13 abril 2009







em 1972, eric rohmer dirige o último dos seus célebres 'contos morais', um ciclo de 6 filmes (uma curta, uma média e quatro longas metragens) que dão vida a 6 pequenos contos por si próprio escritos na década anterior. 'l'amour l'après-midi' encerra com virtuosismo uma das suas suas famosas 'obras em painel' - desmultiplicação por vários filmes de uma mesma temática, ainda que sem ligação directa entre eles.

nesta série de 'seis contos morais', e já o referimos antes, o realizador procura mostrar os dilemas subjectivos (daí a palavra 'morais'), de consciência, dos seus personagens, os quais se caracterizam em regra por:

a) uma sofisticação elegante e bem articulada dos seus edifícios de valores, como se vivessem para demonstrar a tese que construíram de si para si próprios (em termos de valores e de costumes);

b) uma permanente necessidade de justificação, quer pela reflexão (usando aqui o facto de serem, também em regra, narrados na primeira pessoa - artifício brilhantemente usado para nos mostrar, espectadores, os meandros interiores do personagem principal de cada filme), quer pelo diálogo, quase filosófico, que mantêm com outros personagens;

c) um choque com o mundo, através da introdução contextual de factos novos no seu edifício pessoal bem arrumado e quase inexpugnável, conduzindo-os a uma espécie de 'acid test' em relação às suas próprias convicções mais íntimas e, no caso, colocando em causa, pelo relação directa, a 'praxis' estabelecida como adequada ao seu próprio interesse, tal como definido no permanente diálogo filosófico que consigo mesmos travam;

d) normalmente, esta 'dúvida', de natureza existencial (mas aqui o existencial é essencialmente de origem relacional) é sempre anunciada por alguém do sexo oposto. num mundo heterossexual, é, pois, e em última análise, das escolhas, angústias e vicissitudes amorosas entre homens e mulheres que nascem as fissuras nos edifícios metafóricos que cada personagem principal (e narrador) defende no início de cada filme, para logo perceber que tais fundamentos são muito menos operativos do que julgaria, desde que o destino apresente a oportunidade certa;

e) em termos de desfecho, o discurso (a tese?) é bem mais ambígua - para isso, necessário é ter presente os 6 filmes e as formas específicas como as personagens principais arrumam os (ou são arrumadas pelos..) episódios por si vividos, no tempo do filme.

escrito assim, podemos correr o risco de dar a ideia de que se trata de um cinema também ele de tese, altamente intelectualizado. o curioso é que o resultado final é de uma leveza e fluidez formal que nos atira para os antípodas de um cinema argumentativo. trata-se, antes, de filmes que nos distraem e interpelam; que, ao mesmo tempo, são prazer quase lúdico 'enquanto duram', e fonte de intensa reflexão, 'a posteriori'.

sem dúvida que é um 'cinema da palavra', na medida em que esta é omnipresente, mesmo nos poucos planos mais contemplativos. daqui até falarmos de uma cinema de linguagem e de como esta é decisiva para a construção filosófica da nossa própria pessoa vai um passo curto. portanto, e em suma, através de uma construção meticulosa, sofisticada, dir-se-ia que ferozmente desenhada a regra e esquadro, resulta um cinema em estado de graça, capaz de colocar em película e de nos iluminar certos ângulos mais sombrios da vida moderna que todos bem conhecemos (sujeito ou objecto? escolhemos ou somos mero resultado de um sistema complexo e em larga medida exógeno? justificamos meramente a forma como vivemos? ou vivemos de acordo com um edifício abstracto e anterior à acção? etc.), mas que nem todos sabemos (ou queremos sequer) articular.

que o faça através das relações amorosas eis a chave que, ao mesmo tempo, torna este cinema contingente e profundo. nas relações em geral (maxime, nas relações amorosas), tudo vai e vem, poucas conclusões marmóreas se podem inferir, mas quando temos um padrão (a partir dos painéis da nossa vida, no tempo; tal como os painéis sob a forma de filmes, dentro de um ciclo temático, tal como professado por eric rohmer) alguma coisa começa eventualmente a ganhar nitidez.

que, repetimos, nos dê prazer enquantos o (e nos) pensamos - eis a primeira dádiva genial de eric rohmer. a segunda é a sua incontornável humanidade. a terceira a sua extrema elegância enquanto experiência total (estética, visual, diálogos, 'acting', etc.). um cinema que, em vez de 'bigger than life', parece mesmo 'life itself', é um cinema quê..?

..que merece ser visto. e que merecer ser vivido.

porque eu sou também filho de eric rohmer. é impossível viver para contar, sem incorporar em nós próprios esta majestosa obra de altíssima relojoaria humana.