,
or more likely
there are none left.

in hopper's painting, four people remain
the usual cast, so-to-speak:
the man behind the counter, two men and a woman.
art lovers, you can stone me
but I know this situation pretty well.

two men and one woman
as if this were mere chance.
you admire the painting's composition
but what grabs me is the erotic pleasure
of complete emptiness.

they don't say a word, and why should they?
both of them smoking, but there is no smoke.
i bet she wrote him a letter.
whatever it said, he's no longer the man
who'd read her letters twice.

the radio is broken.
the air conditioner hums.
i hear a police siren wail.
two blocks away in a doorway, a junkie groans
and sticks a needle in his vein.
that's how the part you don't see looks.

the other man is by himself
remembering a woman,
she wore a red dress, too.
that was ages ago.
he likes knowing women like this still exist
but he's no longer interested.

what might have been
between them, back then?
i bet he wanted her.
i bet she said no.

no wonder, art lovers,
that this man is turning his back on you.


'nighthawks - after edward hopper's painting'
wolf wondratschek

22 novembro 2007

no início dos anos oitenta, ao passar da quarta classe para o antigo 'ciclo preparatório', iniciei uma fase importante da minha vida, a qual consistia, em termos muito simples, na frequência de estabelecimentos de ensino fora da minha localidade, normalmente a cerca de 20 kilómetros. passei os 7 anos seguintes (do 5-º ao 11-º ano) nesta espécie de rotina: acordar bem cedo, stress familiar com a logística matinal, ir a correr para a paragem do autocarro, aguentar o frio não raras vezes a rondar os zero graus, meia-hora de viagem e, por vezes, de folia, chegada às aulas pelas 8h20 / 8h30. regresso a seguir ao almoço ou, em certos dias de certos anos escolares, ao final da tarde.
voltando ao início dessa fase da minha vida, para uma criança com 9 para 10 anos, ver-se de repente numa escola com meninos e meninas às centenas, vindos de todos os arredores da vila (hoje cidade) que constituía a centralidade do concelho, foi um pequeno choque. sem nada de anormal, mas mentiria se não dissesse que custou esse período de habituação, para mais feito sózinho, uma vez que nessa altura, por obra e graça da famosa 'telescola', nenhum dos meus amiguinhos me acompanhou na aventura (juntar-se-iam dois anos depois, na transição para o 7-º ano, o que muita alegria me deu - o 'gang' estava de volta!).
nesses dois anos em regime quase solo (olá pedro, olá paulo, olá jorge - os meus amigos da altura que, apesar de mais velhos ou mais novo, no caso do último, me ajudaram a adocicar esses tempos em que me faltavam companheiros de brincadeira), lembro-me muito bem do senhor antónio.
o senhor antónio era o cozinheiro da cantina dessa escola e vivia não longe da nossa casa de família - era 'um dos nossos', por assim dizer.
conhecia o meu pai e, adivinho hoje, não me espanta que o meu pai tenha pedido ao senhor antónio para 'deitar-me um olho', de vez em quando. talvez imbuído dessa responsabilidade, um dia, ao ver que eu não ia à cantina (penso que para aproveitar a hora de almoço em passeios exploratórios clandestinos pelas redondezas - descobrir o mundo..), veio ter comigo e perguntou-me se havia algum problema, se era bem tratado, coisas assim.
quando mudei de escola, do 6-º para o 7-º, ainda que na mesma localidade, as minhas irmãs (mais novas) fizeram o mesmo circuito. dessa vez, por vezes o senhor antónio dava-lhes boleia, no seu carro de sempre: um humilde citroen ax azul escuro.
ao longo dos anos e já reformado, dedicava-se a uns trabalhos no campo, entre outros afazeres próprios da vida numa aldeia da beira alta. à porta de sua casa, passava uma estrada - hoje quase 'mainstream', mas durante muitos anos um mero atalho em terra batida -, que eu usava para poupar tempo e/ou fazer umas curvas mais 'racing', aproveitando as potencialidades do tal piso em terra batida. via-o muitas vezes, pelo canto do olho. outras tantas, via-me ele a mim, que passava já crescidinho, e acenava, cumprimentando-me e eu a ele, naquele ritual que só quem viveu fora das grandes cidades conhece.
nunca mais falámos - de conversar.

..

ontem, em conversa familiar de ocasião, soube que o senhor antónio morreu há quinze dias.
fiquei quase transtornado, sem perceber bem porquê.

ao conduzir para o trabalho, há pouco, lembrei-me de uma coisa. diz assim (e todos vós a reconhecerão, melhor ou pior):

bem-aventurados os que dão a mão ao mais pequenino dos meus irmãos, porque deles é o reino dos céus.

é só isto que tenho a dizer.
um abraço, senhor antónio. até sempre. e muito obrigado pelo conforto que nos deu, quando dele mais precisávamos.


candy says i hate the big decisions
that cause endless revisions in my mind

21 novembro 2007

como este, não há nenhum outro..



you must leave now, take what you need, you think will last.
but whatever you wish to keep, you better grab it fast.
yonder stands your orphan with his gun,
crying like a fire in the sun.
look out the saints are comin' through
and it's all over now, baby blue.

the highway is for gamblers, better use your sense.
take what you have gathered from coincidence.
the empty-handed painter from your streets
is drawing crazy patterns on your sheets.
this sky, too, is folding under you
and it's all over now, baby blue.

all your seasick sailors, they are rowing home.
all your reindeer armies, are all going home.
the lover who just walked out your door
has taken all his blankets from the floor.
the carpet, too, is moving under you
and it's all over now, baby blue.

leave your stepping stones behind, something calls for you.
forget the dead you've left, they will not follow you.
the vagabond who's rapping at your door
is standing in the clothes that you once wore.
strike another match, go start anew
and it's all over now, baby blue.

20 novembro 2007

no meio das aulas de ocasião, intervalo very professional, adornado por bolinhos, cházinhos, cafézinhos. mordomias simpáticas às 8 da noite, ainda que no fundo do fundo saibamos que tudo é uma quase encenação.
no meio do enxame de pós-graduandos, rápido como uma seta, um vulto parece dissimular-se e, enquanto o outro esfrega um olho, tira uma mã-cheia de bolachas.
impossível não reparar no porte alto mas frágil. cheira à légua a dificuldades. um daqueles estudantes.. a quem a vida cobra os seus juros.
e assim a aula ficou diferente.

nunca seremos todos iguais (mesmo que com aspas) e isso, em certos dias certeiros, dói.

se te apanho, vida malvada, atiro-te, como o poeta, direito ao coração.

cabo verde: uma viagem sentimental 8










inesquecível

eu que nunca me esqueço. eu que sempre me lembro.

a primeira vez que percebi a riqueza e subtileza da palavra 'blue(s)'.


e a importância.

19 novembro 2007


imagem in margapinta.blogspot.com (com um obrigado)


tanto que haveria para dizer.
espero que o assunto se resolva, a bem de todas as partes. incluindo todos aqueles que, cada vez que entram num cinema multiplex, se sentem como 'peixe fora de água'.
as histórias ficam, por enquanto, para mim.
- que las hay..

cabo verde: uma viagem sentimental 7






estação de inverno: 4-ª estação


fotografia: ansel adams

amanhã, a quarta estação de inverno.


a poesia desolada de jorge gomes miranda.

e as canções impossivelmente românticas de richard hawley.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

17 novembro 2007

o príncipe

os vencidos da vida

- ou 'the beautiful ones'.


fatalmente recortados contra o céu finalmente cinzento deste sábado, eles estão em toda a parte.

eles são o nosso negativo - aquilo que poderíamos ter sido, aquilo que poderemos ainda vir a ser, aquilo que preferiríamos ignorar.

eles estão em toda a parte. no olhar ausente da mulher de meia-idade, semi-sem-abrigo-semi-hippie, que vende bijuteria artesanal, lado a lado com sacos de plástico onde esconde talvez os últimos traços de materialidade. no rosto dorido do miúdo que, por entre as pernas da multidão já com o botão consumista (ia escrever natalício, mas seria óbvia mentira..) ligado, pede esmola. no corpo vergado daquele senhor de idade, levando pela mão, à porta de nossa casa, o filho - homem feito, adivinhamos - deficiente.

vidas feitas de dor, de solidão - uma via-sacra que nos é impossível imaginar com propriedade, quanto mais sentir.

este bicho-coração* devorador da escassa luz que resta, este bicho-coração que não nos dá descanso e que ainda se revolta e que ainda repara e que ainda se quebra e que ainda não desistiu de lavar do mundo estes traços de ignomínia.

magoam em certos dias as luzes deste natal forrado a minúsculas.


* bicho-coração, tradução literal do original alemão, foi a proposta de título recusada por um editor da nossa praça, para um livro editado não há muito tempo. 'que não era vendável', etc. e tal. ficou um título extenso que incluia algures a palavra 'ameixas'.. no further comments.
'you can't break a heart and have it'*

so fucking true.


* título de uma canção de herman brood, recuperada por black francis (pixies alma mater), no seu mais recente disco a solo. herman brood - cantor e compositor holandês desaparecido tragicamente - é também a figura omnipresente ao longo do disco, espécie de estímulo criativo e de homenageado.

16 novembro 2007

finalmente (embora
saibas que não há
nem fim nem princípio):
deves dizer ainda
que há uma rosa de espuma
no teu peito e que
o seu perfume
não se esgota. e que lá
também existe
uma fonte onde bebem
as flores silvestres. mas não
humildes, como ias
chamar-lhes: altas
como as espigas
do vento, que no vento
se esquecem e que no vento
amadurecem.


albano martins
(ou melhor: Senhor Albano Martins).




o imenso actor que foi charles laughton passou para trás da câmara uma única vez. o filme que realizou é daqueles que entraram directamente para a categoria de filmes de culto: 'the night of the hunter' / 'a sombra do caçador'.

é um filme imenso, de uma riqueza plástica assombrosa, pintado em tons sinestésicos, dir-se-ia que quase expressionista na forma (as sombras, a fotografia, o preto e branco, aquela espécie de nevoeiro, o carácter nocturno) e impressionista no conteúdo (personagens com psicologia, a coexistência de 'acção-acção' e 'acção enquanto cosa mentale').

para a iconografia da sétima arte, fica essa personagem única: o pastor evangélico (?) representado soberbamente por robert mitchum, que carrega consigo a dualidade fundadora (o bem e o mal) e que a explicita sob a forma de tatuagem entre os dedos das mãos (numa: 'love'; noutra: 'hate') e que, no fundo, por ser uma chave tão óbvia e visível, cria em nós uma espécie de rejeição do que vemos ('ninguém pode ser assim tão óbvio!').

é um filme onírico, com cenas nocturnas (a fuga das crianças, ao longo do rio, durante a noite, onde os fantasmas infantis ganham formas animistas) inultrapassáveis, numa espécie de fantasmagoria de braço dado com o fantástico infantil, pairando sobre tudo um pathos (a morte da inocência).

a sinopse pode ser, em traço largo, descrita assim: num lugarejo junto a um rio, habita a família de um criminoso (viúva, dois filhos ainda crianças) que roubou dinheiro e que o terá escondido. alguém que ouviu essa história (um cúmplice?) aparece e insinua-se, conquistando o afecto da mulher e tentando conquistar as duas crianças (que poderão saber onde o dinheiro foi escondido pelo pai). perante a impossibilidade de perceber onde está o dinheiro e com as crianças cada vez mais próximo de perceber que o agora padrasto esconde qualquer coisa muito grave, este tenta, num segundo momento, eliminá-las. é um jogo de sedução e medo, uma dança sinistra, que joga com o poder da sedução do que é 'aspiracional' (a figura de marido? a figura de pai desejado?) e com o conceito de 'revelação' (nem tudo o que parece é; como lidar com o que sabemos, mas não preferíamos não saber?).

é um filme magnífico, inesquecível, feito de ideias geniais, como por exemplo o facto de a personagem de robert mitchum utilizar um assobio característico como 'cartão de apresentação'. o que nos parece, de início, um simples, curioso (e até agradável) 'device', revela-se, mais tarde, afinal a banda sonora perfeita para o medo.

vejam-no e depois mandem-me um e.mail a contar.

há filmes, como há discos e livros e pessoas, que são cometas rasgando o nosso espaço sideral. 'a sombra do caçador' é um deles..

15 novembro 2007

o post óbvio




para mim, a 'ciência do óbvio' é ciência por mérito próprio.

lembro-me sempre dos 'lugares comuns' que usamos no nosso discurso e do esforço de alguns escribas para os contornarem. a mim, não me repugnam nada. gosto de coisas óbvias, quando são simples, certeiras - quando dizem o que há a dizer.

por isso, hoje, brindo-vos com um 'post óbvio'.

já o trabalho de exegese é vosso.

14 novembro 2007

you are about to enter.. the twilight zone..



nada tenho para dizer..
esperem..
esperem..
já vos disse..?
que..

..o amor é uma língua bárbara?

13 novembro 2007

o amor é uma língua bárbara o amor é uma língua bárbara o amor é uma língua bárbara o amor é uma língua bárbara o amor é uma língua bárbara o amor é uma língua bárbara
o amor é uma língua bárbara o amor é uma língua bárbara o amor é uma língua bárbara o amor é uma língua bárbara o amor é uma língua bárbara o amor é uma língua bárbara
o amor é uma língua bárbara o amor é uma língua bárbara o amor é uma língua bárbara o amor é uma língua bárbara o amor é uma língua bárbara o amor é uma língua bárbara
m r m l ng b rb r m r m l ng b rb r m r m l ng b rb r
m r m l ng b rb r m r m l ng b rb r m r m l ng b rb r
m r m l ng b rb r m r m l ng b rb r m r m l ng b rb r
m r m l ng b rb r m r m l ng b rb r m r m l ng b rb r
m r m l ng b rb r m r m l ng b rb r m r m l ng b rb r
m r m l ng b rb r m r m l ng b rb r m r m l ng b rb r

i am a believer in joy divison, hallelujah!



walk in silence,
dont walk away, in silence.
see the danger,
always danger,
endless talking,
life rebuilding,
dont walk away.

walk in silence,
dont turn away, in silence.
your confusion,
my illusion,
worn like a mask of self-hate,
confronts and then dies.
dont walk away.

people like you find it easy,
naked to see,
walking on air.
hunting by the rivers,
through the streets,
every corner abandoned too soon,
set down with due care.
dont walk away in silence,
dont walk away.


joy divison, 'atmosphere'

12 novembro 2007

incontornável


com a morte de norman mailer, é mais um pedaço do 'nosso' século xx que se vai. para quem nasceu na década de 70, o século xx existiu, com todo os seu lastro de misérias miseráveis e de grandessíssimas grandezas. ainda respirámos o ar do tempo e o ar que já não respirámos foi-nos ainda passado por pais, tios, avós, amigos dos pais. com aquele travo realista de quem 'esteve lá', de quem 'assistiu', de quem 'viveu'.
o nosso século é o século que sentimos como 'nosso'.
o meu é o século xx, apesar de boa gente (letrada, amiga e insightful) me dizer que bem poderias (queriam dizer 'deverias', seguramente..) ter vivido no século xix.
não vivi a grande depressão, não vivi o new deal, não vivi a segunda grande guerra, não vivi o baby boom, não vivi o advento do welfare state, não vivi a guerra fria, não vivi o apogeu da cortina de ferro, não vivi a crise dos mísseis em cuba, não vivi os movimentos de independência africanos, não vivi a revolução cultural e o grande passo em frente chineses, não vivi o desmembrar do império britânico, não vivi o tempo das ditaduras na europa do sul, não vivi a esperança dos democratas americanos com os irmãos kennedy, não vivi os primeiros passos dos modernos movimentos terroristas de cariz separatista e independentista, não vivi o apogeu do cinema, não vivi a revolução sexual, não vivi o verão de amor, não vivi os primeiros passos do rock and roll, nem do prog-rock, nem do punk, não assisti às conferências certas, nos momentos e locais certos, pelos modernos filósofos certos, não vivi a nouvelle vague nem a ascensão da performance como arte, não vivi a erupção da contemporaneidade na pintura, não vivi os primeiros passos do homem da lua.
mas sei ler. e sei ver. e sei escutar. e pude ler. e pude ver. e pude escutar.
e tive sorte por poder.
norman mailer, saul below, j.d. salinger, truman capote, gore vidal. um naipe único de homens do nosso tempo que, a partir dos estados unidos da américa, nos ajudaram a ver o mundo como ele passou a ser, a partir da segunda metade do século xx - o meu século.
rip.

é dread ser angolano*


mck, 'atrás do prejuízo'

* nome de compilação onde se pode encontrar esta faixa.

kafka passou pelas bandas de benfica

sábado à tarde, fnac colombo.
numa das minhas habituais rondas pelos escaparates de música, à procura de novidades, fundos de catálogo, curiosidades, oportunidades, consigo seleccionar uma mão-cheia de discos.
dirijo-me a um dos postos de escuta, passo em revista às tropas musicais que me preparo para adquirir e verifico que de dois dos cd's nem um pio..
encaminho-me para o posto de atendimento e

sobe o pano

- boa tarde, gostaria de adquirir estes cd's, mas, como não tocam nos postos de escuta, agradecia que confirmassem que estão em condições.
- boa tarde, é para ouvir?
- não, não é preciso. basta confirmarem que estão em condições.
- não conseguia escutar, é isso?
- sim, é isso.
- sabe isso é por causa dos ficheiros mp3. quando o senhor lê o código de barras na máquina, não está a ouvir o cd, mas um ficheiro central.
- certo. mas, como já lhe disse, não quero ouvir. quero que veja apenas que não têm defeitos.
- pois, mas nós só temos mp3..
- desculpe?
- quero dizer, nós não temos leitor analógico(??) de cds. tínhamos, mas já não temos.
- não estou a perceber..
- não conseguimos fazer isso que o senhor nos pede.
- como assim? não conseguem escutar os cds aqui na loja? então e se estiverem defeituosos?
- tem 30 dias para trocar.
- ou seja, o que me está a dizer é o seguinte: compro, vou para casa, se não funcionar, venho cá e troco. como não me garantem, nada me diz que os novos também não têm defeito. além disso, pagam-me a gasolina é isso?
- pois, entendemos, mas de facto..
- mas de facto uma loja que tem à venda centenas de aparelhos de video, dvd, cd, aparelhagens, etc, não consegue fazer uma verificação tão simples?
- pois, lamentamos, mas..
- talvez seja melhor chamar o director da loja. muito obrigado.

(5 minutos de espera. entra em cena uma nova personagem, uma senhora sorridente e esforçada, mas visivelmente sobre stress e com mais que fazer - nunca o disse, mas adivinhava-se a léguas..)

- muito boa tarde, faz favor de dizer.

tentei explicar o diálogo acabado de ter com os seus dois funcionários, tentando fazer ver o surrealismo da situação.
deslocou-se a um posto de escuta, até que lhe expliquei o que me tinham explicado a mim.. por ali não íamos longe.. interessava era escutar mesmo os cds e não os ficheiros mp3 associados..

- ah, pois.. tem razão.
- posso fazer uma sugestão: porque não vamos até à zona de equipamentos e simplesmente testamos num leitor de cds?
- sabe, não costumamos fazer isso aos clientes.
- desculpe? a senhora é responsável pela loja ou por um segmento da loja? sendo pela loja, não lhe parece ridículo ser incapaz de assegurar a quem compra um produto como um simples cd que o mesmo está em condições, quando tem forma de o fazer, bastando dar meia-dúzia de passos dentro da loja??
- pois, compreendo. mas..
- desculpe interromper: a senhora dá-me ou não razão? é que se é para estar a argumentar, o melhor é tratarmos disto de outra forma.
- pois, compreendo, se não concorda, o melhor é escrever à administração..
- e assim farei, se o entender. mas resolvemos o assunto ou não?

claro que resolvemos o assunto. em 2 minutos e sem qualquer problema.

deve ser a isto que chamam 'experience shopping'.

custa-me estar a escrever isto de uma loja onde vou regularmente. mas, parece-me, é meu dever cívico não deixar cair este tipo de incidentes, infelizmente ainda comuns em portugal, e que mostram uma falta de profissionalismo, brio e inteligência que, em certa medida, faz de nós o país que ainda somos (e não é um elogio, desta vez).

comprei os discos.
mas a música já não me soou tão bem como os artistas mereciam..

estação de inverno: 3-ª estação

amanhã, a terceira estação de inverno.


a poesia gelada de luis falcão.

e o trapézio sem rede do projecto a naifa.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

09 novembro 2007

bom fim-de-semana!




já nos cinquentas, em plena fase de maturidade, o senhor k. conheceu a que viria a ser a sua última mulher, 27 anos mais nova do que ele próprio. seria a sua última mulher em duplo sentido, uma vez que era, de facto, a terceira (oficialmente, claro está; nestas coisas, nunca podemos saber tudo, não é verdade?) e que foi igualmente a sua companheira até ao fim dos seus dias.

diz a lenda, alimentada em parte generosa pela própria, agora senhora k., que o primeiro contacto entre ambos foi 'por telefone'. foi, por conseguinte, a voz o primeiro elemento identitário entre ambos - o que remete, de imediato, para os complexos domínios da 'linguagem'.

impressionado pela sua voz ('impressionado' tem aqui um sentido mais próximo da semântica inglesa em torno da palavra 'impressive'), o senhor k. terá imediatamente criado uma representação visual a propósito. o seu wandering spirit, o seu inner feeling, o seu emotional landscape, o seu sentido musical, a sua forte identidade estética fizeram o resto.

a aguarela de que falamos chama-se 'the unknown voice'.

a senhora k. chamava-se, até então, nina nikolayevna andreevskaya.

o senhor k. era também conhecido como o wassily kandinsky..

escutado com devoção


foto: 'gin tónico' blog


'em sophia é tudo epifania'.

impossível dizer melhor. improvável dizer mais.
dois-anos-dois depois, consegui finalmente escutar A canção, sem desabar por dentro. eu sei que há 'n' canções e sei que, por vezes, me parece que as conheço a todas - ou melhor que elas todas me conhecem a mim.
mas não podemos ler todos os livros de todas as bibliotecas. não podemos domar todas as feras que trazemos nas veias, nem todos os fantasmas com que nos deitamos. um de cada vez.
hoje foi esta. hoje foi este.
pela primeira vez, em dois-anos-dois, em vez de desligar o rádio abruptamente ou parar o carro ou mudar de estação ou desligar-me ou tudo ao mesmo tempo.. passei de 7 para 14 o volume áudio.
nada como um duelo olhos nos olhos, logo pela manhã, para ver de que fibra é um homem feito. a minha é 'um cristal bonito que se quebra quando cai'. ou então não.

08 novembro 2007

estreia

ladies and gentlemen, o chamado 'deep house' faz assim a sua estreia no jardim d'inverno, pela mão do brasileiro gui boratto. tal como acontece com outros nomes de proa dos movimentos electrónicos, a aproximação melódica e estrutural ao formato canção é já bem mais do que simples intenção. e ainda bem, dizemos nós.


gui boratto, 'beautiful life'


[um pedido: vejam o video até ao fim..]

uma sugestão para 'os mais modernos'..

cabo verde: uma viagem sentimental 6


(aquelas duas janelinhas, no canto superior esquerdo da fachada..)



(ao fim de uns dias, transformou-se numa espécie de 'iconic design'..)



(a piscina que ficou por estrear. next time..?)

07 novembro 2007

cabo verde: uma viagem sentimental 5

lembrando os pavilhões de rifas (as quermesses de outro antigamente), as viagens trazem, por vezes, pequeninas surpresas atreladas, tanto maiores quanto maior for a abertura do nosso receptor ao mundo exterior, ao desconhecido, ao que é simplesmente diferente.

durante a estadia, somos surpreendidos com o anúncio pelo nosso amigo sr. x. de que havia sido convidado para júri do concurso.. 'miss cabo verde 2007'! rapidamente, e porque é rapaz de tiro rápido, pensou para com os seus botões que talvez fosse uma oportunidade única para os seus amigos de confraternizarem in loco com a realidade local, num contexto de celebração popular, costela evento folk.

bem pensado, melhor feito.. e assim lá avançamos, felizmente bem jantados, para o que havia de ser tornar uma noite memorável. 'exquisite' seria igualmente uma palavra ajustada.

chegados à entrada, seriam 21h30 - hora marcada para o início das festividades -, lá contornámos as filas e, com passo seguro mas algo expectante, seguimos o anfitrião para a entrada vip. depois de uma brevíssima negociação, o nosso guia espiritual foi conduzido para a mesa do júri, enquanto os seus discípulos eram encaminhados para uma plateia de honra (convidados, patrocinadores, media, etc..). e foi o início de uma looooonga nooooiteeeeeee. trust me.

imperioso dizer que a hora de cabo verde é bastante mais desfasada do que as convenções internacionais dizem. só pode ser isso, uma vez que as 21h30 suavemente deslizaram noite dentro.. para as 00h30! toma lá 3 horas de corropio constante de público, bebidas gratuitas oferecidas por um dos patrocinadores (alô cerveja 'strela' - um abraço ao seu responsável!), cigarros em catadupa (para os apreciadores e outros dependentes), converseta de ocasião, muita observação, idas a uma casa de banho onde se misturavam, já no interior da ala feminina, homens e mulheres, em dupla fila, uma vez que a ala masculina estava fechada. é a chamada adaptação por ajustamento instantâneo. utilizar uma destas instalações, estando separados das filas expectantes por uma frágil portinha sem trinco.. é toda uma sensação. principalmente, quando uma mão mais lampeira e/ou uma mente mais distraída resolve testar a sorte e abrir a dita portinha.. gritos e risadas da ala feminina, pelo que estava prestes a acontecer.. à vista daquela plateia improvisisada. valeram os rápidos reflexos.. e lá nos safámos, inteiros e compostos! algum tempo mais tarde, o nosso amigo sr. d. havia de arriscar uma ida à casa de banho masculina, entretanto aberta. saiu em estado de choque: 3 aplicados moçoilos entretinham-se a destruir parte das 'facilities', com calma e naturalidade aparente. deve ser a chamada 'excepção cultural'.. já que polícia e exército não faltava, pelo menos à entrada do pavilhão onde decorria tão sui generis evento. adiante.

as três horinhas de espera foram sendo enganadas com actuações de artistas de variedades, mais ou menos fraquinhos. o pior foi quando os apresentadores enfim surgiram e tentaram dirigir umas explicações à rapaziada, farta já de esperar (famílias inteiras, faço notar). um imenso urro colectivo, vaias, assobios - lá em baixo, da plateia colocada no centro do recinto desportivo, parecia-nos estarmos a arbitrar um concurso entre a jumentude leonina, os desgraçados vermelhos e os super-fanfarrões - e todos 'on the stone'! gravámos o som no telemóvel, apenas por curiosidade sociológica. é quase assustador. por dentro, o riso lá vencia a estupefacção - de outras vezes, seria ao contrário..

naturalmente, com candidatas vindas de ilhas diversas e competitivas entre si e também oriundas das comunidades na diáspora cabo-verdeana, foi um instantinho até existirem claques, assobios e palmas, consoante a origem das moças e não a sua aptidão para a função de rainha da beleza local. critérios.

irresistível o episódio no qual um dos artistas chamados para abrilhantar a noite se dirigiu às massas e convidou duas pessoas do público (ala esquerda e ala direita) para se juntarem a ele no palco, para um pézinho de dança. lá saiu uma jovem mais afoita de junto dos seus e num ápice apareceu em palco. não dançava mal a rapariga, dentro do estilo menear de anca em fast forward bastante gráfico, mas seria completamente arrasada pelo que seguiria. da ala oposta do público, salta para a pista um rapaz (juro que parecia rapariga..) e, literalmente, arranca um show de dança do outro mundo. acho que vi coisas que nem sabia serem possíveis de fazer com o corpo! impregnado de sensualidade com x, o rapaz arrancou para um solo absoluto, uma performance quase animal - a meio envolvendo o semi-aparvalhado artista que lançou o desafio e pensava 'mas o que é que eu fiz..?!?!?'. o público assobiava, batia palmas, gritava, num misto de excitação e de repulsa/vergonha, a cada passo de dança mais, como dizer, visceral. único, meus caros amigos. no final, o nosso artista amador - curiosamente parecido com o nosso josé castelo branco em certos trejeitos físicos -, passeia-se pelas bancadas, em pose de starlette, agradecendo os aplausos, distribuindo acenos. no palco, o artista principal tentava chamar a atenção há muito perdida. a little star was born - quantas vezes, o vemos, a cores e ao vivo? nós vimos!

seriam 3h30 da manhã quando os resultados saíram. não concordei com o júri, mas concedo que estava a maior distância da passerelle.. o nosso anfitrião, homem de gatilho ligeiro, já vos disse?, teve uma ideia brilhante: terminada a votação e comunicada aos apresentadores, abandonou sorrateiramente a mesa e juntou-se, mais cá para trás, aos seus dois amigos. razão? lapidar: 'eu sei lá se isto vai dar molho! olham e dizem: a culpa é do júri! e quem está no júri? mulatos, pessoas de cor e 2 brancos.. logo a culpa é, com elevada probabilidade, minha!!'. o riso voltou a levar a melhor - como não?

antes de nos lançarmos à noite - sim que isto era ainda o aquecimento -, ainda tivemos tempo para observar as misses, já com as eleitas em estado mais comovido (e para bater palmas especiais para uma candidata que, em nossa opinião, merecia mais do que ser a miss fotogenia). de repente, somos interpelados por uma jornalista local que nos pede o nosso nome. dizemos '____' e perguntamos 'para?'. a graciosa menina escreve no seu bloquinho '___ para', em jeito de nome próprio e apelido! corrigido o engano, lá nos informou que era para a 'secção vip' do jornal, onde deveremos ter aparecido como 'srs. de tal e tal, convidados de portugal'. belíssimo estatuto, é o que vos digo!

já no regresso a lisboa, viemos no mesmo vôo que as candidatas das comunidades de portugal e da holanda. enquanto esperávamos pelas malas, conversa puxa conversa, e a nossa luso-representante desata em 30 minutos de críticas atrás de críticas aos bastidores, à falta de profissionalismo, etc. e tal dos organizadores do concurso. foi a parte séria, por assim dizer. e triste. por verificarmos as insuficiências de um país, através das palavras amargas de uma sua filha; e por pensarmos para connosco quantas e quantas vezes por detrás do glamour e do brilho das luzes se não passam situações complicadas..

ainda assim, o balanço: quite an evening, quite an evening.

miss cabo verde 2007
..e um gostinho a canela para memória futura.

em repeat (obrigado, radar!)


the ronettes, 'be my baby'

06 novembro 2007

cabo verde: uma viagem sentimental 4

no dia da chegada da embaixada lusitana (dois altos funcionários do establishment português, eu e o meu querido amigo d.), o nosso anfitrião-general (o senhor x., figura de proa e de popa do establishment social praiense..), brindou-nos com um périplo pela noite creoula..

foi assim uma espécie de imersão total, uma ronda por 2/3 das capelinhas da cidade. nessa primeira noite-e-madrugada, começámos o tour por um barzinho curioso ('black cat'), típico de um semi-louco, no caso oriundo da europa de leste, que aos 30 anos se instala numa capital alternativa e estabelece-se por conta própria, erigindo um daqueles locais que têm um pé na europa (algures entre o pub inglês e o bistrot francês, pela decoração, iluminação e ambiente) e um pé em áfrica (pela frequênca e pela 'dinâmica' da frequência). o meu primeiro - e curiosamente último - jack daniels foi aí bebericado, sem medo do gelo made in cabo verde (começar logo a infringir os mandamentos, that's always a good start!).

depois, sempre saltaricando de carro, passámos pelo 'max' (entrar e sair, dado o ambiente demasiado 'enamorado' ou 'activamente observante' do local), pelo 'zero' (nem entrámos, a conselho do mestre de cerimónias). seguir-se-iam mais uns quantos locais, variando entre o fechado ('cockpit': o local mais moderno, no sentido ocidental, da cidade) e o inenarrável ('palace'). a meio, passagem e paragem pelo sítio mais feérico (e que, confesso, era o que este vosso amigo procurava como experiência).. a discoteca 'flampa' (que mereceria, dois dias depois, bis).

que dizer do primeiro impacto? algures numa zona que parecia de barracões industriais, mas que era ainda no centro da cidade, ergue-se uma estrutura paralelipípeda, com o tecto em rede (vendo-se o céu..!). o importante, contudo, é a fauna humana, sem ironias semânticas. na que já foi a casa de referência da noite local, há coisa de um par de anos, entrámos e, inesquecível, logo nos encontrámos num local hiper-povoado, sentindo de imediato poros e sentidos invadidos pelo power do kuduro angolano (penso que era), na sua vertente mais musculada, lançando fogo na pista de dança. fisicalidade à vista e à solta, numa espécie de dança sincopada e extremamente ritmada, como seria de esperar num país naquela latitude/longitude.. não aconselhável a almas mais sensíveis e a corpos mais estáticos!

ao final da noite, quase por acaso, esbarrámos e, ao fim de alguma negociação, lá entrámos numa festa privada no terraço de um pequeno prédio, com dj's, bar aberto e uma vista inspirada e inspiradora para a baía da cidade. era a 'noite das bruxas' e foi assim que, por entre disfarces de ocasião e figuras que viríamos a ver recorrentemente ao longo dos dias seguintes (espécie de frequência do lux possível, por aquelas bandas, para dar uma ideia), terminámos a nossa primeira noite. mergulhando enfim verticalmente na especificidade do halloween local, após um longo e curioso vôo planante pelos segredos da cidade nocturna.

sem máscara, sem vassouras voadoras, mas com um pedacinho de magia - e isso é o que procuramos em todas as noites, não é?

05 novembro 2007

cabo verde: uma viagem sentimental 3



auto-retrato aos 33 anos (sem edição..)

»LIBERAL NOS COSTUMES
»CONSERVADOR NOS VALORES
»FEROZMENTE PERSONALISTA
»UM CRENTE NA LIBERDADE
»DESMESURADAMENTE SENSÍVEL
»E COM FOME DE ABSOLUTO

(ou sobre as coisas que encontramos quando navegamos por mails antigos, estes modernos arquivos da nossa vida..)

estação de inverno: segundo programa

por razões técnicas, impossíveis de resolver oportunamente, a emissão da rádio zero foi interrompida durante largos períodos, durante a passada semana.

a emissão do programa 'estação de inverno' prevista para dia 30.10 (com repetição dia 4.11) foi, por esta razão, cancelada.

o programa volta a estar disponível 'on line' amanhã, dia 6.11, no horário habitual (23h-24h), com repetição no domingo, dia 10.11 (19h-20h).

as nossas desculpas, por esta anomalia, ainda que involuntária.

muito obrigado.


http://estacaodeinverno.blogspot.com/

http://www.radiozero.pt/ouvir/

cabo verde: uma viagem sentimental 2

impossível também fechar os olhos à herança portuguesa, absolutamente decisiva e, diria, intrínseca.

sabemos que não é um statement isento de polémica, ou não existisse uma corrente forte no arquipélago que fomenta (e não queremos aqui manifestar qualquer opinião, por manifesta falta de competência) uma visão mais integralista da especificidade cabo-verdeana, por contraponto a uma visão da história que apelidam de 'neocolonialista'.

abstendo-nos de tomar partido, o que nos fica na retina - e portanto é a base possível para a nossa percepção - foi uma impressionante parecença entre certos aspectos que reconhecemos como portugueses e aquilo que, a milhares de quilometros de distância, vimos em cabo verde:

a) a língua, na sua vertente pura ou na sua vertente crioula, e a religião católica são a primeira plataforma comum (e a mais poderosa, naturalmente);

b) menos óbvia, a organização arquitectónica da zona mais histórica, remete-nos de imediato para a imagem das pequenas cidades portuguesas, por volta de meados do século vinte;

c) ainda menos óbvia, a forma de organização das pequenas vilas do interior, nomeadamente o desenho e jogo de cores das suas igrejas (tão parecidas com as nossas igrejas de aldeia, com o seu larguinho à volta e, em povoações maiorzinhas, com um jardim central, local de encontro privilegiado);

d) o modo de vestir dos camponeses (os lenços na cabeça, ainda que mais garridos, nas senhoras mais idosas), igual às imagens da beira alta aldeã da nossa infância;

e) a influência, também, no tipo de oferta comercial que existe. havendo ainda poucos estrangeiros não portugueses dispostos a investir na ilha de santiago, os laços mais afectivos entre estados e o facto de ser um mercado óbvio, quase natural, para algumas empresas e pequenos empresários nacionais, criam uma espécie de pastiche de um certo portugal (o café com pão quente e pastelaria à la portuguesa, bem no centro da cidade; o restaurante casa-de-pasto com os seus franguinhos assados; etc, etc.), que nos dá uma espécie de conforto (encontrar o igual no diferente, por assim dizer).

os exemplos poderiam multiplicar-se. fica a ideia fundamental: somos nós, portugueses, quem, salvaguardadas as inegáveis diferenças e a inviolável identidade cabo-verdeana, é co-responsável por 'este cabo verde' (que é o que há). sem espírito colonial, mas também sem excesso de responsabilidade histórica pelos destinos de um povo com auto-determinação e independência, somos forçados a sermos honestos intelectualmente: na justa medida e com sentido das coisas, estivemos lá, estamos lá e estaremos lá. e isso vê-se, sente-se, vem ao nosso encontro. é, como agora se diz, incontornável.

(sim, é verdade: sentimos um bocadinho de orgulho por esse facto, sem nacionalismos bacocos nem vontade de quintos impérios.)

cabo verde: uma viagem sentimental 1

impossível não recorrer à figura da matrioska russa, para definir a impressão global desta viagem-experiência: a grande áfrica negra » o país cabo verde dentro do continente » a ilha de santiago dentro do país » a cidade da praia dentro da ilha » o hotel trópico dentro da cidade.

a áfrica demencial não existe aqui. não há a áfrica em implosão que nos habituámos a ver nas imagens de televisão e nas sinistras foto-reportagens. não há também a grandeza das savanas, das grandes planícies, com os seus recursos naturais caprichosos, exóticos, únicos. cabo verde é um país inventado - e inventado em larga medida por nós, portugueses -, um país sem grande capacidade de auto-sustentação (sem matérias primas minerais, vegetais ou animais; sem indústria que não ligada ao consumo local ou aos serviços e administração pública) económica, que vive da cooperação externa (incrível o conjunto de obras publicadas patrocinadas e financiadas por países estrangeiros, uma espécie de desfile internacional das longas mãos da diplomacia económica - japão, alemanha, itália, china, etc..) e, nos tempos mais recentes, do filão, ainda algo embrionário, do turismo.

dentro do país-arquipélago que é cabo verde, cada ilha é uma micro-cosmos próprio, que começa na supreendente paleta de tons de pele e de fisionomias. para uns olhos treinados, é fácil reconhecer quem vem de onde e isso sente-se nos mais pequenos detalhes - alguns naturais e humanos, outros contudo no limite de um sistema muito soft de castas. ser de santiago é diferente de ser-se de são vicente - este tipo de afirmações foram uma constante, alimentada tanto por estrangeiros residentes como por locais.

a ilha de santiago, por sua vez, divide-se entre a sua principal metrópole - cidade da praia - e o seu interior. chamamos aqui interior indistintamente ao interior-interior e às pequenas povoações costeiras. existe o traço comum entre estas duas 'interioridades': um modelo económico e social ainda muito rural e com bastantes traços arcaicos e a pobreza visível em todo o lado, a todo o tempo, mas sem manifestações extremas. já a cidade da praia é a ocidentalização possível, o sentido moderno da palavra cidade, mas sem o lado geométrico e organizado das urbes, por exemplo, europeias (sei que é uma grosseira generalização, mas serve os propósitos comparativos). à volta de um pequeno centro histórico - o 'plateau' (e que me pareceu, vejam lá, a figueira da foz! -, cresceu, de forma desordenada, uma cidade organizada por camadas, a partir dessa espécie de centro: a cidade alcatroada dos serviços, algum comércio, hoteis, embaixadas, principais escritórios; uma segunda camada de transição, já zonas residenciais e de modestíssimo comércio; finalmente os bairros semi-degradados aos nossos cânones (mas que são ali standard), com ruas em terra batida, construção caótica e baseada em estruturas em cimento, sempre sem acabamentos e sem qualquer pintura exterior, bairros estes que são a antecâmara das favelas que cercam a cidade, do lado interior (mas, curiosamente, sem constituírem um colete de forças, como noutros sítios).

dentro da cidade da praia, e porque foi este um elemento fundamental da nossa experiência, ergue-se o hotel trópico. este hotel - que merecerá uma comentário mais profundo - é um micro-cosmos social. sendo o lugar por excelência para a realização de reuniões, cerimónias, etc. (com o consequente carácter de quase sede administrativa e os seus desfiles de personalidades), é também 'a segunda casa' da comunidade portuguesa aí radicada. é, pois, sociológicamente um 'estudo de caso': ultrapassando a sua vertente económica, assume-se como um centro de actividade humana com grande riqueza sociológica. mistura de 'montra', local de actividade política, ponto de encontro de uma comunidade estrangeira ou semi-estrangeira, sede conspirativa onde se discutem as pequenas grandezas e polémicas da vida social, local de jogo social ou de acesa e devota observação dos jogos de futebol dos nossos sporting, benfica e porto. voltaremos ao hotel trópico, para falar um bocadinho sobre alguns aspectos que retivémos, incluindo o retrato breve de algumas personagens 'bigger than life mas light' (bem à portuguesa..).

04 novembro 2007

porque ontem é afinal hoje é senão amanhã..

a minha forma, semi-pública e porventura desajeitada, de agradecer a tua irrepreensível hospitalidade e a tua generosa amizade. 25 anos depois, na cidade da Praia, como 25 anos antes, numa serra da beira alta.

obrigado, amigo j., foi bom demais.

valeu a pena, pá!

untitled & uncommented


desenho de criança do darfur
(o darfur nunca existiu, não é?)