25 maio 2009


a ilha de onde somos, meu bem, é pobre. não poderíamos levar a vida do jeito que levamos, ver gente às compras, igrejas assim bonitas, entende? lá, as coisas são escuras, nada fáceis, seu pai não teria possibilidades de sustentar a gente. quer dizer, seu pai ou eu, que mamãe também trabalha duro. portugal é coisa diferente lá das ilhas. que dizer, meu bem, claro que a gente ama cabo verde. às vezes, bate uma saudade danada que parece que rebenta a gente. mas gente tem que continuar, não é? a gente tem que pensar primeiro em você, meu sacripantas, e em sua irmã. a gente tem que botar na cabeça qu'as coisas são como são. um dia você vai entender, meu bem, um dia você vai perceber sua mãe.

'mata-me de amor'. a língua em que as palavras eram proferidas era incompreensível para ele. mas, defendendo-se da bátega que fustigava o céu de lisboa, ele juraria que era isso mesmo que a mulher dizia ao homem que, sob a mesma chuva, a abraçava com ternura e força. sempre foi assim. para além de todas as línguas do mundo, há uma outra linguagem, essa sim uma espécie de esperanto feito de quotidiano e gestos ora bruscos ora doces. uma língua que pobres entendem tão bem como ricos. gente letrada e gente vagabunda. gente sem tecto e gente com patine nos debroados dos casacos com três botões em linha. todos entendem, sem ser necessário dicionário algum. a chuva caía agora em cascata. ou então eram seus olhos, guardando para sempre aquele polaroid de um amor renascido de cinzas há muito extintas.

porque, dizia o ilustre, a questão não é salvar o amor. a questão é salvarmo-nos do amor, que entra a direito, qual faca em manteiga, e nessa correnteza leva tudo à frente - muretes artesanais, passeios alfaltados, jardins suspensos. a questão não é, nunca foi, como construir as catedrais. a questão é, sempre foi, como sobreviver à epifania que nos deixa prostrados. ou à visão proibida que nos mostra as vigas, as estruturas, por detrás da obra magnífica - e que nos faz duvidar da própria catedral. entre uma e outra, venha o divino adivinho e escolha. a questão nunca foi a resposta; a questão sempre foi a pergunta.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

...meu bem, a questão não é salvarmo-nos do, mas salvarmo-nos com.
sempre com, sempre
mesmo prostrados, mesmo entregues, mesmo magoados, mesmo expostos, mesmo aparentemente perdidos, ou perdidamente perdidos...

a questão é encontrar caminhos e rimas, destinos e sentidos, mesmo por entre os sulcos, mesmo por entre as feridas
a questão é aceitar os processos, os momentos e senti-los e vive-los e renovarmo-nos neles, reencontrarmo-nos neles
não adianta fazer de conta...é deixar sair...transmutar...atravessar a correnter, deixa-la fluir

a catedral não se abate por ver a estrutura à mostra, não tem que ser perfeita, incólume, inatingível, perpétua, ...
continua a ser sagrada e bela porque abarca em si Tudo, o frágil e o forte, o belo e o feio, ...

um dia, sacripantas, na volta da ilha ou por aí, você vai entender e voltar a dizer 'mata-me de amor'.

a.

terça-feira, maio 26, 2009 12:08:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

a.,

touché.

ou mais do que isso.


gi.

terça-feira, maio 26, 2009 10:01:00 da manhã  

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