25 janeiro 2010


'shadow of a doubt', de alfred hitchcock

'lá para o fim'


já não frequento o café
nem de subúrbio, nem de cidade:
a minha vida, agora, é
uma bengala e a saudade.

perdi interesse pela evasão.
o rodear-me de nova gente.
ganhei o gosto por outro pão
mais indicado para o meu dente.

nenhuma escrita já é memória.
já não me perco por qualquer lado.
deixei o nome na sua glória.
deixei o corpo no seu pecado.

fluía o verso. mas, hoje, estanca
ante uma alma de austero porte.
foi rosa rubra. é rosa branca.
que imaculada lhe seja a morte.



António Manuel Couto Viana

in 'Restos de Quase Nada e Outras Poesias' (Editora Averno)

22 janeiro 2010


21 janeiro 2010




20 janeiro 2010





18 janeiro 2010


16 janeiro 2010



[in memoriam of jay reatard]

15 janeiro 2010


jean seberg

se eu cantasse o amor sem resultado ou causa,
seria mais sensata: chegava-me uma lua de papel,
um par de braços lisos, conformados.
se eu cantasse o amor sem causa ou resultado,
tinha muito mais paz: fingida em luas-cheias,
seria muito mais sensata e decerto poeta bem melhor.
assim o que me resta é lua cheia a trans-
bordar de tridimensional. a paz a falhar toda
e eu resolvida em causa a insistir papel. e amor.


ana luísa amaral

11 janeiro 2010





ao fim da tarde, fechamos a alma com tristeza funda.
morreu o maior? não sei. morreu o mais querido.
adeus, senhor eric rohmer, mestre e amigo de sempre.


[ficamos uns diazinhos de luto, se não se importam.]

10 janeiro 2010




o meu projecto de morrer é o meu ofício

o meu projecto de morrer é o meu ofício
esperar é um modo de chegares
um modo de te amar dentro do tempo

daniel faria

07 janeiro 2010


'wanda', de barbara loden

06 janeiro 2010




i have done it again
one year in every ten
i manage it

a sort of walking miracle, my skin
bright as a nazi lampshade,
my right foot
a paperweight,
my face a featureless, fine
jew linen

peel off the napkin
o my enemy.
do i terrify?

the nose, the eye pits, the full set of teeth?
the sour breath
will vanish in a day

soon, soon the flesh
the grave cave ate will be
at home on me

and i a smiling woman.
i am only thirty
and like the cat i have nine times to die

this is number three
what a trash
to annihilate each decade

what a million filaments
the peanut-crunching crowd
shoves in to see

them unwrap me hand and foot
the big strip tease
gentlemen, ladies

these are my hands
my knees
i may be skin and bone,

nevertheless, i am the same, identical woman
the first time it happened i was ten
it was an accident

the second time i meant
to last it out and not come back at all
i rocked shut

as a seashell
they had to call and call
and pick the worms off me like sticky pearls
dying
is an art, like everything else,
i do it exceptionally well

i do it so it feels like hell.
i do it so it feels real
i guess you could say i've a call

it's easy enough to do it in a cell
it's easy enough to do it and stay put
it's the theatrical

comeback in broad day
to the same place, the same face, the same brute
amused shout:
'a miracle!'
that knocks me out.
there is a charge

for the eyeing of my scars, there is a charge
for the hearing of my heart
it really goes

and there is a charge, a very large charge
for a word or a touch
or a bit of blood

or a piece of my hair or my clothes
so, so, herr doktor.
so, herr enemy.

i am your opus,
i am your valuable,
the pure gold baby

that melts to a shriek
i turn and burn
do not think i underestimate your great concern

ash, ash
you poke and stir
flesh, bone, there is nothing there

a cake of soap,
a wedding ring,
a gold filling

herr God, herr lucifer
beware
beware

out of the ash
i rise with my red hair
and i eat men like air


sylvia plath

05 janeiro 2010


anna karina por jean-luc godard em 'vivre sa vie'.

04 janeiro 2010


leio algures,  numa entrevista ao pintor nikias skapinakis, que um escritor amigo lhe havia dito, um dia, qualquer coisa como 'olha, nikias, a morte é o outro lado das flores'.

se assim é, e é assim, então as flores são o outro lado da morte.

3 anos e alguns meses depois, eu próprio entendi o que quer dizer 'flores de inverno'. para além da inspiração óbvia no poema do senhor antónoio gamoneda, que nos fala ao coração, ali em cima, mesmo por debaixo do nome do blog, há também metafísica à solta.

as flores são, afinal, o que sempre foram - o exacto oposto da morte.
em 1997 ou 1998, lhasa de sela, cantora nómada de origem mexicana, editou, no que foi a sua estreia oficial nos mercados internacionais, um disco chamado 'la llorona'.

nesses dias em que a 'world music' não era ainda vista exactamente com a relevância musical que o mundo actual - feito de fusões e 'crossovers' - lhe atribui, descobrimos este disco com aquele maravilhamento que as primeiras vezes sempre têm.

numa gravação caseira, com um som despojado, quase só a sua voz e o acompanhamento elegante da guitarra do produtor do disco - e seu, na altura, companheiro de vida -, lhasa, trazia até nós um disco arrebatador, de um lirismo pungente - uma quase ecologia do amor excessivo. excessivo é aqui um elogio, como é bom de ver..

lhasa de sela morreu no dia 1 de janeiro. tinha 37 anos de idade. os deuses, pois, os deuses.

confesso que hoje no carro caíram-me umas lágrimas.

(podemos mudar de assunto?)


02 janeiro 2010

nuno rocha morais partiu cedo. deixou-nos um único livro, póstumo, de seu nome 'últimos poemas' (edições quasi). na realidade, os seus últimos poemas foram os primeiros a serem, formalmente, dados à estampa - trocadilho semântico óbvio, não fosse a funda tristeza biográfica associada.

nuno rocha morais morreu aos 34 anos. e disse isto:


ao teu lado, mudo.
suponho que pousei a mão
no teu ombro, não sei,
ausentes ambos,
tu do ombro, eu da mão.
lá fora, não muito longe
do vidro, a manhã passa
e é calma, tristeza, fim.

--

por exemplo, as jovens estónias,
para quem o futuro foi um conceito ilegal,
têm pressa, pressa de tudo.
para elas, o tempo é, de facto,
uma relatividade do espaço,
que bebem em longos tragos –
hoje, paris, amanhã, o nepal,
depois de amanhã, a austrália.
não se querem enredar em nada,
nem Deus, nem amor, nem casas.
aprendem a exprimir sentimentos em francês
servidos por um escanção,
mas gostam de dizer que não têm alma,
nunca tiveram – proibida durante décadas,
acabou por definhar, desistir
destes corpos altos, esguios,
produto de um qualquer pacto com o diabo.
embora tão bálticas, não por isso menos gregas;
cépticas, custa-lhes a crer que o sol italiano
seja tão incondicional na sua graça,
que o céu possa ser tão sem censura.
foram amamentadas a convicções profundas
e agora não acreditam em nada,
não acreditam sequer na sua vida passada.

--

venha, por favor, senhora bishop,
voando por sobre o cemitério
fronteiro à minha janela,
por ruas sem sintaxe,
por entre árvores que aqui se refugiam
para poderem envelhecer.
estarei à sua espera
quando, à meia-noite,
o parapeito da minha varanda
for a amurnada de um quarto
que vira de bordo e se prepara
para dobrar o cabo horn.
venha, por favor, senhora bishop,
o salto mortal da elipse,
revele o segredo da amputação impassível
que anula a força centrípeta de um eu,
o iceberg de fogo em constante naufrágio,
o mastro no topo do qual temos de adormecer.
venha, por favor, senhora bishop,
deixe-se invocar, com um sorriso complacente,
pela sua própria fórmula
emprestada de outros
(e traga a senhora moore).
ensine como a geografia é a ciência
de reconhecer os lugares dentro de nós
e como o facto de serem concretos
nos exprime e poupa ao etéreo –
as palmeiras que não prestam vassalagem
ao vento em key west
ou o medo profundo que o barroco esconde
em algumas cidades brasileiras
ou a contida verdura da nova escócia.
mostre como o mar aprendeu com os tubarões
a caçar ilhas,
que desaparecem debatendo-se
num furacão de espuma
e logo as águas cicatrizam;
mostre como assim preda o seu verso
num filão de minérios sensíveis.
venha, por favor, senhora Bishop,
prove que a única fantasia
é supor a existência de um real
que não seja fabuloso.

--

brinquei, pela calada, em sítios proibidos-
na eira, no coradouro, perto das orquídeas.
na eira, quando o milho era ouro,
perto das orquídias, flores difíceis e petulantes,
no coradouro, quando a roupa branca
secava à brandura do ar,
que depois se estendia ao corpo.
e então tinhamos, eu e os meus primos,o perfume dos anjos,
como nos chamavam, com a desrazão do amor,
avós e tias. mas os anjos,
se outros há para além da nossa melhor natureza,
brincam em sítios proibidos,
como nós no coradouro,
onde também jaziam os ossos de cães amados,
tentam atravessar a pé o pousio das águas,
sem saberem que o rio pode ser
um mal tranquilo,não menos predador.
apenas sofrem de nódoas negras sem metafísica
e de um leve tremor da primeira sombra sexuada.
em breve começamos a roubar fruta e beijos,
brincando sempre à socapa em sítios proibidos,
mas incapazes de conter o alvoroço-
então avós e tias chamavam-nos
demónios, diabretes, mafarricos.
a infância começava a ser uma impostura,
não sabíamos ainda, não ainda,
que já tinhamos sido expulsos do paraíso.
 
--
 
que não acabes nunca de me esquecer
(a memória como um dente-de-leão
que resiste a todos os sopros,
um lume de partículas suspensas
pairando como luz num dia de Verão,
enxames crepusculares sobre um curso de água).
que indelével seja qualquer coisa,
um cristal de noite, o resto de um riso,
uma cintilação na nebulosa de instantes
em que acordámos juntos
e percebemos, num misto de alívio e alegria,
que o amor não tinha acabado ainda,
que ainda não nos deitáramos a perder.

--
 
não se cansa o ramo
pese embora tanta neve -
assim o amor por ti.

01 janeiro 2010