30 março 2010

e o que é a memória? por exemplo, estamos no natal de 1984 - esse mesmo, eternizado pela distopia fria de george orwell. nesses dias de medo nuclear (um medo externo que corrói por dentro, repara como  nuclear assume um duplo sentido e que essa duplicidade reforça a força sombria da palavra). estamos em 1984 e, na fotografia que agora prende os teus olhos, está tu, as tuas irmãs, as tuas primas. tens 12 anos de idade, a idade quase adulta está a um passo (sim, tu que contas a idades como os animais - cada ano valendo por vários, talvez venha daí o teu lado mais austero, uma certas gravitas que colocas em tudo o que tocas). na fotografia, estão os teus avós, álvaro, antónio, maria teresa, maria do céu, a tua tia-avó, maria alzira, os avós das tuas primas, hélio e rosa, a tua mãe, a tua tia. hoje, 25 anos depois, quantos estão vivos? a fotografia veio ter contigo, pela mão da dona rosa, que a entregou à tua avó, maria do céu. elas são as únicas sobreviventes desse tempo, se descontarmos as mamãs e as filhas das mamãs que também aparecem, gaiatas, sorridentes, na fotografia. faltam uns primos, faltam uns tios, faltam os pais. é uma fotografia formidável, não pela técnica, mas pelo amor que dela irradia, como são todas as fotografias onde estão avós, mamãs, filhas e filhos. a pj harvey canta qualquer coisa linda sobre o "desperate kingdom of love", em negro, mas existe também nesse verdadeiro esperanto universal, um outro lado, solar, em que tudo é belo, sereno, lindo. esta fotografia que te veio parar ao colo é muito difícil de encarar. nela estão alguns dos teus mortos mais bonitos, algumas pessoas que vivem em ti. por isso, rapaz de avental negro, quanto te disserem que não és deste tempo, que não te sabes relacionar com a modernidade, nunca te esqueças que sabes perfeitamente por que razão tal acontece: ninguém está verdadeiramente vivo quando aos ombros traz todos os seus mortos mais queridos. vinte e cinco ou vinte e seis anos são o quê? nada de nada, mera poeira astral, como gostas de dizer. claro que, em certos dias, gostarias de saber o que é estar vivo, como essas pessoas em que esbarras, no centro comercial, na fila do cinema, nas ruas da tua amargura. mas ninguém escolhe, como ninguém escolhe estar vivo. aceitar o melhor possível, "that's your job". disfarçar o melhor possível, "that's your trick". não desistir, "that's your mission". natal de 1984, uma tarde de sol, a ternura incendiária que sai de uma fotografia queima-te a ponta dos dedos, esses mesmos dedos que agora escrevem estas palavras. o gastão cruz, escreveu, no seu mais recente livro ("crateras") algo que diz

(..) estas palavras de quem está vivo e, às vezes, não respira.