14 março 2010


paulo henriques britto, poeta superlativo:


as coisas que te cercam, até onde
alcança tua vista, tão passivas
em sua opacidade, que te impedem
de enxergar o (inexistente) horizonte,
que justamente por não serem vivas
se prestam para tudo, e nunca pedem

nem mesmo uma migalha de atenção,
essas coisas que você usa e esquece
assim que larga na primeira mesa

pois bem: elas vão ficar. você, não.
tudo que pensa passa. permanece
a alvenaria do mundo, o que pesa.

o mais é enchimento, e se consome.
as tais formas eternas, as idéias,
e a mente que as inventa, acabam em pó,
e delas ficam, quando muito, os nomes.
muita louça ainda resta de pompéia,
mas lábios que a tocaram, nem um só.

as testemunhas cegas da existência,
sempre a te olhar sem que você se importe,
vão assistir sem compaixão nem ânsia,
com a mais absoluta indiferença,
quando chegar a hora, a tua morte.
(não que isso tenha a mínima importância.)


--

há maneiras mais fáceis de se expor ao ridículo,
que não requerem prática, oficina, suor.
maneiras mais simpáticas de pagar mico
e dizer olha eu aqui, sou único, me amena por favor.

porém há quem se preste a esse papel esdrúxulo,
como há quem não se vexe de ler e decifrar
essas palavras bestas estrebuchando inúteis,
cágados com as quatro patas viradas pro ar.

então essa fala esquisita, aparentemente anárquica,
de repente é mais que isso, é urna voz, talvez,
do outro lado da linha formigando de estática,
dizendo algo mais que testando, testando, um dois três,

câmbio? quem sabe esses cascos invertidos,
incapazes de reassumir a posição natural,
não são na verdade uma outra forma de vida,
tipo um ramo alternativo do reino animal?


in 'macau', um pequeno grande livro de poesia contemporânea, made in brasil.