18 maio 2009

casa em ruínas


o xisto das paredes acolheu
os poucos desejos. o telhado
cortou os grandes frios da geada,
desviou a chuva das enxergas.
pelos postigos entrou alguma luz.
rezou-se e morreu-se nessa casa.

hoje as paredes vão-se aos poucos derruindo:
aproximam-se do chão de que nasceram.
como se se executasse nela
um antigo memento: quia petra es
et in petram reverteris.

há muito que o vento derrubou
a derradeira telha. caíram de podres
as vigas do telhado, e há já alguns invernos
que deram achas para arder no lume.
quase não há vestígios de postigos –
salvo uma floreira que parece ali
um capricho escarninho.

cumpriu-se na casa um ciclo.
hoje não tem serventia,
salvo para alguns animais furtivos
que a ocupam e lhe pedem afinal
as mesmas funções simples
que aquele que a edificou pediu outrora.

na sua decadência persistente,
a casa mete pena, como todos
os sonhos que algum dia floresceram
e depois se foram esfarelando.

está visto: as casas não têm
a mesma estouvada vocação
de eternidade
que atormenta os seus donos.



a.m. pires cabral, in 'arado'


[ou de como se escreve maravilhosamente sobre um tema transversal ao 'flores de inverno' - o trabalho da memória, a inclemência do tempo, a ruína dos sonhos, a vagarosa decadência, tudo o que foi e não será jamais..]