27 fevereiro 2009

deep dive for deep divers (he's back*)

26 fevereiro 2009




o meu nome é robert bresson, dizem-me aqui,
como se nesta nomeação fugissem eles mesmos
do risco possível de serem este eu que eu sou.

o meu nome é robert bresson e ninguém nunca
filmou ou filmará como eu filmei, há poucos anos,
nessa escala inclemente que é a da eternidade.

o meu nome é robert bresson e nos bosques de bolonha,
nas mãos dos carteiristas de rua, no recorte aguçado de uma nota,
no olhar petrificado da gente comum que elegi em vida,
pulsa, nem mais nem menos, do que um trevo da sorte,
desenhado a película granitada nos rostos pálidos
e orgulhosos que, uma e outra vez e para sempre,
zombam de ti e assim, fixos e petrificados, zombam afinal

dessa coisa viscosa e infilmável que é a morte.

25 fevereiro 2009


..e, de súbito, naquele 'micronésimo' de segundo, estás ali, outra vez. deslizas serra acima serra abaixo serra acima serra abaixo, tal e qual as ondas do mar captam a atenção do rapazinho, junto à costa. usas os recursos estilísticos, desliza a linguagem contigo, serra acima serra abaixo, uma e outra vez.

o que fica destes teus dias?

* dias de um sol impossível e de um azul improvável, tingindo o céu, numa gloriosa paleta de azuis dourados, mostrando aos 'artistas wanna be' quem verdadeiramente manda nestas coisas da arte sacra;

* o irmão do teu amigo, logo mais, no zénite do dia, deslizando também ele das mesas até ao bar onde te encostas displicentemente, treinando o gesto aprendido decerto no cinema. ele e tu. tu. ele apenas vem saudar, há quanto tempo amigo do meu irmão és mesmo tu são quê 10 anos sem nos vermos estás na mesma que bom ver-te a vida pois a vida as coisas são como são vou dizer-lhe que te encontrei e assim. a falta de pontuação é o artifício torrencial que permite ao rio semântico desaguar. todos falam do rio, mas das margem que o oprimem ninguém fala, dizia alguém (talvez brecht). e de brecht a breton é um saltinho, não é verdade? toda a beleza será convulsiva ou não será - assim diz nesse livrinho ('nadja') de andré breton. como o entendes. e nestes loops e contra-loops, flick flacks à rectaguarda, deixas as palavras escreverem-se, inscreverem-se. toda a beleza será torrencial, toda a beleza será fulminante. ou não será;

* estás no café de província, olham-te olhos desconfiados, outros fazendo contas de cabeça (olha este melro, há-que tempos que não o via, mais um que abalou para lisboa). de repente, a senhora do café atravessa em passo rápido e preocupado a sala e corre a baixar as cortinas do café. ao fundo da rua, já lá vem a marcha triste de mais um funeral na aldeia. e, perante o absoluto, os gozos relativos e terrenos ajoelham o olhar. baixam-se as cortinas, faz-se relativo silêncio. códigos tácitos, aprendidos de pais para filhos, que fazem do interior um mundo ainda outro, apesar de todas as globalizações que nos vendem a toda a hora esses modernos vendilhões dos templos que restam. nunca, tu meu querido leitor urbano-cosmopolita, perceberás isto, este gesto, tão próximo desse país atrasado, ensimesmado, que urge deixar para trás, bem longe, como aqueles filhos pouco pródigos que renegam as raízes, como se assim apagassem um pecado original. tu nunca perceberás que este mundo, de que zombas com a tua superioridade bem pensante, tem nele muito mais do que aquilo que, de cátedra, comentas entre-dentes;

* é domingo de carnaval e almoças agora, por entre amigos de teus pais, num restaurante de província, no centro afectivo e geográfico de uma aldeia circunstancial. lá fora, juntam-se vagarosamente os velhos, os novos, os semi-novos (como nos stands de automóveis, ocorre-te), para essa celebração ritualizada que são as tardes de domingo no campo. beberica-se, conversa-se, olha-se cada microgesto que acontece, comenta-se aquela realidade suspensa e, claro, o resultado do derby do dia anterior. é todo um mundo em que o passado te grita aos ouvidos. há nestes olhares lânguidos e como que conformados uma ternura nada óbvia, mas que está lá. à tua volta, alegria pela lampreia na mesa e pela vitelinha assada. pensas nos teus pais, que sempre dedicaram aos amigos tempo e tempo e tempo, em como os amigos da sua infância são hoje, como sempre foram, portos seguros de abrigo contra as intempéries da vida. em como isso há-de querer dizer qualquer coisa, ter um sentido. qualquer coisa que te resgate deste grande turvelinho interior, desta consumição que é viver sempre no fio da navalha ('mas há um sentido?' - esse matraquear infernal que só tu ouves e, por vezes, te rebenta a cabeça e as entranhas). passa-me a broa de milho, por favor. os teus lábios procuram sôfregamente o copo de vinho e pensas nesse teu alter-ego que são as palavras do manuel de freitas ('onde se lê taberna, leia-se perdição; onde se lê taberna, leia-se salvação'). o-vinho-esse-lilac-wine-essa-panaceia-a-preço-módico inunda-te as veias, semi-cerras os olhos, saboreias o naco de broa, brincas com a empregada de mesa - com os seus olhos cúmplices, melhor dizendo. diz, diz, diz, perguntas o quê.. 'mas há uma saída?'. não sei.. três vezes juras não sei, antes de o galo tardio cantar nessa tarde de província;

* não te vejo há quê?, quinze?, vinte?, anos? estás igual. quando entraste, reparei logo. pois é, sabes como é, casei, descasei, o miúdo tem agora oito anos, trabalho aqui no banco, voltei para junto dos meus pais, para esta vila-cidade em que a nossa juventude reinou durante exactamente 3x365 dias, em finais dos anos oitenta, lembras-te? eras tu um imperador garboso do seu reino, cioso da sua corte, prendado e disputado. como as coisas são. mas estás bem, estás na mesma, que bom reencontrar-te. nunca mais vi ninguém, ou vejo pouco. sabes como é, não sabes. também não vens cá muito, adivinho. não, não venho cá muito. mas venho. ainda venho. e vou encontrando pessoas como tu, polaroids vivas de figuras há muito extintas, fósseis em vida dessas memórias que doem, desse esplendor na relva a que chamamos adolescência e baixa juventude (como no alentejo, o que é baixo é o que vem primeiro, mas é o que é menos seco, mais viçoso. as palavras ai ai as palavras.) gostei mesmo de te ver, ver se nos encontramos. sais de mãos nos bolsos, ao lado dos amigos, irmanados nesse desdém pelo tempo e pela decadência abstracta. vamos mas é tomar uns copos, olhar os rostos destas miúdas e miúdos que são o que nós fomos - alegres, descomplicados à sua maneira, dançando em volta das fogueiras do aqui e agora, incendiados e incendiários, espalhando pólen. como era mesmo, joana? ah, já te lembras, 'dou-vos um mandamento novo: autopolenizai-vos!);

digam comigo:
toda a beleza será convulsiva;
toda a vida será fosforecente;
toda a arte será irrazoável;
todo o amor será urgente.

contra os canhões, marchar marchar. até cair.

antes cair de pé do que viver ajoelhado toda a vida, senhor fantasma.

e assim comunismo libertário e surrealismo utópico se fundem a quente, num acto radical de dar um sentido e uma saída a esta coisa que crepita e estala.

rachel getting married, a film by jonathan demme



'tears in her eyes says it all, she's lost control (again).'

joy division


remember:
'some things hurt more (much more) than cars and girls.'

20 fevereiro 2009

estação de inverno: 56ª estação




na próxima terça-feira, dia de carnaval, a quinquagésima sexta estação de inverno.


josé miguel silva prolonga a sua estadia na 'estação de inverno', desta vez a partir da sua obra 'vista para um pátio'. um traveling interior pelos caminhos da memória: polaroids muito pessoais desse país às vezes utópico, outras tantas quase gótico, que é a infância. em duas palavras: poesia sensível; em quatro: poesia sensível e dura.

as canções, sem destaque particular, passarão por habituais amigos desta casa: the go-betweens, jack, alela diane, diane cluck, the triffids, micah p. hinson, keren ann e mais uns quantos. amigos destes nunca são demais.

e, sim, nós sabemos: não somos propriamente os 'ghostbusters', mas às vezes parecemos, não é..? pois é.


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[rádio zero: terças: 23h-24h; repete sábados: 14h-15h]
[ruc: madrugadas de domingo para segunda: 3h-4h]

19 fevereiro 2009


ao virar do dia, encostado a uma caixa de electricidade, bebericando com uma réstea de vida nos olhos quase baços uma cerveja já morta. murro no abdómen.

a meio do almoço, comentando com o companheiro de repasto, por entre linguados mais ou menos grelhados, as suas mais recentes incidências médicas, em torno de expressões como quimioterapia, evolução das técnicas de diagnóstico e outras desgostosas coisas que com elas rimam. registo seco e objectivo, naturalista dir-se-ia. directo de direita no rosto.

pela manhã, algures numa conversa profissional não exactamente exaltante, ela tenta a relativização do assunto, por contraponto intuitivo à notícia recente da morte da mulher de um seu amigo próximo, na casa dos trinta anos. de súbito, as lágrimas irrompem, tomam o controlo do seu rosto e transbordam para o espaço delimitado por quatro paredes há-pouco-brancas-agora-já-escuras. gancho brutal de esquerda.

estão em todo o lado. contra estas outras falanges da ordem negra, a palavra de ordem: resistir.

porque resistir sempre foi, é, sempre será, uma forma de vencer a desalegria. de evitar ao menos o 'ko técnico'. porque o outro, 'o ko de facto', esse depende sempre de nós e do adversário. e este impôe respeito.

18 fevereiro 2009


[obrigado, z. - uma bela descoberta. yes, it does make sense. a lot, indeed.]



'every woman has her most vulnerable point. for some, it's the nape of the neck, the waist, the hands. for claire, in that position, in that light, it was her knee..'

17 fevereiro 2009

'la boulangère de monceau', eric rohmer


e lá vai ele tão-senhor-de-si-e-dos-seus-vinte-anos-a-fumar-gitanes, dir-se-ia que paira sobre as mesmas pedras que, poucos anos mais tarde, esconderão as praias da utopia de maio..

e lá vai ele tão-senhor-de-si-e-das-suas-catedrais-de-aristotélica-lógica, dir-se-ia que os seus dois pés no ar mostram apenas o quão longe está da realidade material, aquela de que são feitos os bolos que disciplinadamente vai comer, daqui a pouco, enquanto espera por qualquer coisa..

e lá vai ele tão-senhor-das-suas-emoções, longe de entender que nada pode contra a grande mão da 'real politik' do corpo e da mente (o coração ficou na mesa do café, penhor possível em troca de um futuro qualquer)..


pelo caminho, padeiras e empregadas de cafés e de pastelarias que cometeram a imprudência de se cruzar com ele. ele, tão senhor de si, fatalmente a caminho do que estava já escrito nas estrelas - forma apenas mais poética de dizer a caminho do que haveria simplesmente de ser, pela força das coisas.

o triste carnaval a chegar. ele, o triste-rei-momo, eleito sem um voto contra. nem ele próprio, bem vistas as coisas, votou contra. o corso da desalegria, espalhando as cinzas pelas multidões de desistentes que enchem as ruas, as praças, as avenidas que desembocavam antes no seu coração e que agora são apenas vias de facto para se chegar o mais depressa possível e o menos dolorosamente possível a um lado qualquer, a um futuro qualquer, a qualquer coisa.

as coisas são como são. afinal, desde cedo ele não sabia que o coração é o único caminho, mas sem um único voto a favor.

tudo o resto.. simples mentira. mas muito bem contada.



poderia falar-vos de um disco muito-belo-mesmo-sem-o-ter-alguma-vez-escutado: 'fed', de plush aka liam hayes.
poderia falar-vos do corte clássico do casaco - ou será fato..? - 'traço de giz'.
poderia falar-vos do tom rosa exacto.
poderia falar-vos da gola meticulosamente desalinhada.
poderia falar-vos do botão perfeitamente desabotoado.
poderia falar-vos do local do pin (no lugar oposto ao coração).
poderia falar-vos da rapariga - será uma rapariga..? - que espreita no pin.
poderia falar-vos do casaco da rapariga, de corte também ele clássico - será..?
poderia falar-vos do pin que ela usa, sobre o casaco, do lado do coração, com um rapaz a espreitar, envergando um casaco de corte clássico 'traço de giz' e um pin do lado oposto ao coração com uma rapariga a sair do pin e a espreitar e..



estaria sempre a falar da mesma coisa.


e ainda dizem que sou hermético / bizantino / dissimulado / metafórico / críptico nas coisas que, por vezes, escrevo..

estação de inverno: 55ª estação




hoje, a quinquagésima quinta estação de inverno.


josé miguel silva regressa à 'estação de inverno', com a sua obra 'desordem'. caçador exímio de nada metafóricos fantasmas, domador do frio, relator da desistência, boxeur existencialista? tudo isto um bocadinho. gélida e desoladora poesia. e muito bela.

no campo musical, as canções impossivelmente românticas dos 'the triffids', banda australiana que tinha um sonho: 'um novo romantismo exaltantemente pop'. revisitaremos um dos seus discos-chave: 'calenture'. um nome que é todo um programa (dicionário em riste, amigos!).


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16 fevereiro 2009

no silêncio cheio do estúdio, o senhor lambchop canta-te ao ouvido:

'but i guess it's right to love the girls who fight'.

so be it.



if you cannot run, then crawl
if you can leave, then leave it all
if you don't get caught, then steal it all
if you don't get caught, then steal it all
STEAL IT ALL

the triffids

12 fevereiro 2009


'la collectionneuse', eric rohmer

11 fevereiro 2009



..nessa dilacerante intersecção entre a matriz católica e a ferocidade personalista.


(suspiro profundo)

['ma nuit chez maud', de eric rohmer, faz parte da série 'seis contos morais', escritos primeiro e mais tarde por si próprio filmados. pedra angular da sua cinematografia, é neles que estamos de momento empenhadamente embrenhados. um cinema de precisão, de uma inteligência fulminante, que nos faz pensar.. muito. acima de tudo, no nosso sistema de valores e de como é tão fácil erguer um edifício teórico (vá lá, fácil não é; possível, isso sim), mas tão difícil vivê-lo de forma consequente. cinema deste, que não nos distrai, que, ao invés, nos interpela fundo, é um bálsamo de 'dificuldade com sentido' em tempos de 'estéreis facilidades'.]

(à suivre)

10 fevereiro 2009

estação de inverno: 54ª estação




hoje, a quinquagésima quarta estação de inverno.


porque a música em geral, e as canções em particular, são um universo emocionalmente riquíssimo, desempenhando um papel fundamental nesta coisa que é a geografia dos afectos, trazemos ao palco uma 'jukebox' muito especial: manuel de freitas, esse poeta para todas as estações, regressa ao reino do frio, para mais uma sessão de exorcismo.

a partir de memórias (umas mais crepusculares, outras mais crepitantes) de bandas, músicos e músicas, intérpretes, canções, mais um belíssimo exercício poético, no qual, muito curiosamente, se pode falar de um efeito singular: as peças musicais são, ao mesmo tempo, sujeito e objecto, tal como 'a voz que nos fala' o é - esta última, tanto nos descreve (sujeito) o universo particular de cada obra musical (objecto), como a 'persona poética' (aqui objecto) é definida pelo impacto da mesma (aqui sujeito).

um bocadinho complexo? talvez.. mas seguramente muito bonito. 'and so true'.


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09 fevereiro 2009

estação de inverno: 54ª estação




amanhã, a quinquagésima quarta estação de inverno.


porque a música em geral, e as canções em particular, são um universo emocionalmente riquíssimo, desempenhando um papel fundamental nesta coisa que é a geografia dos afectos, trazemos ao palco uma 'jukebox' muito especial: manuel de freitas, esse poeta para todas as estações, regressa ao reino do frio, para mais uma sessão de exorcismo.

a partir de memórias (umas mais crepusculares, outras mais crepitantes) de bandas, músicos e músicas, intérpretes, canções, mais um belíssimo exercício poético, no qual, muito curiosamente, se pode falar de um efeito singular: as peças musicais são, ao mesmo tempo, sujeito e objecto, tal como 'a voz que nos fala' o é - esta última, tanto nos descreve (sujeito) o universo particular de cada obra musical (objecto), como a 'persona poética' (aqui objecto) é definida pelo impacto da mesma (aqui sujeito).

um bocadinho complexo? talvez.. mas seguramente muito bonito. 'and so true'.


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06 fevereiro 2009

'porque há o mundo, de que a guerra, a miséria, a fome, a doença fazem parte. e há o imundo.'


nunca me esqueci desta frase, proferida mais ou menos assim por um historiador de renome, cujo nome não recordo.

dedico-a àquele senhor alemão, e sim é importante dizer assim: a-l-e-m-ã-o, que ontem trocou comigo um olhar. eu a vê-lo, ali numa página de jornal; e ele, algures, a ver-me a mim.

churchill, um dos meus poucos heróis, diz hoje, noutra página de jornal, que 'a grandeza de um homem pode medir-se pelas coisas que o fazem sentir raiva'. não é uma frase bonita, mas como eu a entendo, como a entendo..

eu sei: 'viver docemente', 'projectar a doçura'.

mas, muito de vez em quando, fará mal gritar: 'de ti, em memória das atrocidades que cometeste e que eu não esqueço, faço questão de te tratar como excepção!'?

eu acho que não.

e neste 'não'.. a prova cabal do muito caminho que tenho ainda para andar; a prova provada dos cães acesos que ainda vivem em mim.

hoje.
quatro letras
que se aprendem
num flash.
ou nunca.

aqui.
quatro letras
que se vivem
no instante.
ou não.

agora.
quatro letras
mais uma
que se respiram
para dentro.
ou

tu.
duas letras
mais

eu.

05 fevereiro 2009




are you dreaming about me? - asked the mirror.
i surely am dreaming about you.

04 fevereiro 2009

'para que aprendam a direcção do vôo'





não lhes toquemos senão com os materiais secretos do amor.

--

acordei também com os pássaros
e estudei a posição em que os bordava
nos seus vestidos
e disse: para que lhe espetas a agulha no coração?
e ela respondeu: para que aprendam a direcção do vôo.

--

não turbam a água dos meus olhos
as pedras que me atiram sobre o corpo

as tuas mãos vazias este muro
branco me doem muito mais.

--

porque és um povo que abandona a tua casa
e nos teus passos eu arraso o teu país.

--

trinquei o vidro e ouvi coração da mulher estalar:
a mulher era uma ilha por todos os lados.



daniel faria



'don’t believe what you’ve heard,
faithful’s not a bad word'

03 fevereiro 2009

estação de inverno: 53ª estação




hoje, a quinquagésima terceira estação de inverno.


esta semana, a estação de inverno dará inteiro e justíssimo destaque a uma das suas bandas preferidas: os australianos the go-betweens (ou, se quisermos ser mais exactos, a dupla grant mclennan e robert forster, superlativos escritores de maravilhosas canções). a banda por excelência da 'pop adulta', como muitos dizem. a banda que criou esse disco-chave sobre a linguagem do amor, o inultrapassável '16 lovers lane'. na estação de inverno, revisitaremos 3 dos 6 discos gravados durante o período de maior fulgor criativo: a década de oitenta. uma espécie de homenagem também a grant mclennan, mais um ser luminoso desaparecido a meio da viagem..

e, porque as coisas por vezes são surpreendentes, traremos ainda ao V/ encontro a poesia mística, metafísica, de pendor religioso, de daniel faria - outro ser que nos deixou muito cedo. mas que escreveu palavras que nos fazem lembrar rainer maria rilke e são joão da cruz. para os mais atentos, talvez estas referências ajudem a perceber o que gostaríamos de saber dizer.

uma estação dedicada, como tantas outras vezes, à justaposição entre o amor cósmico e o amor mais terreno. não vale a pena acrescentar a palavra 'humano', pois não..?


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02 fevereiro 2009

na islândia



a vidraça é por vezes um recurso inestimável
espécie de filtro translúcido entre nós e o universo,
como essa porta de restaurante moderno
que hoje te separa da pequena multidão lá fora.

a mistura de negro e vermelho é perigosa,
como todos sabemos bem dos livros de história
e de outras coisas que rimam com a memória
do que já fomos, do que somos e sempre seremos.

mais uma manifestação burocrática, parece-te,
'já nem dá para um entusiamo à antiga sequer,
este sindicalismo on demand', diz a teu lado a mulher
e tudo revela a essência burocrática deste tempo.

dizem-te: desempregados de espadas desembainhadas?
é coisa muito pouco vista, mesmo nada habitual,
pois o país que sobrevive já não passa no telejornal
e estes desempregados são, já se vê, gente de bem.

engoles a sopa de grão, que não te cai como devia,
e perguntas-te se será desse moderno cozinhado,
embora sabendo que a razão não está no refogado,
antes na secreta arte de manipular a algibeira alheia.

tudo se compra, tudo se vende, tudo se corrompe,
verso bem a calhar, já que te acusam de nihilista-mor.
encolhes os ombros, bebericas o café sem sabor,
serei nihilista-mor ou só lúcido? (dandy era melhor).

dormes, na rotina dos justos que navegam à vista,
marinheiros de água doce e mares sem chama,
que isto de viver enquanto se refila e se reclama,
é como reconstruir um avião em pleno vôo sónico.

a rádio fala da crise, esse animal de desestimação.
de súbito, entra-te no carro esse país (existe?) branco
a que muitos chamam islândia - ilha de fogo, portanto -
onde o impensável afinal também parece acontecer.

as pessoas revoltam-se, há pedras a voar pelos ares,
e não, não é nenhum secreto ritual, nenhuma celebração
bizarra e ancestral, é mesmo, como dizer, a manifestação
pura e dura de um mal geral: como viver sem se poder?

direitos adquiridos, o welfare state, o milagre económico,
expressões de um presente garantido, de conforto, etc. e tal,
transformam-se em palavras bolorentas, mera poeira astral.
não pagam contas de anteontem, nem são passaporte feliz.

"então isto é assim".., deve pensar aquela gente por lá,
as regras mudam em pleno jogo, "passar bem e viver mal"..
"não esperam pela demora, estes fregueses em especial",
que "a impunidade não passará!", "abaixo o governo! "..(é cá?)

retomas o teu pensamento, são exactamente 9h05,
numa cidade conhecida e tua, bem longe da islândia.
abençoado és, rapaz, por essa geográfica circunstância.
aceleras o carro, outra mudança - que bom é viver em paz.

lá longe.. mas que te interessa esse lugar abstracto?
no futuro.. mas que te interessa esse tempo por acontecer?
mas e "se lá longe e no futuro" for "o aqui e agora"? - queres tu ver..
aceleras mais, mudança engrenada, pedal a fundo.

uma lágrima contida, quase ensimesmada,
contra um muro concreto, ali logo à frente,
procuras o travão ontologicamente ausente,
enquanto te despistas - tu e a branda islândia.

nuvens de chumbo, prédios a arder,
um travo amargo, uma visão alucinada.
depois uma dor insana, vertical, funda,
depois o muro


e depois nada.

01 fevereiro 2009




he also is the man.

harvey milk


lembrar santo agostinho:
'ama e faz o que quiseres'.