31 julho 2008

and 'love is a mad dog from hell'*



* charles bukowski

autoria: jeff aerosol



museu efémero

30 julho 2008

inesquecível




[em conversa, há poucos dias, lembrei-me deste filme do mestre japonês akira kurosawa, pouco conhecido por estes 'filmes de câmara', da primeira fase da sua carreira. o cinema que mudou o mundo é assim. vê-se uma vez, numa longínqua noite de sábado, talvez ainda na tvi - o saudoso lauro antónio mostrando-nos os clássicos -, e nunca mais se esquece. pelo trailer, associado ao histrionismo que parece existir na interpretação e à rugosidade algo agressiva da banda sonora, pode parecer algo 'áspero', 'esquinado'. não é. é um belíssimo filme sobre o ocaso de um homem comum que, num último gesto de grandeza e humanidade, resolve negar a sua própria natureza (ou, pelo contrário, deixá-la finalmente vir ao de cima?). é uma balada para mais um solitário urbano, espelho do país devastado que era o japão desses dias, ferido de morte no seu orgulho. pode ver-se como filme político, no sentido sociológico, ou como um filme sobre um homem no seu labirinto mais íntimo. seja como for, aqui fica a memória grata, senhor kurosawa].

aposta do jardim



['baile de outono', um filme de veiko õunpuu. estreia esta semana, em lisboa.]


estação de inverno: 37-ª estação (horário especial!)


foto: wallpaper do windows vista, 'indian summer'


a título excepcional, a 37-ª estação de inverno irá para o ar hoje, quarta-feira, pelas 21h00.

último programa da primeira série, revisitará, em registo livre, as raízes e a 'pequena história' do programa. acompanhar-nos-ão meia-dúzia de poetas que estiveram em destaque, ao longo destas 36 estações, assim como um fundo musical composto por estilos musicais que, por alguma razão, não cabem normalmente no formato mais típico do programa: jan garbarek, fréderic chopin, chet baker, erik satie, entre outros. e ainda uma ou outra surpresa, quem sabe a voz de um ou outro poeta ;-).

a estação de inverno voltará, se tudo correr bem, no início de setembro.

até lá, votos de um verão cheio de dias bonitos, se possível com um livrinho de poesia no bolso e, claro, sempre com música e canções na lapela.

até breve, amigo(a)s!


já disponíveis todos os 36 podcasts das estações de inverno emitidas até à data.


[a título excepcional, hoje, quarta-feira: 21h-22h; repete domingo: 19h-20h]

28 julho 2008




encaminhou-se para casa, sem ligar ao frio que gelava o caminho, sob seus pés. as flores ardiam, em labaredas invisíveis que estancavam a um palmo de si, dos dois lados, numa dança geométrica precisa e perfeita. dir-se-ia que com aquele sol e aquele céu azul, era improvável nevar. mas nevava. continuava a caminhar, com os olhos negros cerrados. era já só um fantasma, mas um fantasma a caminho de casa, cercado pelos anjos de pedra que definiam os contornos da alameda e por bandos de pássaros silenciosos. havia sido um homem, alto, esbelto, longílineo. um apolo de gabardine clara. mas isso fora há muito tempo atrás, no tempo das rosas. depois, lembrava-se bem, vieram as rosas a arder, o cheiro a enxofre, o céu rasgado por deuses impiedosos. e aquele dedo apontado à sua fronte, condenando-o à errância eterna, por entre estações em delírio. ruído branco. sede absoluta. um caleidoscópio de cores num turvelinho. as forças a falharem. perto do coração selvagem, lembrava-se de ter lido, muitos anos antes. um fantasma a caminho de casa.



sábado à noite, quase por acaso, dou por mim a rever o filme 'the searchers / a desaparecida', um ultra-clássico da cinematogrtafia em torno do 'old west', um dos muitos assinados pelo senhor john ford.

no domingo, fui ver o novo 'batman - the dark knight'.

entre uma coisa e outra há uma distância técnica, semântica, semiótica. mais do que evolução do cinema e do cinema enquanto espelho da vida, há aqui um deslizar civilizacional que perturba. a 'gravitas' de ford é terrivelmente humana, pesa mais do que toda a pirotecnia brilhante do rapaz nolan. o 'ethos' e o 'pathos' de ambos os filmes aproximam-nos, porque ambos giram em torno da 'identidade', de um certo espírito sacrificial de missão, de um desajustamento ao contexto causado pela fidelidade a princípios interiores. neste plano de leitura, ambos são filmes ricos, densos. o problema é que enquanto no rapaz nolan todas as angústias existenciais parecem uma pantomina metafórica, no filme do senhor ford elas nos parecem dilacerantemente reais. e isso, meus amigos, ainda faz toda a diferença.

nem sequer é dos meus filmes preferidos de john ford, nem sou um especial cultor do género 'western'. mas, como dizia o outro, mesmo trôpego ainda sei ver umas coisinhas.

[vale a pena ver o 'batman'? vale, sim senhor. para aqueles que saltam linhas, sempre à espera do número de estrelas ou da recomendação final. estávamos a falar de outra coisa, oh gente distraída..]



25 julho 2008

yes it burns





porque, apesar de ser verão, eu sou inverno.
e o inverno nunca cessa de ser um pequeno grande pequeno grande prodígio.

[sempre assim foi. quando incensam as carlas bruni's deste mundo, eu volto-me para as keren ann's. porque sim. porque assim.]


porque, apesar de tudo, é verão.
e o verão nunca cessa de ser um pequeno grande pequeno grande prodígio.

24 julho 2008

auto-retrato nada difuso?

i met a woman long ago
her hair the black that black can go,
are you a teacher of the heart?
soft she answered no.

i met a girl across the sea,
her hair the gold that gold can be,
are you a teacher of the heart?
yes, but not for thee.

i met a man who lost his mind
in some lost place i had to find,
follow me the wise man said,
but he walked behind.

i walked into a hospital
where none was sick and none was well,
when at night the nurses left
i could not walk at all.

morning came and then came noon,
dinner time a scalpel blade
lay beside my silver spoon.

some girls wander by mistake
into the mess that scalpels make.
are you the teachers of my heart?
we teach old hearts to break.

one morning i woke up alone,
the hospital and the nurses gone.
have i carved enough my lord?
child, you are a bone.

i ate and ate and ate,
no i did not miss a plate, well
how much do these suppers cost?
we'll take it out in hate.

i spent my hatred everyplace,
on every work on every face,
someone gave me wishes
and i wished for an embrace.

several girls embraced me, then
i was embraced by men,
is my passion perfect?
no, do it once again.

i was handsome i was strong,
i knew the words of every song.
did my singing please you?
no, the words you sang were wrong.

who is it whom i address,
who takes down what i confess?
are you the teachers of my heart?
we teach old hearts to rest.

oh teachers are my lessons done?
i cannot do another one.
they laughed and laughed and said, well child,
are your lessons done?
are your lessons done?
are your lessons done?



'teachers', leonard cohen

estação de inverno: 37-ª estação

por motivos de força maior, não foi possível gravar o programa desta semana. as nossas sinceras desculpas.

voltaremos, se tudo correr bem, para a semana, com aquele que será o último programa da primeira série. interromperemos para umas fériazinhas, durante agosto, e regressaremos em setembro, com uma estação de inverno que, esperamos, se mostre em forma e à altura do que foi este primeiro ano (vá lá, nos seus melhores momentos..).

obrigado pela V/ compreensão.

18 julho 2008

- olá. obrigado, desde já, por nos conceder este tempinho. diga-nos, porque é que chama a leonard cohen 'o incomparável senhor cohen'?
- porque merece que os adjectivos, no seu caso, sejam transformados em substantivos. neste caso, 'incomparável' é nominativo, uma propriedade daquilo que ele é. espero que não me pergunte porque o chamo de 'senhor', minha senhora.
- penso que não é preciso, que todos entendemos. lembra-se de quando travou conhecimento, pela primeira vez, com leonard cohen?
- perfeitamente. por acaso, sim. teria 14 para 15 anos e, num ano muito especial da minha vida de adolescente a caminho de jovenzinho, um professor de filosofia, david de seu nome, emprestou-me uma velhinha cassete com os seus 'personal favorites', as canções de que gostava mais. penso que, pouco tempo depois, me emprestou aquele célebre livrinho da colecção 'rei lagarto' (assírio & alvim), edição bilingue com muitos dos poemas musicados pelo leonard conhen, nos seus discos. amor à primeira vista, se assim se pode dizer. (risos).
- com quinze anos, calculo que, fazendo uns cálculos por alto, ainda apanhou as ondas, ainda que já desvanecentes, da cena urbano-depressiva. é natural que leonard cohen apele a quem, por essa altura, adoptava a tal postura dos modernos e urbanos 'vencidos da vida'. é por aí que surge leonard cohen?
- sim e não. sim, porque o lado denso da música, a importância das palavras, naturalmente que de certa forma rima com os movimentos associados quer ao lado mais 'joy divisionano', quer a bandas de som mais jovial, mas igualmente profundas no sentido último (à cabeça os 'the smiths'). não podemos esquecer ainda um certo carácter grave e solene das bandas da editora 4AD, por exemplo. toda esta predisposição estética (e quase semiótica) naturalmente que ajudou no processo de recepção da música de leonard cohen. quero, contudo, frisar que tal não chega como factor explicativo. leonard cohen levava muitas coisas mais além - curiosamente, sendo cronologicamente anterior a elas. a palavra 'gravitas', o negrume existencial e a catarse permanente do lado mais lunar da existência em geral, e do amor em particular, eram, na altura, coisa nova. já conhecia outras coisas, mas não com esta força, com tal grau de perfeição, se é que é a palavra certa. foi como o olhar que pela primeira vez se cruza com uma catedral, inultrapassável no seu peso metafísico e ao mesmo tempo no seu carácter de construção intrinsecamente humana. ou, dito de outra forma, há coisas que, instintivamente, sentimos que atingiram um grau de exactidão que nos deslumbram e assustam. aqueles sentimentos, articulados daquela forma, musicados naquele registo, cantados com aquela expressividade especial.. não encontrava em mais ninguém. encontrei em poucos mais, passados vinte anos, coisas parecidas, mas sempre um bocadinho aquém. é esta a diferença e é esta a razão da palavra senhor. senhores há poucos. (risos).
- uma provocação: mas é só música..
- pois, pois é. tal como a vida é só vida. e o amor quatro letras. pois.
- era uma provocação..!
- sim, mas não muito inteligente.
- passemos a outra perspectiva: leonard cohen faz sentido para quem tem hoje 15, vá lá, 20 anos? o que acha que uma pessoa desta idade pensa / sente / experimenta, ao ouvir um disco (no MP3, claro) que associa aos 'cotas'?
- a pergunta é um bocadinho melhor, obrigado. uma sugestão: faça a pergunta aos seus filhos ou sobrinhos. mais a sério, acho que um autor como leonard cohen sempre terá o seu público, eventualmente menos, como dizer, 'alternativamente mainstream'. mas que sentido faz questionar o sentido das obras de arte? é como perguntar se kafka faz sentido, ou as pinturas de vermeer ou hopper. todas as respostas serão meramente especulativas, projecção com um olho no retrovisor da nossa própria experiência e, se quisermos ser mesmo exigentes, irrelevantes. o tempo dirá. talvez já não a nós.
- vai ao concerto, amanhã?
- não, senhora. há coisas que é melhor deixarmos como estão. cá dentro, quero dizer.
- medo da desilusão?
- medo da ilusão.
- e da velhice?
- sim, e da velhice. porque não dizê-lo.
- os nossos heróis que envelhecem e morrem, de certa maneira. incomoda-o?
- sou humano, claro que sim.
- algum comentário sobre as excentricidades de leonard cohen, dos seus retiros budistas aos problemas, ao que parece graves e sérios, com desfalques, por parte de antigos colaboradores próximos?
- os mesmos que o senhor cohen faria sobre as suas ou as minhas excentricidades. mind your own business. o senhor cohen é um meio, não tem biografia. é um veículo transmissor do 'great scheme of things'.
- provocação, novamente: paleio 'new age'? é para fazer equipa com os desvarios zen dele?
- você tem alguma piada, há que reconhecer. estava a brincar. a resposta certa é um simples não. não, não tenho comentários. acho que se chama vida, essas coisas que nos acontecem. a nós e a ele.
- sim, mas a si e a mim ninguém nos conhece.
- diga isso lá em casa, aos seus amigos, familiares e colegas de trabalho. teria uma bela supresa. talvez a uma escala mais reduzida e sem cobertura pelos media. mas na sua essência não muito diferente.
- um disco de eleição?
- songs of love and hate. escutem-no. não é bem música, é uma experiência, como hoje se diz. com o marketing certo, teria vendido bem.. (risos).
- e uma ca.. (interrompe)
- canção? se gosto mais do papá ou da mamã? olhe, minha boa amiga, diria assim: há perguntas que não se fazem.
- de onde vem esse seu feitio?
- do facto de pensar que seria desta que a entrevista era inteligente. e de nunca ser desta, no final. mas valeu o esforço.
- (silêncio)
- ah, escreva aí, que o senhor cohen somos nós. é um espelho terrível, porque lúcido e articulado, de tudo aquilo de que temos medo: o vazio existencial, a falta de sentido, o desamor, a errância amorosa, a comédia de enganos, o desespero de certos dias, o frio de certas camas, a inexpressividade de certos pares de olhos, o medo do monstro que vêmos no espelho um dia nos comer. dito de forma especialmente bela, quase religiosa. ou seja, um abismo belo. terrificamente belo.
- (silêncio)
- mas, se acha muito negro, denso, etc e tal, sempre lhe digo que o senhor cohen, por outro lado nos faz sentir que não estamos sózinhos. que, por muito que o neguemos ou que o escondamos atrás do voraz ar do tempo, a todo o tempo outros seres humanos experimentam a mesma angústia. por paradoxal que pareça, isso é lindo, poderoso, solar. uma máquina formidável de humanidade. conhece muitas?
- obrigado.
- obrigado a ele, o incomparável senhor cohen..



senhoras e senhores,
from the dark lands of the heart,

o único, o inimitável, o incomparável malabarista de gelo e cinzas,

o senhor cohen.

o artista tem biografia 2


penúltima semana do curso de pós-graduação em 'edição: livros e novos suportes digitais'.

conferência, juntando, em simultâneo, críticos e jornalistas de livros (josé mário silva, coordenador no jornal 'expresso', ex-'time out' e ex-'dna'; isabel coutinho, jornal 'público', ex-editora-coordenadora dos suplementos 'leituras', 'mil folhas' e agora jornalista e cronista do 'ipsilon'; sara belo luis, da revista 'visão') e os fundadores da empresa de consultadoria 'booktailors', mais conhecidos talvez pelo blog de referência, nestas coisas do livro e da edição, 'blogtailors', nuno seabra lopes e paulo ferreira.

muitíssimo interessante, em duas palavras.

e ver, ao vivo e a cores, pessoas que nos habituámos a acompanhar pelas páginas dos jornais, revistas e 'blogs' que dão graça aos nossos dias é sempre um curioso exercício.

sobre as conclusões das quase três horas de conversa e debate, talvez falemos outro dia. por agora, era mesmo só um obrigado a todos (que decerto nunca lerão, claro está) e este registo mais ou menos impressionista.

nota final: este senhor josé mário silva é o mesmo que tem editado uns belíssimos livros de poesia, em ritmo lânguido e bissexto. curiosamente, foi o autor escolhido por este vosso criado, para o programa desta semana da 'estação de inverno'. como dizia o outro, 'eu não acredito em bruxas, mas..'!



blogtailors

ciberescritas

o bibliotecário de babel

o artista tem biografia 1

quem me vai acompanhando sabe que não sou frequente utilizador deste espaço como registo diarístico-realista (ainda que, naturalmente, nas entrelinhas se encontre, de forma mais óbvia ou mais subtil, abundante 'matéria de facto').

faço uma pequena excepção, nestes dois posts.

o meu pai deixou de trabalhar esta semana. 64 anos de idade, 45 anos de trabalho consecutivo, para o mesmo empregador.

para além de ser algo que a minha geração já não irá experimentar (daria para um 'post' com cinco mil caracteres), importa-me registar e partilhar uma coisa que tem a ver com este 'blog' - também ele uma forma de combater o efeito do tempo, o esquecimento, as partidas da memória, o rame-rame rasteiro, o medo visceral que todos temos a certas emoções, a perda de um certo sentido de humanidade.

habituei-me a ver no meu pai um exemplar de uma certa ética estóica perante o trabalho, os deveres profissionais. sempre o acompanhou uma inexpugnável 'work ethics', neste sentido algo muito pouco português, muitas vezes difícil de entender, com tudo o que significa em termos de abnegação, sacrifício, 'trade-offs' com outros aspectos da vida, disponibilidade - coisas assim.

para além de a história dos últimos anos merecer reflexão (que, por razões de reserva, guardarei para mim), o que me importa assinalar aqui é o efeito da passagem do tempo, a inexorabilidade do mundo em movimento.

antes era um tempo. agora é outro tempo.

'podes fugir, mas não te podes esconder', cantavam os 'da weasel'. pois, pois.

[diz a senhora bruni-sarkozy: 'those dancing days are gone'. nunca pensei que também ela aparecesse por aqui. mas também nunca pensei tanta coisa..]

17 julho 2008



quando vos falarem da miss winehouse, normalmente virão a reboque o vozeirão, o virtuosismo e o swing soul-rock da menina.

em vez de embarcarem na cantilena do costume - o chamado coro mainstream -, saquem antes das pistolas.

ir lá atrás, aos clássicos (black soul, white soul, a escola da funk, algum r&b não abastardado, soul-blues..), requer perícia e disciplina. usemos, em alternativa, pistolas mais fáceis de encontrar:

nicole willis & the soul investigators

sharon jones & the dap-kings


é fácil, é barato. e, que diabo, é música pela música. que é sempre a porta certa, mesmo que, mais tarde, traga a tiracolo biografias e estados de espírito.

como se costuma dizer: à v/ consideração..



verão.
rios que secam,
ou não.

outono.
ventos e prenúncios,
sem rosto.

inverno.
neve permanente,
ou breve.

primavera.
uma flor que desperta,
e espera.

richard prince

[conselho amigo: vão ao google images (passe a publicidade) e digitem 'richard prince jokes'. verão imagens de uma colecção de arte muito bem humorada. e com o seu quê de fracturante (relembrem a data em que foi exibida ao público..)]

16 julho 2008

AINDA UM OUTRO POEMA DOS DONS

tal como tu, jorge luis borges,
graças quero dar ao insondável
labirinto dos efeitos e das causas,
pelo cosmos infinito, espaço
vazio onde brilham galáxias,
pela luz, que é ao mesmo tempo
onda, partícula e sete cores
através de um prisma,
pela vida, esse acaso fabuloso,
pela evolução das espécies, trama
subtil que une bactérias, leopardos,
acácias, fungos e homens,
pelas noites antigas em que as estrelas
pareciam grandes fogueiras acesas no céu,
por atenas, em cujas ruas nasceu a
democracia e o pensamento,
por eratóstenes, que calculou a dimensão
da terra, medindo sombras,
pela inteligência, a mais eficaz de todas
as armas e também a mais traiçoeira,
por heraclito, frente ao rio eterno
que nunca se repete,
pelo negro basalto e a brancura da neve,
pela beleza de um corpo nu,
pelo trigo, o alabastro e a cidra,
pelos gestos heróicos que mudam o
frágil rumo da história,
por galileu,
de luneta apontada aos astros,
lendo a matemática com que se
escreve o livro do universo,
pela utopia, esse lugar impossível
mas absolutamente necessário,
por certa noite de 1993,
pela melancolia, doce forma de tristeza,
por tudo o que foi dito mas ficou por escrever,
pela torre de babel, esse prodígio que Deus não permitiu,
pela música de bach,
precisa, perene, perfeita como um cristal,
pelas madrugadas em paris, à beira do sena,
pelo amor, luminosa e indizível
união entre dois seres,
pelos albatrozes que pairam sobre falésias,
pelo mediterrâneo, o vinho e o mel,
pela alegria de estar entre amigos
ouvindo schubert e lendo poesia,
pelo cinema, lugar escuro onde o
mundo pode ser reinventado,
pelos poentes de turner e os gelos de friedrich,
por james joyce, hábil construtor de
uma dublin feita de palavras,
por signac e a sua auxerre pontilhista,
pelo génio de alekhine,
sacrificando dama e torre num jogo às cegas,
pelo sonho de marx, que acreditou num
homem novo e melhor,
pelo sabor dos alperces no verão,
por hector hugh munro, que escrevia com
elegância e era subtil como um gato persa,
pelos 4 minutos e 33 segundos
de john cage,
pela liberdade, último reduto do indivíduo,
pelo grand canyon, que nos reduz
a quase nada,
pelas iluminuras medievais,
com anjos dentro das letras góticas,
pela paciência que esmorece com o
passar dos anos,
pelos jornais, o cheiro da tinta e
o estrépito das rotativas,
pela geometria de riemann,
com que einstein imaginou o espaço-tempo,
pela inocência das crianças e a imagem
serena de um bebé dormindo,
pela noite em que vi uma lua vermelha
sobre o báltico,
pela escrita, caminho árduo mas exaltante,
pelo poema de que este é espelho,
por todos os dons que também calaste,
por ti, borges, poeta cego como milton e homero,
minotauro perdido num labirinto de versos.



josé mário silva
in 'nuvens & labirintos', editora gótica

15 julho 2008

a senhora de idade, vergada pelo peso dos anos e pela deformação que lhe acentua a curva das costas até ao intolerável. difícil acreditar na justiça, seja ela qual for.

o homem africano, moderadamente garrido nas cores que ostenta, mas com traços indisfarçáveis dessoutro mundo que é essoutro continente. de curioso rádio a pilhas erguido por um braço forte, espalhando notícias do mundo, talvez trazendo notícias de casa.

o casal de namorados, em perda angustiada e angustiante. aquele olhar que só aparece nos dias do fim, que diz tudo. minutos depois, numa rua contígua à esquina onde primeiro, num rodapé de montra, estavam sentados, uma cara feminina passa e parece carregar toda a tristeza do mundo. segundos depois, passa um corpo masculino - seta, flecha tensa. que lhe irá dizer? resgatá-la-á do supremo olvido que é o fim do amor? ou apenas acentuará ainda mais os tons ainda mais pardacentos do dia que se recolhe?

logo pela manhã, bem cedinho, já um copo (quantos mesmo?) bebericado. que leva pouco, melhor será ir apanhar ar - resmunga ensimesmado. cruza-se connosco e, de repente, algo o faz crepitar. tira do bolso um papel, um rectângulo encarnado onde se lê 'benfica'. beija-o e diz: 'isto é que é, isto é que é'.

pelo canto do olho, pelo retrovisor do carro, através da janela aberta. o mundo arromba-nos a tranquilidade.

estão em toda a parte, em todo o sítio, o tempo todo.

são uma máquina furiosa de raiva e melancolia, ternura e lágrimas. são rios à solta sobre o concreto cimento da cidade e sob um céu apenas abstracto.

[bon iver, algures em paris, num exercício de despojamento virtuoso..]



[chris garneau, ao piano, às voltas com ele próprio provavelmente..]

estação de inverno: 36-ª estação



hoje, a trigésima sexta estação de inverno.


josé mário silva conduz-nos por 'nuvens & labirintos', numa poesia que busca a intemporalidade - por entre destroços modernos, tropeçamos nos vestígios fundadores da civilização ocidental. poesia forte e muito bela, como a estação gosta.

o destaque musical traz ao palco o projecto 'vetiver', de andy cabic. 'thing of the past' é um disco deliciosamente anacrónico, que recupera algumas das canções preferidas do rapaz. em vez de versões, andy e a sua banda recriam-nas, num espírito de fidelidade respeitosa aos originais. se há música que nos enche a alma, com extrema simplicidade, é esta. vale a pena descobrir esta 'coisa do passado', fartos que estamos de futuros em falso..


já disponíveis todos os 35 podcasts das estações de inverno emitidas até à data.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

14 julho 2008



não estive lá.
mas, de certa maneira, 'só' estive lá.
serás sempre um dos meus heróis - porque és um anti-herói.

mr. young, why do you keep a kind of old cars' cemetery in your farm?

well, pretty stupid.. it seems, doesn't it? yeah. you known, rusty things are a personal favourite subject. as it is the path of time. once all these beauties were the king of the hill, full of speed, lights and power. so i thought to myself that instead of building other stuff or buying antiques and maserattis, i'd rather go for a monument, a symbol of a civilization that i feel is vanishing - ours.
besides, those aligned old cars are like old friends you can rely on. yeah, you can say i am old man with strange habits. or you could say that i miss the road, in a misterious magical way. dust and rage, neverending roads and the sky above. i like old cars, rusty cars. they remember me that all things change - and yet nothing really changes.


[diálogo imaginado]


estação de inverno: neil young & eugénio de andrade

11 julho 2008

10 julho 2008


tivoli

seria um conto de fadas
num jardim de chuva
se não fosse já tão tarde.

o teu sorriso sobreviveu, não
abandonou sequer por um momento
a cadeira do mezzo bar,
apesar das luzes e dos gritos da cidade.

esperavam, entre cervejas,
a chegada da rainha da neve,
um pesadelo que lhes fizesse
mais próxima e feliz a noite.

nós estávamos, porém, demasiado
longe de saber que tudo ou quase tudo
serve unicamente para nos distrair da morte.


manuel de freitas, in 'brynt kobolt', averno, 2008

[e quando não estamos, meu caro manuel, e quando não estamos?]

da fragilidade



fotos: gregory crewdson


antigo trabalhador, particularmente activo na luta sindical, reforma-se antecipadamente ao fim de algumas décadas de trabalho numa fábrica.

recebe uma compensação financeira, por razões que não interessa aprofundar, mas, de certa maneira, uma soma de i) reconhecimento + ii) compensação pelos anos que ainda faltariam até à sua reforma por inteiro + iii) almofada de bem-estar, ao fim de uma vida de trabalho.

a vida desgraçada faz a sua aparição e eis que um filho tresmalhado transforma um homem duro na luta de classes, que sempre manteve viva, numa espécie de farrapo. quem nos faz mais mal? quem nós deixamos entrar e tocar-nos por dentro. como negar esta evidência, para mais quando falamos de um filho?

um homem duro vergado é uma coisa que incomoda ou faz rejubilar, consoante o nosso juízo de valor sobre a tradução prática dessa dureza e o nosso ponto de observação (fora, dentro, acima, abaixo, ao lado, no centro..?).

um homem duro vergado desta maneira.. é apenas, mais uma vez, 'o grande cabaret' a levar ao palco a tragédia humana mais desumana - a que não tem público, a que se envergonha, a que ninguém nota.

enfim, nada de novo no reino da desalegria.

--

de repente, convivemos mais de perto com uma pessoa seriamente debilitada na sua condição física.

porque estas coisas acontecem, sem mais, de repente, vemos esta pessoa caída e alguém diz-nos: 'precisamos da sua ajuda aqui'. lá tentamos lembrar o que vamos vendo aqui e ali, de modo a tornar o gesto de erguer alguém do chão - um adulto, ainda para mais do sexo oposto (triste expressão, mas adiante) -, com a maior eficácia possível e com o respeito possível.

de repente, as convenções relacionais deixam de importar tanto. temos que tocar naquele corpo, temos que literalmente ter aquela pessoa nos braços. e temos, num segundo, que integrar algo que seria normal não fosse a nossa, por vezes tão conspícua, cultura ditar uma febre do politicamente correcto que chega a dar náuseas.

a coisa lá se fez, que era o importante. afinal, não era assim tão difícil. e não me remeto à dimensão física.

tanto progresso e continuamos a dar razão ao filósofo político que disse 'só' isto: 'o homem é o lobo do homem'.

'o homem é o seu próprio lobo', digo eu.

08 julho 2008

estação de inverno: 35-ª estação




hoje, a trigésima quinta estação de inverno.


manuel fernando gonçalves abre-nos a sua alma, 'com estrondo e animação'. a poesia como farsa ou a farsa poética como instrumento de corte profundo?


já disponíveis todos os 34 podcasts das estações de inverno emitidas até à data.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

go figure..

07 julho 2008




'wabi-sabi is the quintessential japanese aesthetic. it is a beauty of things imperfect, impermanent, and incomplete. it is a beauty of things modest and humble. it is a beauty of things unconventional..'
colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.



eugénio de andrade

daniel blaufuks


do crepúsculo se diz muita coisa, como muita coisa se diz de todas as palavras que nos transcendem. o crepúsculo pode ser uma janela temporal, definida pelo cruzamento entre as horas do dia e uma certa combinação de luz e cores no horizonte visual, como pode corresponder a um estado de espírito particular. com retorno (o chamado crepúsculo transitório) ou sem retorno (quando uma espécie de doçura mansa e desencantada anuncia o fim, ainda não exactamente à vista, mas já mais do que um pressentimento). tudo o que tem a remota possibilidade de oferecer dúvida metafísica incomoda. mais vale deixar a coisa sossegada, não vá o crepúsculo olhar-nos nos nossos próprios olhos. diz-se muita coisa do que se não conhece, muita coisa se diz do que é inapropriável.


era mais ou menos a hora em que o crepúsculo reinava majestosamente pelos céus, quando pediu o primeiro gin tónico, numa esplanada-miradouro que, em majestade visual, rivalizava com a beleza desse céu à espera da noite descendente. o gin tónico era uma bebida nova, uma paixão adolescente num mar já adulto - mar alto, portanto -, descoberta de um verão já passado mais ainda próximo. em adolescente, não gostava de gin tónico e lembrava-se bem de ver os amigos gabarem-se das proeza etílicas próprias desses dias de brasa ('bebi sete gin tónicos' e coisas afins). nesses dias, costumava pensar que nem um beberia, nem sequer se lho pagassem, quanto mais pagar por aquela mistela, quanto mais beber sete copos de tal zurrapa.. nesses dias o fósforo estava ainda intacto, e com ele o tempo, e com o tempo aquela coisa das certeza absolutas gravadas na pedra. those were the days of youth.

ruminava nestes pensamentos de bolso, quando o vulto se aproximou. havia seguido a sua movimentação desprovida de ruído pelo canto do olho, mas, fechada a cara num gesto que gritava 'não', pensava estar a salvo. não estava, claro. nunca se está a salvo.

o homem, entre os trintas e os quarentas, de pele uniformemente tisnada pelo sol de julho (ou de outros julhos, talvez), era de estatuta normal, magro (naquele magro seco de carnes), cabelo moreno doirado, mão finas, olhos indefiníveis. andava com cadernos amarrotados, canetas de feltro, marcadores, sacolas - uma panóplia indistinta e improvável - a tiracolo. podia ser um artista levemente detached das coisas do mundo.

- boa noite, atirou naquele jeito swingante que todo o brasileiro por devoção tem.
- boa noite.
- o senhor me desculpe, mas podia me ajudar? estou desempregado e vendo estas coisinhas.. (o olhar acompanhou o rol de objectos, montra improvisada e portátil).
- peço desculpa, mas não, não estou interessado (já a mão remexia subtilmente na carteira, em busca de uns trocos, que ele nunca se habituara a negar o que quer que fosse, desde que lhe pedissem com modos).
sem palavras, tirou umas moedas e estendeu a mão. o outro homem aceitou, sem uma palavra, numa espécie de compromisso tácito que só dois homens que entendem o que é a dignidade podem celebrar sem palavras.
- o senhor sabe, 'tá difícil. não arrumo emprego de jeito nenhum - continuou o homem-que-era-vulto-há-segundos-atrás.
- e o senhor faz o quê? ou melhor, o que sabe fazer?
- pintura. pintor.
- ah, artista..
- pinto paredes, tectos, coisas assim.
- pois, está difícil para todos, nesta cidade. entendo muito bem.

segundos depois, pegou ele na conversa.
- porque, em vez de trabalhar nesse tipo de coisa, não tenta outro emprego? agora, no verão, há muitas esplanadas, cafés, restaurantes que decerto precisam de mão-de-obra. o senhor vá até à avenida da liberdade e comece numa ponta e acabe noutra, sem desistir a meio. ou na avenida almirante reis. aposto que, ao final do dia, encontrou emprego.
- agradeço muito, mas sabe.. estou também ilegal. uma história complicada, talvez se resolva agora, mas complicada.
enquanto pensava no quão complicadas são sempre todas as histórias que lhe chegam, teve um flash e contrapôs:
- escreva num papel o seu telemóvel, se souber de alguma coisa, eu contacto.
- agradeço muito, caro senhor, mas comi meu celular. isto é, tive que vender para poder comer. não tem sido fácil.
- pois, não é fácil. faça assim, procure uma cabine telefónica com número. escreva esse número. procure perceber a que horas do dia tem menos movimento. escreva o número em papelinhos, com indicação de um período de uma hora. esse passa a ser o seu telemóvel, o seu número, uma forma de contacto personalizada e gratuita para si. entendeu?
- sim, sim. entendi. muito obrigado.
- ah, e já agora, telefone-me a dizer o número e a hora. nunca se sabe.
- senhor, muito muito obrigado.

calmamente, o homem fez um leve aceno com a cabeça, deu as boas noites e afastou-se, no seu passo, nem lento, nem rápido.

dias depois, ainda com a memória do raio do gin tónico nas papilas gustativas ('gosto mesmo disto no verão, quem diria..!'), recebeu um telefonema. gentil, mas curto, numa economia notável de palavras que não de educação e cordialidade, o homem do outro dia lá lhe deu um número que ele adivinhou ser de cabine telefónica, e a indicação de uma hora particular. anotou num dos muitos papelinhos que sempre trazia nos bolsos e voltou a mergulhar na sua vida.

as semanas passaram como sempre passam.

brincadeira de um íssimo amigo seu, deu por si num estúdio de televisão. toda a gente lhe dizia que devia fazer vida de ir a concursos. não que fosse particularmente inteligente ou hábil no raciocínio, mas tinha uma espécie de fundo cultural invulgar, que tanto lhe permitia discutir filosofia do século vinte, como falar de generais romanos que o tempo esqueceu, música pop ou analisar todos os melhores jogadores dos últimos cem anos da sua equipa de futebol de eleição. e foi assim, muito contrariado e com promessas de deixar de falar ao seu íssimo amigo, que se viu naqueles preparos, ligeiramente maquilhado, rodeado por carpintaria de feira por todos os lados, luzes a piscar, máquinas de fumo, uma mini-multidão de figurantes de ocasião.

- então é assim um estúdio de televisão. deprimente.. - foi o seu pensamento imediatamente anterior a começar uma música pré-gravada infernal.

o concurso lá seguiu os seus trâmites. com mais ou menos dificuldade, foi passando as etapas, ultrapassando pela esquerda e pela direita os outros concorrentes.

- a classe média deve ser isto - pensava para consigo..

de repente, após o que lhe pareceu um suplício, deu por si, na última pergunta. valia umas massas, não o célebre milhão de verdinhas dos 'estates', mas uma boa maquia, em tradução local, mesmo assim.

- se ganhar, o que vai fazer com o dinheiro?
- nada.
- nada? como assim? não tem sonhos? desejos?
- sim, claro que sim.
- então?
- nenhum deles envolve dinheiro.

a esta altura já o apresentador bem conhecido lutava, num esgar dissimulado, para não se chatear. afinal, o surrealismo não tem lugar em 'prime time'. estes intelectuais 'dandies'.. era todos para o campo pequeno e soltar os toiros. pensamento interessante, para quem sorri com taxímetro ligado.

- pois bem, temos aqui uma pessoa diferente. pense melhor, uma viagenzita, um carrito novo, quem sabe..
- pensei melhor! de facto, sei o que faria ao dinheiro.

o apresentador suspirou de alívio e o brilho voltou a inundar-lhe a face.

- se ganhar, divido-o em mil partes e durante mil noites entregarei uma milésima parte a quem provar merecê-lo.

o apresentador cortou secamente para intervalo. suava copiosamente. coisas dos directos, está bem de ver.

após um curto intervalo, era tempo da 'grande pergunta'.

a pergunta era sobre um pintor da escola italiana, daqueles que das abóbodas fizeram milagres de cor e emoção.

não sabia a resposta, percebeu logo ali. o tema não era o seu forte e, que diabo, alguma dificuldade haveria de existir para poder deitar a unha a tão generosa maquia. conformava-se com a derrota.

- já não tem ajuda do público, já não pode eliminar hipóteses nesta fase do concurso. resta-lhe um telefonema. diga-me, a quem vai recorrer?

a duzentos à hora, pensava para consigo: isto do directo é complicado. baralham-se-me os números na cabeça e dos pré-gravados ninguém domina o tema. e francamente falar em directo para alguém.. que constrangedor.. que dirão amanhã, lá no trabalho? ao menos que perdeu de pé, sem recorrer a ajuda. lembrou-se do general custer, impecável fitando a derrota suprema, em 'little big horn'. era o seu 'hara-kiri' metafísico. na televisão. que pós-moderno.

para disfarçar os nervos daqueles intermináveis segundos de 'countdown', remexia os bolsos. sem querer, já sem se lembrar, encontrou um papelinho com um número de telefone e uma hora. era aquela hora, mais ou menos.

- afinal, quero o telefonema! - disse em cima do limite.
- muito bem, vamos a ele. e quem vai ser o feliz ou a feliz contemplada?
- um amigo. é surpresa.

o apresentador vacilou, uma vez mais. mas, sob a pressão do directo, o telefonema lá se fez.

o resto é história, mito, lenda urbana. do outro lado, atendeu uma voz doce e com sotaque. disse que não se lembrava do nome de quem lhe ligava mas que sim, que conhecia o programa, da mesa de café em que matava as horas. sabia a resposta, era fácil, tinha sido um dos mestres que mais havia estudado, havia anos. que era pintor, daqueles que restauram obras de arte, havia viajado para a cidade para participar no restauro dos frescos de um hotel de luxo. a partir daí, uma série de complicações simplesmente complicaram-lhe a vida. o apresentador, apesar do taxímetro, era um animal de palco, um 'entertainer' maior e logo ali pressentiu o furo. estendeu a conversa o quanto pôde. havia ali história.

quando saíu do estúdio, ligou para a cabine. ninguém atendeu. nunca mais ninguém atendeu. procurou-a, através do número, observou-a dias a fio, contratou um detective privado. nada, o homem que havia respondido parecia ter-se simplesmente desvanecido.

era agora a 365-ª noite em que saía à rua e entregava uma milésima parte do prémio a quem, no seu entender, a merecia (mesmo que por mero palpite, claro está).

com o seu próprio dinheiro, viajou para itália. foi ver com os seus próprios olhos a obra do autor que, por interposta pessoa, havia valido uma resposta certa que por sua vez havia valido um dinheirito jeitoso que por sua vez estaria a valer uma noite decente a mil semelhantes seus a quem o infortúnio batera à porta.

quando os turistas japoneses e americanos começavam a desaparecer, aproveitava aquela meia-hora pré-crepúsculo para se sentar e ali ficar, em silêncio absoluto, olhando aquele tecto tingido pelo dom e pela graça. repetiu 5 dias o mesmo gesto, a mesma intenção, com aquele olhar que só quem cumpre uma promessa tem. ao quinto dia, antes de partir para o aeroporto, descobriu uma coisa: uma das faces pintadas naquele tecto parecia-lhe estranhamente familiar. mas estava muito longe, demasiado longe para a sua visão alcançar com precisão. pediu emprestado um binóculo 'made in taiwan' e..

o resto é história, mito, lenda urbana. acordou num centro médico, nas imediações do museu. na boca, um gosto a gin tónico. na memória, aquela imagem. dentro de si, uma coisa inarticulável.

já no avião, pálido e atarantado, mergulhou no 'ipod' e tentou dormitar. em modo 'shuffle', antónio variações cantava-lhe baixinho ao ouvido: 'dar, dar e receber; dar, dar e receber'.



e foi assim.
contaram-me esta história e eu conto-a agora, a quem teve a paciência para me ler até aqui.
é uma história lisboeta com um travo italiano. ou uma história italiana com um cravo lisboeta na lapela.
quem ma contou, jurou pelos seus santinhos: é toda verdade. que a verdade está sempre nos olhos e no coração, por isso quem pode convencer-nos de que esta verdade é menos verdade do que outra qualquer verdade?


(dedicado ao d., companheiro de tantas horas negras e de outras tantas lânguidas e doces.)

04 julho 2008

03 julho 2008

the untitled & uncommented series



02 julho 2008

notas de rodapé*




1. numa grande tela, algures no chiado, anunciando uma exposição: 'putting fear in its place'.

isso mesmo, isso mesmo - digo eu.

2. 'se numa tarde de verão, um viajante'..

isso mesmo isso mesmo isso mesmo isso mesmo isso mesmo


* como toda a gente sabe, os rodapés são muito importantes.

devics, 'a secret message to you'

01 julho 2008

pessoas que me fazem explodir,
pessoas que me fazem implodir,
pessoas que me fazem sair,
pessoas que me fazem rir,
pessoas que me fazem ir,
pessoas que me fazem existir.


people who kill me twice,
are those people in me who insuflate of wonder
my little life.

[obrigado :-)]




o homem da guitarra azul
esperava no espaço dele
por submarinos dourados
à flor da pele.

a guitarra azul do homem
esperava-o no espaço dela
por aviões polinizados
e pelo amor dele nela.

1 de julho de 1972
1 de julho de 2008

(hoje é o primeiro dia do resto da minha vida,
ontem soube-me a pouco,
ontem soube-me a tanto,
portanto hoje sabes-me louco).

estação de inverno: 35-ª estação (actualização)




por razões técnicas, a trigésima quinta estação de inverno, não irá para o ar hoje, 1 de julho de 2008, transitando para a próxima semana, dia 8 de julho de 2008.

hoje (e na repetição do próximo domingo), será retransmitida a emissão da semana passada.

as nossas desculpas aos 3 ouvintes que ainda temos, pela desfeita. passo a passo, até à auto-aniquilação? não, meros problemas informáticos..


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]