25 fevereiro 2009


..e, de súbito, naquele 'micronésimo' de segundo, estás ali, outra vez. deslizas serra acima serra abaixo serra acima serra abaixo, tal e qual as ondas do mar captam a atenção do rapazinho, junto à costa. usas os recursos estilísticos, desliza a linguagem contigo, serra acima serra abaixo, uma e outra vez.

o que fica destes teus dias?

* dias de um sol impossível e de um azul improvável, tingindo o céu, numa gloriosa paleta de azuis dourados, mostrando aos 'artistas wanna be' quem verdadeiramente manda nestas coisas da arte sacra;

* o irmão do teu amigo, logo mais, no zénite do dia, deslizando também ele das mesas até ao bar onde te encostas displicentemente, treinando o gesto aprendido decerto no cinema. ele e tu. tu. ele apenas vem saudar, há quanto tempo amigo do meu irmão és mesmo tu são quê 10 anos sem nos vermos estás na mesma que bom ver-te a vida pois a vida as coisas são como são vou dizer-lhe que te encontrei e assim. a falta de pontuação é o artifício torrencial que permite ao rio semântico desaguar. todos falam do rio, mas das margem que o oprimem ninguém fala, dizia alguém (talvez brecht). e de brecht a breton é um saltinho, não é verdade? toda a beleza será convulsiva ou não será - assim diz nesse livrinho ('nadja') de andré breton. como o entendes. e nestes loops e contra-loops, flick flacks à rectaguarda, deixas as palavras escreverem-se, inscreverem-se. toda a beleza será torrencial, toda a beleza será fulminante. ou não será;

* estás no café de província, olham-te olhos desconfiados, outros fazendo contas de cabeça (olha este melro, há-que tempos que não o via, mais um que abalou para lisboa). de repente, a senhora do café atravessa em passo rápido e preocupado a sala e corre a baixar as cortinas do café. ao fundo da rua, já lá vem a marcha triste de mais um funeral na aldeia. e, perante o absoluto, os gozos relativos e terrenos ajoelham o olhar. baixam-se as cortinas, faz-se relativo silêncio. códigos tácitos, aprendidos de pais para filhos, que fazem do interior um mundo ainda outro, apesar de todas as globalizações que nos vendem a toda a hora esses modernos vendilhões dos templos que restam. nunca, tu meu querido leitor urbano-cosmopolita, perceberás isto, este gesto, tão próximo desse país atrasado, ensimesmado, que urge deixar para trás, bem longe, como aqueles filhos pouco pródigos que renegam as raízes, como se assim apagassem um pecado original. tu nunca perceberás que este mundo, de que zombas com a tua superioridade bem pensante, tem nele muito mais do que aquilo que, de cátedra, comentas entre-dentes;

* é domingo de carnaval e almoças agora, por entre amigos de teus pais, num restaurante de província, no centro afectivo e geográfico de uma aldeia circunstancial. lá fora, juntam-se vagarosamente os velhos, os novos, os semi-novos (como nos stands de automóveis, ocorre-te), para essa celebração ritualizada que são as tardes de domingo no campo. beberica-se, conversa-se, olha-se cada microgesto que acontece, comenta-se aquela realidade suspensa e, claro, o resultado do derby do dia anterior. é todo um mundo em que o passado te grita aos ouvidos. há nestes olhares lânguidos e como que conformados uma ternura nada óbvia, mas que está lá. à tua volta, alegria pela lampreia na mesa e pela vitelinha assada. pensas nos teus pais, que sempre dedicaram aos amigos tempo e tempo e tempo, em como os amigos da sua infância são hoje, como sempre foram, portos seguros de abrigo contra as intempéries da vida. em como isso há-de querer dizer qualquer coisa, ter um sentido. qualquer coisa que te resgate deste grande turvelinho interior, desta consumição que é viver sempre no fio da navalha ('mas há um sentido?' - esse matraquear infernal que só tu ouves e, por vezes, te rebenta a cabeça e as entranhas). passa-me a broa de milho, por favor. os teus lábios procuram sôfregamente o copo de vinho e pensas nesse teu alter-ego que são as palavras do manuel de freitas ('onde se lê taberna, leia-se perdição; onde se lê taberna, leia-se salvação'). o-vinho-esse-lilac-wine-essa-panaceia-a-preço-módico inunda-te as veias, semi-cerras os olhos, saboreias o naco de broa, brincas com a empregada de mesa - com os seus olhos cúmplices, melhor dizendo. diz, diz, diz, perguntas o quê.. 'mas há uma saída?'. não sei.. três vezes juras não sei, antes de o galo tardio cantar nessa tarde de província;

* não te vejo há quê?, quinze?, vinte?, anos? estás igual. quando entraste, reparei logo. pois é, sabes como é, casei, descasei, o miúdo tem agora oito anos, trabalho aqui no banco, voltei para junto dos meus pais, para esta vila-cidade em que a nossa juventude reinou durante exactamente 3x365 dias, em finais dos anos oitenta, lembras-te? eras tu um imperador garboso do seu reino, cioso da sua corte, prendado e disputado. como as coisas são. mas estás bem, estás na mesma, que bom reencontrar-te. nunca mais vi ninguém, ou vejo pouco. sabes como é, não sabes. também não vens cá muito, adivinho. não, não venho cá muito. mas venho. ainda venho. e vou encontrando pessoas como tu, polaroids vivas de figuras há muito extintas, fósseis em vida dessas memórias que doem, desse esplendor na relva a que chamamos adolescência e baixa juventude (como no alentejo, o que é baixo é o que vem primeiro, mas é o que é menos seco, mais viçoso. as palavras ai ai as palavras.) gostei mesmo de te ver, ver se nos encontramos. sais de mãos nos bolsos, ao lado dos amigos, irmanados nesse desdém pelo tempo e pela decadência abstracta. vamos mas é tomar uns copos, olhar os rostos destas miúdas e miúdos que são o que nós fomos - alegres, descomplicados à sua maneira, dançando em volta das fogueiras do aqui e agora, incendiados e incendiários, espalhando pólen. como era mesmo, joana? ah, já te lembras, 'dou-vos um mandamento novo: autopolenizai-vos!);

digam comigo:
toda a beleza será convulsiva;
toda a vida será fosforecente;
toda a arte será irrazoável;
todo o amor será urgente.

contra os canhões, marchar marchar. até cair.

antes cair de pé do que viver ajoelhado toda a vida, senhor fantasma.

e assim comunismo libertário e surrealismo utópico se fundem a quente, num acto radical de dar um sentido e uma saída a esta coisa que crepita e estala.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

belas imagens. belo texto.

quarta-feira, fevereiro 25, 2009 2:37:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Idem. Belo corpo de texto.

quinta-feira, fevereiro 26, 2009 1:37:00 da manhã  

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