31 dezembro 2007

no café-pastelaria da avenida do almirante infortunado, as mesas desapareceram por estes dias, para facilitar a exposição e inerente logística dos fritos e doçaria dourados tradicionais na época.
a velhinha entra, senta-se numa das poucas cadeiras sobreviventes ao frenesim festivo.
- dona maria, hoje não servimos almoço - diz a eficaz empregada, cumprindo com zelo, e não de todo destituída de simpatia, a sua missão laboral.
a velinha olha-a e procura com o olhar gasto algo que bem pode ser percebido como um sinal de confusão, um pedido de ajuda, qualquer coisa. qualquer coisa seguramente.
- menina, para a dona maria há almoço. dona maria, espere um bocadinho, que já trato de si, está bem? a voz que se escutou veio da dona da pastelaria, mulher sexagenária, de sangue na guelra, não especialmente empática. uma mulher de trabalho, sem contemplações para as subtilezas da vida, percebe-se.
o olhar da velhinha repousou.

para mim, este foi o milagre de Natal.
eu que continuo a acreditar em suaves milagres, como diria o grande Eça. aqueles que fazemos uns aos outros.

são também os meus votos para 2008.
ide e dai-lhes que fazer, como diria o joão césar monteiro. ide e mostrai-lhes.
que os milagres acontecem quando a gente quer - assim mesmo, com plebeísmo à mistura - que eles aconteçam.

mai'nada!
- lembras-te dele?
- sim, recordo-o bem. com nitidez quase fotográfica, mas ainda maior.
- e o que ficou?
- como assim?
- sabes como é, com o tempo, fica só o importante. esquecemos os sublinhados, as flores de estilo, as entrelinhas.. o que recordas de forma mais viva?
- que era um tipo esforçado, algo megalómano - mas de forma assim mais interior -, com alma até almeida, críptico, por vezes, um gajo decente, se ainda é possível alguém ser decente, nowadays.
- estou a ver. como homem era isso mesmo, um tipo esforçado, mas de certa maneira tocado por um sentido de perda e de solenidade que lhe impediu o vôo. entendes?
- sim, sim. um homem minúsculo que fazia da sua menoridade assumida grandeza, mas um blogger prodigioso, como naquele título do jorge de sena.
- sim, 'o físico prodigioso', acho que é assim.
- sim, um rapaz só esforçado e sempre adiado - um rapaz por desaguar.
- sim, mas um blogger prodigioso, o sacana.
- brindemos a ele?
- boa ideia. que brindar a ele é brindar a nós próprios. e isso merece sempre, como dizer..?
- ..brinde?
- ora nem mais. brinde!
- brindemos a ele, que é a mesma coisa que brindar a nós. e nós somos a única coisa que temos, não é verdade? como diz aquele rapaz dos piercings, o peixoto ou lá que é: 'a gente tem-se uns aos outros e mais nada'!
- e mais nada. verdade verdadinha - olaré se é.
- pois é.

28 dezembro 2007

one day you will remember



(uma explosão de flores é assim, com a karen o. como mestre de cerimónias. 'cause they don't love you like i love you..)
a moderna teoria teoriza
a vida moderna moderniza.
que se lixe toda esta moderna modorra!
queremos é ser felizes, mesmo que já se não use,
(como aquela barragem no alentejo)
eu pelo menos assim vejo;
da alegria? que se use e abuse..
(eh pá, e construam-me, porra!)

2007




fotos: gregory crewdson

be kind to me - he says

27 dezembro 2007


mazzy star, 'flowers in december'



tinha um cravo no meu balcão;
veio um rapaz e pediu-mo:
- mãe, dou-lho ou não?

sentada, bordava um lenço de mão;
veio um rapaz e pediu-mo:
- mãe, dou-lho ou não?

dei um cravo e dei um lenço,
só não dei o coração:
mas se o rapaz mo pedir:
- mãe, dou-lho ou não?


eugénio de andrade

26 dezembro 2007

e quando eu descobrir o segredo
da nebelina cinzenta
que torna a água barrenta
e sem perdão me esmaga o peito

e quando se levanta de repente
a névoa que cobre o rio
que gela tudo de frio
e escurece a corrente

longa se torna a espera
na névoa que cobre o rio
lenta vem a galera
na noite quieta de frio
e quando...

e quando eu apanhar finalmente
o barco para a outra margem
outra que finde a viagem
onde se espere por mim

terei, terei mais uma vez a força
para enfrentar tudo de novo?
como a galinha e o ovo
num repetir de desgraças

longa se torna a espera
na névoa que cobre o rio
lenta vem a galera
na noite quieta de frio
e quando...



xutos & pontapés

em 2007 eu aprendi que em 2006 não tinha aprendido

post publicado há sensivelmente um ano:


em 2006 eu aprendi (vol.I)

que as metáforas são um perigo. podemos viver de metáforas em sentido literal, mas sem alegria literal. ou melhor, podemos ser felizes metafóricamente - o que é uma forma literal de se ser 'a-feliz'.

que a 'salvação' raramente nos bate à porta, por interposta pessoa. a via-sacra é nossa e o caminho só nós o podemos percorrer. os amigos são os pontos de apoio, as boxes, as áreas de serviço do nosso contentamento.. mas o piloto somos nós, haja ou não co-piloto, roadmap ou gps (normalmente não há).

que a grandeza se vê muito mais nas coisas pequenas do que através de gestas heróicas e actos de bravura.

que o amor (em sentido estrito) continuará a ser o segundo maior mistério. e que o primeiro é o AMOR (em sentido amplo).

que quem cita outrém frequentemente, está a precisar de saltar para o palco mais vezes. não obstante serem bons conversadores e sujeitos com perspectiva, urge saberem que há mais vida para além da citação grandiloquente. - estou-me a citar.

que o vencedor nunca é óbvio. a bola é mesmo redonda, são mesmo onze de cada lado, o jogo termina mesmo só no fim. (e que para o ano há mais.)

que nem sempre estamos à altura da nossa biografia; e que nem sempre a nossa biografia está à nossa altura.

que continua a ser possível fazer diferença. e isso faz a diferença.

que o azul é a cor dos deuses e a poesia a sua voz.

que a música salva. salvo erro.

que as saudades são aquilo que não devemos desejar nem ao nosso mais fiel inimigo.

que os detalhes são, em regra, aquilo que nos permite perceber, antecipar, intuir. em geral, claro está.. não vou agora entrar em detalhes ;-).

25 dezembro 2007

enquanto tomava o duche de natal, as lágrimas misturavam-se com o chuva de água tépida, na já habitual celebração em torno das figuras extintas.
o natal tornara-se, com o passar dos anos, um conceito complexo, mistura descontrolada de sentimentos doces com recortes pontiagudos de perfis dissolventes. a valsa do adeus tem inúmeras materializações - o dia de natal é apenas uma entre as demais, ainda que com o pequeno senão de ser particularmente 'detached' dos bons usos e melhores costumes. a contra-vapor, por assim dizer - parecia-lhe a expressão certa. mas expressões certas tinha ele centenas, espalhadas pela algibeiras, escondidas nos forros, atrás da orelha, por entre os dedos.
as lágrimas podiam sempre ser terapêuticas - ler muito tem destas vantagens, há sempre uma aforismo 'new age', uma interpretação cosmocómica à mão de semear -, lera algures e tentava agora fazer bom uso dessa mezinha. sempre era melhor que nada. e, como ele bem sabia, tudo era sempre melhor que nada, esse nada de que fugia a sete pés. distraia a mente com estes artifícios - uma vez jongleur do coração, para sempre trapezista dos sentimentos. pouco lhe importava que fossem próprios, não tinha argúcia para tanto, nem era especialmente hábil no manejar escorreito das portáteis e sanguíneas armas de manipulação à distância. sabia de palavras, não sabia de mais nada. já era alguma coisa. afinal sempre era mais alguma coisa que nada - esse nítido nada de que fugia sete vezes sete pés.
o problema destas artes menores é que nunca são potentes o suficiente para iludirem a realidade. as artes maiores fazem as vezes; as artes menores nem isso. é como ser polícia às portas de lisboa e usar à lapela um aviso dizendo 'a pistola deste cavalheiro é de pólvora seca'. ineficaz, no menos ácido; ridículo, na realidade.
as lágrimas - que quase havia esquecido - batiam contra a face e rolavam corpo abaixo, na sua inexorável caminhada para o ralo da banheira. nem isso era possível salvar, nenhum museu sairia dali. um museu sem espólio é uma imagem triste, deprimente ('um dia houve coisas aqui, lamentamos apenas ter para mostrar paredes brancas'). riu-se para dentro. mas o riso, essa sim uma arte maior, não deixa de ser o que é - umas tréguas que o deserto concede, um adiar. nada mais. é claro que umas tréguas sempre é melhor que nada. esse nada de que ele fugia a sete vezes sete vezes sete pés.
lembrava-se ainda dos momentos na sua vida em que as lágrimas brotaram de dentro dele com aquela força improvável e sempre supreendente que só a alegria inesperada tem. lembrava-se de episódios familiares, de momentos de amizade exponenciada em 'maximum overcharge', mas do que se lembrava mais intensamente era das mulheres a quem, por momentos, ousara oferecer as suas próprias lágrimas. há quem preferira reeceber, há quem prefira a materialidade - ele não, sempre optara por dar e dar a coisa, julgava ele, mais importante.. dar-se. mas isso era nos tempos em que ainda haveria finais felizes, animais nas quintas dos livros infantis, manhãs de sábado com alegria torrencial, céus de onde caíam catadupas de rebuçados com sabores vindos de séculos passados. agora, e ele sabia-o bem, já não era mais possível. quer dizer, ainda era um bocadinho possível, mas cada vez menos. alegrava-o o facto de que mesmo este menos era mais um bocadinho que nada. esse nada de que ele fugia..
lembrava-se dos vestidinhos bordados na pele das mulheres que amara. de como lhes admirava os contornos, de como as envolvia nos seus esquissos nunca revelados.. vestidos de uma peça única, de linhas direitas. impecáveis saias plissadas, justas e a meia altura, camiseiros de algodão imaculadamente brancos, casacos compridos com cortes anacrónicos, vindos dos confins dos tempos, jeans luminosamente justos. lembrava-se de cortar o tecido (as suas lágrimas) e de dizer de si para si que agora sim, a obra-prima estava ali. que o sentido tardara mas chegara. que o esteta que havia nele encontrara enfim a matéria-prima radicalmente certa.
ah, alquimista de feira, como são volúveis os sonhos.
ah, mágico sem magia, como são terríveis os sonhos forjados na bigorna já fria.
ah, poeta sem dom, como são escuras as palavras sem luz.
enquanto repetia a lenga-lenga de ocasião, parecia-lhe agora captar cristalinamente o pling pling das lágrimas por entre a torrente sonora da água do chuveiro. como se tivesse a capacidade nos seus ouvidos de separar os sons em pistas múltiplas, isolando as diversas camadas. uma mesa de mistura portátil, ao pescoço. ideia estranha esta, diria ainda de si para si, mas não suficientemente estranha para atropelar o pling pling. as coisas têm a sua ordem. e as lágrimas têm a sua prioridade.
fechou a água do banho.
vestiu os jeans, a camisa de seda castanha escura, o pullover castanho, dois tons acima, deu a volta certa ao cachecol azul-escuro. calçou os sapatos desportivos, com relativa lânguidez.
arrumou meticulosamente o quarto, como sempre fazia.
desceu.
senteu-se à mesa de família.
e disse:
- feliz natal para todos.
sorria por fora, mas se houvesse quem adivinhasse a largueza do mar que o inudava por dentro, iria jurar que era humanamente impossível. que nem toda a água de todas as serras das redondezas chegariam para completar aquela espécie de depósito interior em permanente convulsão.
repetiu:
- feliz natal.
sorriu outra vez.
pensou: ou escrevo isto ou rebento.
(e rebentou).
(ou então escreveu).
(ou então nada, esse nada de que fugia a sete vezes sete vezes sete vezes sete..).

24 dezembro 2007

estação de inverno: 9-ª estação

amanhã, a nona estação de inverno.


a poesia bucólica & melancólica dos verdes anos de eugénio de andrade.

e as canções 'bigger than heart' de neil young.

um programa especial, de certa maneira.

Feliz Natal.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

22 dezembro 2007

21 dezembro 2007

uma prendinha cinéfila..

(obrigado, do fundo do coração, a todo/as - this one is from the heart)

um Natal bonito - vol.4 (e a minha canção de Natal)



it was christmas eve babe
in the drunk tank
an old man said to me, won't see another one
and then he sang a song
the rare old mountain dew
i turned my face away
and dreamed about you

got on a lucky one
came in eighteen to one
i've got a feeling
this year's for me and you
so happy christmas
i love you baby
i can see a better time
when all our dreams come true

they've got cars big as bars
they've got rivers of gold
but the wind goes right through you
it's no place for the old
when you first took my hand
on a cold christmas eve
you promised me
broadway was waiting for me

you were handsome
you were pretty
queen of new york city
when the band finished playing
they howled out for more
sinatra was swinging,
all the drunks they were singing
we kissed on a corner
then danced through the night

the boys of the nypd choir
were singing "galway bay"
and the bells were ringing out
for christmas day

you're a bum
you're a punk
you're an old slut on junk
lying there almost dead on a drip in that bed
you scumbag, you maggot
you cheap lousy faggot
happy christmas your arse
i pray god it's our last

i could have been someone
well so could anyone
you took my dreams from me
when I first found you
i kept them with me babe
i put them with my own
can't make it all alone
i've built my dreams around you

um Natal bonito - vol.3



i'll protect you from the hooded claw
keep the vampires from your door
when the chips are down i'll be around
with my undying, death-defying
love for you

um Natal bonito - vol.2

um Natal bonito - vol.1

20 dezembro 2007

tough ain't enough, baby


the national, 'mistaken for strangers'

assim vai o (nosso) mundo

Se assistir a um desembarque de imigrantes clandestinos na costa portuguesa o que faz?

Chamo as autoridades 63%
Tento ajudá-los sem chamar as autoridades 19%
Não faço nada 18%

Total de Votantes: 543

in público on-line, 13h15, 19.12.07

19 dezembro 2007

MONOTONIA

a pedra que bateu na porta da casa
não era uma pedra qualquer. trazia
a força do teu pulso e da tua ira.
se porventura te dava ouvidos
e desgastava ainda mais o pensamento,
era porque já nada tinha para desgastar.

não admira que ficasse em brasa.
fingia que ia ter contigo, ou que não ia,
visto de fora parecia uma coisa muito gira.
adormeço entre grunhidos e latidos
com a possível droga do momento.
sem um cão sequer com a cauda a dar a dar.

coisa comum: foste-te embora e embora
haja no mundo outras preocupações,
só memorizo o teu nome e a tua cara.
imaginaste-te corpo cintilante, desafiaste
os deuses, ou apenas Deus, e os deuses,
ou apenas Deus, esqueceram-se de te dar companhia.

todas as memórias pela borda fora
e no corpo, localizadas, certas sensações.
descubro água na terra, aponto a vara
e nasce em cada ramo uma firme haste.
é tempo de terminar com os adeuses,
escrevo enroscado na minha monotonia.


helder moura pereira
sei que não são consensuais. que têm um toque mainstream que chateia a brigada do bom gosto. que fazem cedências. que as entrevistas dos rapazes e da rapariga não são particularmente conseguidas.
mas, olhem, deixem-me dizer-vos, que é um gosto escutar canções assim, feitas aqui e agora - aqui aqui, agora agora.
lembro-me com nitidez daquele final do concerto dos massive attack, no pavilhão atlântico (seria 1998?, 1999?), em que os membros da banda distribuíam em mão os flyers que anunciavam um primeiro concerto no CCB, a propósito da edição do primeiro EP ('digital atmosphere').
'chegaram lá' - é essa a lição. goste-se ou não do 'lá' (e eu gosto), o importante é o 'chegaram'.


postcard

18 dezembro 2007

you get mistaken for strangers by your own friends
when you pass them at night under the silvery, silvery citibank lights
arm in arm in arm and eyes and eyes glazing under
oh you wouldn’t want an angel watching over
surprise, surprise they wouldn’t wannna watch
another uninnocent, elegant fall into the unmagnificent lives of adults


the national, 'mistaken for strangers'

estação de inverno: 8-ª estação

hoje, a oitava estação de inverno.


a poesia desencantada de helder moura pereira.

e a utópica procura da canção de amor perfeita.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

16 dezembro 2007

a room with a view


[composição: erik satie]

uma lágrima dura 7,17 minutos a cair

14 dezembro 2007




nunca vi nenhum filme teu, naquele jeito característico meu de, à razão de tanto querer saber tudo sobre tudo, acabar sabendo nada sobre pedaços importantes do nosso 'cultural landscape'.

sei que foste excessivo, que tinhas um feitio não raro insuportável, que a tua vida privada foi, talvez à semelhança da tua obra, torrencial, vertiginosa, sinuosa, por vezes, 'incompreensível'.

atravessaste uma época sem glamour, num país a braços com o lado mais negro da sua psique, falavas e filmaste numa língua cheia de esquinas e de ângulos ríspidos.

mas, que raio, quem deixa uma cinematografia com mais títulos do que anos de vida (40 e picos filmes vs. 37 anos vividos..); quem deixa uma cinematografia que é um tratado sobre os abismos da alma; quem deixa um rol de filmes com nomes tão consistentemente interpelantes como aquele que tu deixaste.. merece que, mesmo sem ter visionado um único filme completo, aposte que tinhas em ti qualquer coisa à solta, ou melhor, qualquer coisa solta. qualquer coisa que tentaste dizer, da maneira que podias, da maneira que sabias - por fotogramas em movimento.

[rainer werner fassbinder, alemão, morreu aos 37 anos.]

o amor é mais frio do que a morte
cuidado com essa puta sagrada
as lágrimas amargas de petra von kant
o medo come a alma
o desespero de veronika voss
num ano de treze luas
o direito do mais forte à liberdade
roleta chinesa
eu só quero que vocês me amem
oito horas não são um dia
como um pássaro no fio
o medo do medo
desespero: uma viagem para a luz

querelle

(nota: alguns títulos referem-se a encomendas para televisão; algumas das traduções para português são em versão brasileira).

13 dezembro 2007




não é um statement político, mas é um statement civilizacional.

cada qual que leia à sua maneira o 'underlying purpose'.


postcards from my 'poppy poppy' heart


the sundays, 'here's where the story ends'

12 dezembro 2007

30.000




30.003 hits, desde janeiro de 2007.

sois muito generosos - é como vos digo.

muito obrigado a todo/as.

no fundo, sois vós quem dá sentido ao jardim.

e isso é sempre sempre sempre

priceless.



[de como se encontram, em dias felizes, cintilantes críticas de cinema maiúsculo - um acto de amor em palavras.]


a sombra do caçador - charles laughton (1955)

era um rapaz que guardava um tesouro,
uma espécie de constância, se quisermos,
e não sabia a quem o confiar. a vítima ideal,
dir-se-ia, de todos os piratas. mas não,
não era esse o caso. no epicentro da constância
o que ferve é amor, e este era um rapaz
conduzido pela voz de seu pai. havia nele
o dom da fidelidade. nós, que facilmente nos
vergamos a potências de melaço e sentimentos
indolores, não sabemos nada disso.
ele sabia. e assim, quando o lobo, de olhos
lacrimosos, foi rondar a sua porta, o rapaz
fez o que Cristo faria: deixou a sua casa
e fugiu por cima da água, ao encontro
de uma cruz de carne e osso. onde pôde,
finalmente, repousar. e o mal, mesmo
viajando noite e dia, nunca soube dar com ele.
foi sorte, dizeis vós. não foi. simplesmente,
era um rapaz que possuía um tesouro
a que se agarrar, e também a necessidade
de o entregar a quem, de não ser como os demais.



josé miguel silva.

[uma pessoa lê isto e.. oh boy..]

estação de inverno: 7-ª estação

se bem que a rádio não seja uma ciência oculta, a parte mais técnica / tecnológica pode, por vezes, sê-lo.

lamentavelmente, e por motivos ainda insondáveis para o autor, o programa de ontem não estava em condições mínimas, abundando os 'saltos' ao longo da emissão. parecia que algum 'deejay' estava a treinar um nada subtil 'scratching', usando como base o nosso programinha nocturno..

coisas que acontem, dir-me-ão. certíssimo. ainda assim, o meu pedido desculpas aos 5 ouvintes que estavam ligados.

tentaremos repôr a emissão em condições, para o próximo domingo [19h-20h], caso seja tecnicamente possível (isto é, caso o 'master file' seja recuperável).

muito obrigado a todo/as, pela V/ generosa compreensão.

[fazer rádio para uma pequeníssima minoria tem destas vantagens - sabemos o nome próprio do nosso 'target' e até dá para usar técnicas de marketing literalmente 'um para um' ;-).]

11 dezembro 2007



se houver alguém que não goste,
não gaste, deixe ficar
eu só por mim quero-te tanto
que não vai haver menina para sobrar.

estação de inverno: 7-ª estação

hoje, a sétima estação de inverno.


a poesia com moral em slow motion (a poesia ou a moral?) de josé miguel silva.

e as canções retrofuturistas de spacek.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

10 dezembro 2007



he tried to do his best
but he could not.

please take my advice,
please take my advice
please take my advice.
open up the tired eyes,
open up the tired eyes.

08 dezembro 2007

oui, benjamin, porquoi pas le brésil..?
oui, charles, que reste-t-il de nous amours?





pai, um coração calcinado é mais ou menos assim.

mas as coisas mudam, filho. as que não deviam mudar e as que devem, as que têm que mudar. mas como em dias escuros é difícil distinguir umas de outras, mais vale que assim seja, que todas as coisas mudem, filho.
e, se calhar - nunca o saberás de ciência certa -, ainda bem.
e a curva do tempo, na sua inexorável marcha, apanha-nos.
há 20 anos, este ('violent femmes', violent femmes) foi o mais influente disco dos meus 15 anos.
hoje, 20 anos depois, uma das 'bandas coqueluche' da modernidade independente pega numa das suas faixas e faz isto..
(há 20 anos os arcade fire tinham 15 anos).
quando a curva do tempo se cruza com a curva do espaço, coisas bonitas acontecem.

cantem comigo:

i need someone
a person to talk to
someone to care, to love
could it be you..



arcade fire covering violent femmes' 'kiss off'

07 dezembro 2007



there's more to the picture
than meets the eye.

brincando aos clássicos

diz o jorge:

'está-me a saber mal este whiskie de malte
adorava estar in, mas estou-me a sentir out'

e olhem que ele sabe das coisas.

06 dezembro 2007

insightful

por uma vez, uma citação directa e completa de um post alheio.
que venha de uma mente brilhante e lúcida - e os qualificativos são meus e só meus - não deve espantar, dada a qualidade do insight.
o pedro está a falar de quê e de quem, a propósito de uma actriz?
dão-se alvíssaras.

(ah, e os destaques a bold são meus. elementar.)


Naomi Watts

"Houve um crítico que descreveu o registo mais comum de Naomi Watts como «a kind of flustered moral aggrievement», um tormento moral confuso. Mas não são apenas essa substância e esses estados que definem Naomi Watts. Há nela também uma entrega total que é acompanhada de uma enorme dúvida sobre os resultados dessa entrega. Nos seus momentos mais sofridos ou mais apaixonados, nunca Naomi exprime exactamente a alegria das pessoas para quem as coisas são fáceis e imediatas. Algumas vezes os seus papéis exigem uma quase ingenuidade (ou um jogo com a ingenuidade); mas parece quase sempre que ela já pensou naquilo que vai vivendo, talvez porque já o tenha vivido antes. É uma pessimista com esperança, não por ideologia mas por feitio.

Em Eastern Promises, o que acima de tudo canaliza isso é o instinto maternal (como já tinha sido de algum modo em fimes recentes como King Kong ou The Painted Veil). Naomi soube que estava grávida no começo das filmagens, e isso acentuou o que já estava no argumento: aqui todas as cenas vibrantes são de natureza maternal. Como todas as pessoas um bocadinho tristes e um bocadinho desesperadas, ela tem uma espécie de combustível que assegura a sua sobrevivência, que neste caso é a ternura. Todo o seu sofrimento moral passa nalgum momento por gestos ou pensamentos ternos, que aliás nem sempre se distinguem do próprio sofrimento.

Nesse sentido, Naomi Watts não tem felizmente nada a ver com a mulher concreta ou inventada dos tempos moderníssimos, como a «feminista capitalista» das séries televisivas ou a inocente vestida à puta dos videoclips. Naomi sofre e sente, como toda a gente, mas não tem medo de sentir e sofrer à frente dos outros. Essa coragem é que nos comove, porque a vemos tão pouco. E poucas vezes treme assim nuns olhos tão azuis e tão líquidos."



Pedro Mexia,
in http://estadocivil.blogspot.com

05 dezembro 2007


mr. alfred


m. luis


mr. wong


mr. john


mr. frank


agradecendo, com uma pontinha de ironia, à senhorita ana salomé o ingrato desafio, passo a indicar 5 filmes que, no momento, me ocorrem como podendo ser considerados, não 'os melhores' filmes que vi, mas sim 5 dos filmes que mais me 'marcaram / influenciaram'. não é pormenor de somenos, para quem se habituou desde cedo a ver no cinema bem mais do que uma arte, antes uma escola de estética de braço dado com uma escola de valores.

it's a wonderful life, frank capra
(porque tem tudo o que admiro na aventura humana:_________________________________).

vertigo, alfred hitchcock
(porque é a mais esplendorosa obra de arte sobre os mistérios do amor e da morte, e de como são gémeos siameses; porque nos mostra, sem explicar, o carácter demente, obssessivo e salvífico do amor, assim como o papel fundamental da 'utopia do eu' na 'construção - idealizada e estilizada - do outro').

los olvidados, luis buñuel
(porque me alertou de maneira pungente para os deserdados do mundo e me reforçou a convicção de que a justiça e a salvaguarda da dignidade, ambas em sentido lato, são condições sine qua non para um mundo melhor e para que a liberdade - esse valor tão querido - possa existir na sua verdadeira e operativa acepção).

the sun shines bright, john ford
(porque, rimando com o primeiro destes filmes, me remete sempre para o papel do indivíduo na sociedade. eu, feroz personalista, me confesso.. apesar de tudo, é um filme menor na cinematografia deste gigante. há 12 anos atrás, valeu-me uma resposta num painel de recrutamento que talvez me tenha garantido o meu primeiro emprego. só por isso, tem lugar no meu 'passeio dos heróis afectivos').

in the mood for love, wong kar way
(porque é um quase 'guilty pleasure'. tal como para uma lareira ou para um aquário, posso pôr o filme em modo aleatório e contínuo.. e deixar-me ficar a olhar para ele. o esteta que há em mim encontrou aqui o local certo para o magistério ultra-romântico).


(que me desculpem rohmer e allen. truffaut e visconti. antonioni e bergman. césar monteiro e mizoguchi. kurosawa e yimou. lynch e cronenberg. ozu e kiewslowski. cukor e hawks. kazan e lang. lubitsch e mccarey. powel e pressburger. preminger e dreyer. ray e von sternberg. walsh e welles. e dezenas de outros mestres..)

04 dezembro 2007

i believe.

estação de inverno: 6-ª estação

hoje, a sexta estação de inverno.


a poesia tocada pela suavidade divina de mário rui de oliveira.

e as canções arrebatadas e arrebatadoras de tim buckley.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

até um dia, tony.



(a isto se chama uma personagem 'bigger than life'; a isto se chama o génio criativo humano em furiosa combustão. vou ter saudades.)

03 dezembro 2007


imagem: wim wenders, 'as asas do desejo'


o semblante fechado e envelhecido era mais carapaça do que identidade, via-se a léguas, se assim se quisesse ver.
na garagem onde assentou arraiais, o homem tinha um pequeno quartinho, misto escritório, misto dormitório, misto 'posto de recepção', de onde se afastava unicamente para dar instruções aos carros que, descompassadamente, apareciam vindos daquela rua secundária. os donos dos carros, gente bem na vida (não necessariamente gente bem com a vida, quanto mais gente de bem), olhava-o com aquela displicente superioridade que certos veículos e respectiva cavalagem atribuem aos seus detentores - espécie de propriedade transitiva dos bens materiais (outros usam a palavra 'estatuto').
levantou-se, como tantas vezes, e começou, em registo minimal, a dar indicações, por forma a que o automóvel desse com a justa entrada, sem danificar a sua preciosa pintura metalizada. lá indicou, sem um sorriso, o lugar que achava adequado, de modo a permitir a fácil manobra das outras viaturas. terminada a tarefa, voltou para o seu lugar, entregando antes um papelinho (para posterior validação no restaurante a quem aquela garagem dava apoio).
virou costas, sem um sorriso, e os seus cabelos brancos compostamente desalinhados indicaram-lhe o caminho de volta ao aquário que lhe servia de abrigo, escritório, posto de observação (outros usam a palavra 'casa').
os utilizadores daquele automóvel, uma meia-dúzia, quase nem repararam nele, até que um deles, por certo menos cumpridor dos rigores do protocolo social, se virou para o aquário e reparou na presença de um gato. um gato a espreguiçar-se dá sempre um sinal de aristocracia a quem se encontra à sua volta - e as pessoas gostam de estar perto de aristocratas.
reparando em quem afinal reparava, o velho homem dos cabelos brancos (podia ter sido um pianista de renome, com a sua figura esguia e estranhamente altiva) baixou-se e, de um lugar baixo situado junto aos seus pés (adivinhamos, porque também poderia ter sido um acto de magia), retirou dois gatinhos ainda bebés.
pegando nos gatinhos com o carinho que dedicamos às coisas poucas que salvaríamos de uma vida, fazia-lhes festas, enquanto o gato maiorzinho (de repente, para todos tornava-se evidente que era uma gata-mãe daquelas duas crias) continuava o seu show digno de uma 'catwalk' parisiense.
as seis pessoas haviam parado o seu passo esfomeado e rodeavam agora aquele improvável aquário, dentro da garagem improvável, algures a meio da rua improvável. reparavam naquele jogo de abraços entre os gatinhos e o velho homem, só possível em que reúne em si as potencialidades do desejo puro, a sensibilidade da dádiva desinteressada e o amor incondicional por qualquer vestígio de ternura. gatinhos e homem como que se fundiam, num espectáculo que mereceria decerto ser grafado com maiúsculas trabalhadas (como antigamente se fazia).
o rapaz ficou para trás e olhava para os cinco companheiros que olhavam o homem dos cabelos brancos cada vez mais impecavelmente desalinhados. e olhava os gatinhos. e olhava o homem. reparou então em duas coisas simples: o rosto, há minutos frio e fechado, ganhara vida, expressividade, doçura; os olhos, até há pouco baços e gelados, eram agora acrobatas translúcidos, numa dança de luz. ia jurar que eram olhos que iluminavam, mas lembrou-se daquela gente que por vezes lhe diz: 'rapaz, de um berlinde fazes um planeta - isso é lá coisa que se apresente como cartão de visita em pleno século 'vintium'??'.
durantes os segundos que se seguiram, não se ouvia um som, um ruído, como se o quadro ficasse para sempre captado num 'slow-motion', com a vida objectiva suspendida. e toda a gente sabe que, em slow motion, não há som. quer dizer, pode haver, mas só em pós-produção. e, nesse dia, os anjos de lisboa, à maneira dos seus irmãos que cruzam os céus de berlim, não tinham tido ainda tempo (era, como dizer, humanamente impossível, mesmo para um anjo) para a dita pós-produção..
o rapaz respirou fundo, imobilizado em si mesmo. pelo canto do olho, reparou num pequeno televisor, companhia certa em noites frias e inóspitas do velho homem dos gatinhos. pareceu-lhe que do televisor não vinha som algum (o que batia certo com a impressão de 'slow motion' que havia captado precisamente há uns segundos atrás), apenas uns quantos frames, lentamente lânguidos e com a patine própria do preto e branco mais clássico. pareceu-lhe ver o sorriso de uma actriz de felinni, sorrindo-lhe.
ainda hoje é capaz de jurar que aquele filme, antigo por certo, tinha sido feito em plena 'cidade do cinema', para que, décadas depois, servisse de caução afectiva àquele caudal felino - o homem e os seus gatos -, àquele rio improvável e imparável que o inundou.
quando chegou a casa, era dos olhos iluminados que melhor se lembrava. e dos gatos. e do porte daquele pianista por acontecer. e do sorriso daquela julieta italiana, na televisão sem som. enquanto se despia da pele suavemente molhada, pensava de si para si, em como, por vezes, basta o fósforo certo para iluminar uma vida (outros usam a palavra 'coração').

nunca mais ouviu falar do homem dos cabelos brancos educamente desgrenhados. mas recolheu na rua dois gatinhos, que apareceram à sua porta.
o seu cabelo, com o passar dos anos, envelheceu e ganhou tons brancos. restos do poeta por acontecer que um dia houve em si, deixou-o o crescer, ganhando aquele desalinho elegante dos artistas clássicos (que secretamente admirava em menino).
os anos passavam e as pessoas admiravam-se por que razão andava aquele homem, ainda conservando uma pose elegante - e, diziam alguns, altiva -, sempre acompanhado por dois gatinhos pequeninos que parecia terem-se simplesmente recusado a crescer ('como se isso fosse possível', dizia o chefe da repartição de finanças local).

do alto do prédio que o viu passar de menino a rapaz, de rapaz a homenzinho, de homenzinho a adulto e de adulto a homem já com algum do peso próprio de certas idades, gabriel pensava para consigo que tinha valido apena aprender a falar aquela língua meia eslava, meia latina, meia grave. afinal, ser anjo em terra alheia tem muito que se lhe diga.

01 dezembro 2007

dezembro


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