29 maio 2009

the boy with the thorn in his side*

há certos indícios que nos permitem antever a morte dos astros. há certos astros que nos permitem antever a morte de um céu particular. há certos céus particulares que nos permitem antever a morte do cosmos. há certos cosmos que nos permitem antever a morte do eu.

a morte do eu é claramente um exagero. o melhor é parar já as rotativas industriais e quejandos dispositivos digitais - que a morte do eu cheira aqui demasiado a figura de estilo. mesmo ao lado, portanto, do que poderemos conceber como 'figura do estio' - ou seja, sinais de fogo, sob o inclemente sol de verão.

poetas maiores fariam aqui, em bom rigor, a sua aparição. incendiários das planícies interiores, munidos de granadas prontas a deflagrar. versos mais ou menos arcaicos, citações religiosas, toda uma míriade de antecessores ilustres, espalhando fogo e devastação, sob a capa de metáforas, metonímias, sinédoques.. e todo o frenesim trôpego do carrossel semântico mais chic.

qual é a expressão seminal? via sacra. daqui até ruy belo e o seu portugal sacro-profano é um saltinho. mas não vamos dar esse saltinho, que a conversa é outra. falamos de vias-sacras, de fenómenos subterrâneos, de mares de azeite, de fogos-fátuos, de toda uma clássica cartilha de epifanias de cordel. isto de sacar de palavras mais depressa do que a própria sombra ainda nos levará por maus caminhos.. afinal, há ricochetes letais e nem todos dominamos a geometria dos ângulos balísticos.

por isso, senhor joão, o melhor é fazermos aqui um descanso, uma pausa, dobrar em mil o papel de embrulho - gigantesca paciência tecida a sangue, suor e lágrimas - e partir, por uns tempos, em busca de corto maltese. talvez esse longilíneo e distinto errante-entre-os-errantes possa ter a chave. talvez, nunca se sabe. ficar porquê? ficar para quê? não sabemos e este não saber pode ser tudo o que é preciso saber.

jorge de sena salta-nos ao caminho, saído por detrás de uma pedra em chamas. incendiada pela mesmíssima chama que consumiu o autor - esse auto-exilado lente e poeta que escapou de si mesmo, escapando da sua terra. escapou? morreu, sem o sabermos. como todos morreremos, qualquer dia. sem o saber e sem que outros o possam saber, nem sequer adivinhar. criptografia em estado de arte, inviolável.

os outros senhores, esses profetas do psicadelismo anacrónico (e, oh boy, tão bonito que nos dói) diziam recorrentemente, sob os auspícios da primavera lisboeta: all is lost and then you find all is dream. no fundo, talvez seja isso, não mais do que isso.

divino mago, alquimista judicioso, jongleur elegantíssimo: exorcisai os nossos fantasmas, agora e para sempre.

no fundo do fundo, reside a velha canção, irmanando criador e criatura: e não foram felizes para sempre.

no fundo do fundo, como dizia o velho resnais, no filmezinho encantador: é sempre a mesma cantiga, senhor joão.

e o senhor joão, vira-se num repente e sacando do lança-chamas movido a amor e napalm, diz a quem o quer ouvir: não vos posso exterminar? mas posso exterminar-me. e, esvoaçando com leveza e graça, soltou um último sorriso, unindo num abraço terno verão e inverno, céu e inferno.

ah, como é bonita a vida. ah, como há nela tão grande ironia, tão garbosa eloquência, como ela ultrapassa pela esquerda e pela direita a ficção mais delirante. ah, como é fulminante a vida, tão cheia de rendilhados improváveis, de ruelas esconsas, de becos que pareciam mesmo mesmo mesmo largas avenidas abertas ao futuro. ah, como é bonita a vida.

e o senhor joão, maltrapilho maltratado, senta-se no banco de jardim, indiferente aos 40 graus que juraria lhe torram os miolos literatos, mesmo juntinho ao sósia do poeta maldito americano, e logo lhe pede o cigarrito da praxe. já que a bomba está lá e é irremovível, que possa, ao menos, escolher o rastilho. e termine tudo num magnífico espectáculo de pirotecnia estival, para alegria das criancinhas.

ao largo, os carros passam e os trauseuntes tropeçam. impossível não ouvir a voz do chico cantando: 'morreu em contramão, atrapalhando o tráfego'.

('por me deixar respirar, por me deixar existir, Deus lhe pague. pela cachaça de graça, que a gente tem que engolir, Deus lhe pague')

havia um operário que construía catedrais e atravessava os séculos. cada vez que as guerras dos homens arrasavam uma das suas catedrais, ele sentava-se, sobre as ruínas e recomeçava. nunca tinha ouvido falar de sísifo, por isso era sempre possível recomeçar, acreditar de novo.

os amanhãs cantam, e se não forem os amanhãs, são os depois de amanhã, não é, senhor joão? é sim, senhor joão.

ah, rapaz de verso alexandrino em riste,

'grande asneira, rapaz, grande asneira seria
errar a vida e não errar a pontaria'.


summer came, summer went.

e tudo o que ele nunca souber dizer foi: eu só quero a porra do vosso amor. eu quero lá saber das estações e da poesia perfeita, dos poetas imaginados e do poeta imaginário, das grandes angústias universais e da física das catedrais, da astrofísica e da teoria das cordas, dos demiurgos e das fábulas celestes, da estética prodigiosa e dos turvelinhos existenciais. tudo isto é uma encenação meticulosa, uma teatro de sombras, kabuki ocidentalizado, manobras de diversão.

era um rapaz raro. depois banalizou-se. depois salvou-se. mas saíu no último intervalo e essa última parte já não viu. essa última parte nunca existiu. o almirante reis não faria melhor. ganha a guerra, mas perdida a batalha, finou-se por entre vivas à pátria e à revolução. interpretou mal os sinais. coisas que acontecem, afinal.

e não esquecer que em rodapé de valor acrescentado, um rapaz de 17 anos, algures na beira alta, envia freneticamente sms, repetindo: 'porque a beleza é o novo punk-rock; e a ternura a nova revolução'.

'where are you golden boy? where are your famous golden touch?'
leonard, leonard, era preciso ser tão exacto? não esperas pela demora! toma lá..


(..)
uma lágrima contida, quase ensimesmada,
contra um muro concreto, ali logo à frente,
procuras o travão ontologicamente ausente,
enquanto te despistas - tu e a branda islândia.

nuvens de chumbo, prédios a arder,
um travo amargo, uma visão alucinada.
depois uma dor insana, vertical, funda,
depois o muro

e depois nada.



[* credo, que título tão obscenamente óbvio, rapinando uma canção dos silvas lá de manchester. sabem que mais? rapaziada sentimental do mundo, uni-vos e tomai o mundo.]

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

...ah sr.joão...
um vulcão, sr.joão

summer came and went...already? gone with the wind?

deixais-me sem palavras, senhor,
deixais-me senhor, porra, sem as palavras

sexta-feira, maio 29, 2009 9:13:00 da tarde  

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