31 maio 2010


no canto do bolso, o livrinho vermelho gritando por london. no bolso do canto, o livrinho branco calando macau e tu, águia real outrora, rondando a presa da circunstância, estruturando o ângulo pelo qual alguma coisa mudará para sempre. a música da multidão que é sábado ciranda em teu redor sem te poder, contudo, ouvir - a paga que te dá, bem merecida, sentes. does not suffice pode querer dizer tanta coisa, tanta coisa. por exemplo: que desistes da presa de sábado à tarde, da ideia, do conceito, equação esdrúxula, binómio aplicado ao que interessa. jogas na antecipação, como essa gente que inunda o metro de londres e as ruas da macau outrora um bocadinho também tuas. essa gente que carrega aos ombros todos os corações de todos os sábados, e lembrar o rui e o seu memento por diana - tão morta agora quanto o nosso inferno amor. vícios de linguagem, pode-se aqui ver, que a metafísica pura anda arredia há muito, sabemos tão bem. does not suffice o frenesim agudo que te estremece, nem os olhos da menina da caixa em registo mecânico de simpatia profissional. e no entanto seus olhos são lindos e, como em london london, pensas em quem acolherá o seu corpo decerto cálido, pujante e pungente, como todos os corpos jovens que te passam rectas oblíquas (tangentes). deixas em paz e sossego o que remédio não tem, abandonas a centelha sentada num banco de jardim, à porta do centro comercial sem spleen possível, materialismo e nada mais, para diletantes sem ocupação. o teu coração - ou será outra coisa? - dispara em compasso estugado, coisa diversa do movimento certeiro que outrora a águia que eras lhe dedicaria com arte abstracta e ciência mais do que técnica. agora, partes dentro de ti, segues. stop stop. macau e london, lisboa é isso também, cidades dentro de uma cidade desmultiplicada. um dia, quando estiveres dentro de mim, naquele momento estelar, em que estarei dentro de ti, desferirás teu tiro febril e fatal, pequena sereia da caixa de supermercado - antes que faças, portanto, do cavalo de tróia uma estratégia infame e deja vu letal, arrumo-te eu a um canto, no mesmo banco que ficou lá atrás, nas linhas que falam desta lisboa, simulando londres, london, macau. pois é, donzela, esta vida está, como dizer-te, esta vida está está está mal - em português sem acordo ortográfico que a salve etc e tal. estamos nós, as cidades e a semântica, a falta de ar e de quântica - é como se em vez de natal nos servissem um arremedo estúpido de carnaval. e nós assobiamos. não achamos bem, convenhamos. mas também  não achamos que esteja como está: m-a-l, soletrando portanto,  dá qualquer coisa assim: estamos mal. mesmo mal. mesmo mal. que se lixe a páscoa e o entrudo, dom casmurro e as férias grandes, mais as férias de natal, que lixe passado, presente e futuro - welcome to dearland, nome outro para esta pátria imprópria, inerte e estuporada - vamos brincar a um futuro, aqui e agora, vamos brindar a portugal?
às vezes, apetece desligar a conta de e-mail e desaparecer no ciber-espaço. ou de como certos mails pela manhã têm aquele especial - inarticulável - condão de acabar com um dia que ainda nem sequer tinha exactamente começado.

pois, pois, diz o mestre zé, tens sempre o delete à mão de semear. pois, pois, respondo eu ao mestre zé. cada um sabe da sua faina. e perante um barco em pleno mar picado, é fácil dar indicações a partir de terra firme.

enfim, delete-se a coisa e retome-se a causa: viver (em japonês é mais bonito, mas quer dizer exactamente o mesmo). a causa sem a coisa, estilando conhecidas palavras alheias.

não perceberam nada? entendo. mas, como disse um ex-jogador e ex-treinador de futebol holandês: se eu quisesse que percebessem tudo, tinha explicado melhor.

aquele abraço e felicidades.

30 maio 2010



[depois, depois há gente que escreve assim:]


X. (L.W. intensamente negro sobre quadro riscado)


Desprezasse o conhecimento
e o terrível sentir de uma palavra moral.
A guerra consigo mesmo,
esse combate mortal, jogava-se, não nas trincheiras
(as trincheiras seriam apenas um expediente
para o vazio que em si parecia contemplá-lo)
mas no seu oco, nessa incerteza que o percorria,
que merecia ser ferida, golpeada,
numa espécie de ódio de si mesmo
que lhe diziam envenenar a alma vienense,
cujos golpes seriam um desvio
para outra coisa, um degrau abandonado,
uma clareza consentida e de partilha improvável.
Riscava a palavra dor no quadro negro
que intensamente lhe tomava o olhar
quando escutava um dos dilectos,
ele que sempre odiara discípulos, e aqui
estava ele, a avaliar a dor do mundo
através de um relance sobre a inviolável
gramática da perplexidade.


Luís Quintais, "X", in "Riscava a palavra dor no quadro negro" (Editora Cotovia).

[e, provavelmente, o título literário do meu ano.
depois, depois de coisas assim, a gente vai para a cama, ver se esquece um bocadinho tudo isto.]

o jovem martin amis, verdadeira star das letras britânicas. um dos amigos cá de casa - ou não me tivesse ensinado desde cedo o (não-)valor dessa coisa, o dinheiro. money, em Inglês, ou lá o que é. grande martin.


- leave them to heaven! - the big man roared, up in the sky.
and he did exactly what he was told to.

da semiótica de domingo à noite

eu, que detesto arqueologias afectivas, na sua vertente material, dei de caras com resquícios de uma coisa qualquer (aqui estou a estilar - usar uma figura de estilo, como quem usa um skate). esta coisa qualquer é um caderninho, pequenino, para usar no bolso da camisa porventura, simulando a capa de um livro. nas costas, um calendário do ano 1993. lá dentro, folhinhas em branco ainda imaculado. o título do livro? pois. chama-se 'o livro dos amores risíveis'. e assim, em 1993, o futuro, estando ainda por escrever, estava todo ele, afinal, já escrito (aqui estou a estilar, uma vez mais - para não darem o v/ tempo como totalmente perdido, sempre se entretêm com este uso que faço da lusa língua). é caso para dizer: ora bolas, senhor kundera. ora bolas. a brincar à semiótica com um pobre como eu?

29 maio 2010

-de repente, diz-me os livros da tua vida:
-'o processo', de franz kakfa, porque me fez descobrir o mundo adulto, ainda em criança; 'the catcher in the rye', de j.d.salinger, porque me fez recuperar o zénite da adolescência, já em adulto.

-escreves isto, hoje, porquê?
-porque acabei de ler 'carpinteiros, levantai alto o pau de fileira', conto (story) de salinger, editora difel (publicado num mesmo volume com outra story (conto), chamado 'seymour: uma introdução'). e quando acabamos de ler uma coisa que é, lá vamos nós, perfeita-perfeita, quando acabamos de ler um livro que nos apetece beijar (e falo do objecto físico, à falta de melhor), quando acabamos de ler um livro que nos redime e parece reparar tudo o que de defeituoso temos em nós - mero reflexo dos mesmos defeitos que observamos no mundo exterior -, quando acabamos de ler um livro e apetece transcrever as seguintes palavras, nele mesmo encontradas

o que é não sei
mas de gratidão
as lágrimas caem-me
(saygio)

então, dizíamos, é bem capaz de ser caso para, contra toda a fealdade que nos cerca e define, gritar bem alto

carpinteiros, levantai alto o pau de fileira!

j.d.salinger: o que é não sei, mas de gratidão, as palavras caem-me. ou seja: levantam-me.

27 maio 2010

25 maio 2010

nos meus primeiros dias de repórter, levava à letra o conselho de kierkgaard, segundo o qual, na primeira metade da vida, o que um homem deve verdadeiramente temer é tudo aquilo que, por uma razão ou por outra, deixa de fazer, tudo o que não ousa realizar, ficando-se numas mui humanas covas. vivia em conformidade com essa - e com muitas outras - regras e isso significava não ter medo de me embrenhar a fundo por caminhos mais sombrios, ruas esconsas, lugares que muitas pessoas não sonham sequer que existem. numa dessas minhas deambulações solitárias, cruzei-me com sofia. sofia, nome seguramente inventado, era uma profissional do que o cidadão comum chama "sado-masoquismo", ainda que, à boa maneira portuguesa, numa versão simpáticamente ligeira. aquilo que para o comum mortal, não praticante de tão sui generis credo, é uma "especialidade erótica", mais ou menos desviante, para sofia era todo um edifício teórico, cuidadosamente eregido, em torno do que chamava "os princípios sagrados da dor". aprendi muito, nesses meus diálogos com ela, normalmente realizados em cafés manhosos, nos bairros mais típicos da cidade. os cafés terão sempre um papel social insubstituível, seja na alta ou na baixa cultura. não admira, pois, que sofia e eu, de forma mais ou menos rápida, tivessemos estabelecido uma espécie de pacto - um sms, dois sms, e lá estávamos, frente a frente, olhos nos olhos, escondidos do mundo, num qualquer pequeno café, nem perto nem longe do bairro onde ela habitava. claro que, a princípio, sofia andava desconfiada de mim e das minhas reais intenções. eu entendia, claro que sim. e, olhando agora retrospectivamente, posso até dizer que eu próprio desconfiava um bocadinho de mim e das minhas reais intenções.. sofia não era um portento de beleza, mas no género balzaquiana, não estava mal. eu era um repórter em serviço, obcecado e obsessivo com o meu trabalho, mas, que diabo, havia ainda em mim uma réstea do rapazote que, no fundo, continuava a ser. ao longo das tardes, e das noites, em que perorávamos sobre aquela, para mim, tão estranha forma de vida, fomos ganhando confiança, como exércitos que não sabem bem para onde cair: aliados ou inimigos? dilemas eternos da coisa humana. foi assim, gradualmente, que sofia me contou muito do que sabia. falávamos sobre a sua vida, dentro e fora da sua especialidade profissional, digamos assim, sobre a importância dos papéis na nossa vida, sobre o risco de caírmos numa terra de ninguém existencial - um limbo em que somos todos e nenhum dos múltiplos papéis que desempenhamos. fiquei também a conhecer o perfil dos seus clientes ("amigos", como ela lhe chamava). insuspeitos, como sempre acontece na realidade, eram médicos, psicólogos, psiquiatras, arquitectos, professores universitários, até um escritor ocasional. prometi-lhe, claro está, que alguns dos segredos partilhados nunca seriam por mim revelados. lembro-me de ela me ter perguntado, enquanto sorvia uma longa, e nada típica, chávena de café bem negro: como pode um repórter prometer uma coisa assim, que não revela segredos? então não é esse o objectivo da profissão? expliquei-lhe a minha visão sobre o que era ser-se repórter, sobre o absoluto esclarecimento ético necessário, sob pena de desabarmos interiormente. que um repórter verdadeiro está nos antípodas dos paparazzi - enquaanto estes últimos expôem a mera superfície, mesmo que escondida, um repórter interroga os verdadeiros subterrâneos da humanidade, o que está por debaixo da pelílcula social que a todos nos envolve. o seu bisturi é de alta precisão e não se compra em nenhuma loja de utensílios para jornalistas. outras vezes, falávamos de nós, sempre num jogo de salão de alto risco. por exemplo, de mim, do rapaz que eu também era, do que gostava de fazer e não fazer, se já havia experimentado alguma das técnicas que a tornavam famosa - e desejada - num círculo restrito. recusei sempre, com amabilidade, invocando o mais humano dos sentimentos, simples medo. sofia respeitava sempre as minhas posições, porque percebia que o meu interesse era genuínamente desinteressado, no sentido transaccional do termo. eu estava ali porque sim, por mero acaso, era gentil o suficiente, interessado pelos conceitos e não apenas pelo lado mais animalesco ou instintivo do assunto. não era comum encontrar rapazes assim, muito menos homens assim. e assim me foi deixando ficar. um dia, contudo, em que tinha já vários cadernos cheios de furiosos apontamentos sobre aquele mundo, sofia disse-me que ia embora, para fora de portugal. senti saudades imediatas, coisa que também é contra as regras da boa reportagem. mas eu não fazia boa reportagem, por isso, acho eu, podia bem dispensar as regras inerentes à boa reportagem. fazer reportagem bastava-me e enchia-me de júbilo - descobrira enfim uma profissão suficientemente amiga da palavra liberdade. e isso era, para um jovem rapazote como eu nesses tempos era, o mais santo graal. sofia ia-se embora, por razões pessoais e por razões relacionadas com o seu métier. deixou de atender o telefone, de responder às minhas sms. a reportagem estava escrita - ambos o sabíamos muito bem. era tempo de seguir viagem. meses depois, com surpresa, recebi uma longa sms dela, talvez o meu último registo passível de demonstração material desses tempos. dizia assim: "para que nunca me esqueças, gostava que viesses ter comigo, ao meu estúdio. não te vou obrigar a fazer nada de especial, já sei que não aceitarias. por isso, propônho-te que me batas à porta, à meia-noite. encontrarás a porta aberta. entra. ao fundo do corredor, à direita, estarei na minha cama, semi-adormecida. gostava que me abraçasses e que me adormecesses. depois, podes sair. mas ficas assim com uma memória da mulher que também sou. e eu do rapaz que também és, para além do repórter que tentas ser." lembro-me do que senti, ao ler as palavras de sofia. mas, como prometi em juramento solene de mim para mim, um repórter não conta tudo. há coisas que ficam connosco. apenas posso adiantar que dormi muito bem, estupidamente bem, nessa noite. e que, ia jurar, a sofia também. nunca mais a vi.
['love is all, it gives all, and it takes all.' - said soren to me.]



soren kierkgaard. in memoriam dele. e de ti.

24 maio 2010


'curso intensivo de jardinagem': a estreia poética de margarida ferra.


areeiro

o sinal vermelho, o carro
travado. à esquerda, a bomba de gasolina;
à direita, a gaiola equívoca.
duram um minuto e meio,
a minha espera
e os contos que me visitam,
rápidos monogramas em ponto cruz
dessa louca sem nome.

morou ali no tempo
em que a cidade acabava antes.
gritava no corredor
que era um pássaro, nascia de manhã
com asas, as penas caíam-lhe à mesa.
ao fim do dia, abria-se a porta
da varanda. arrancou
e comeu todas as petúnias brancas.
depois, o bordado caído
e os olhos atirados para o céu,
por onde hão-de passar estes aviões
agora. presos: o tecido no bastidor e o ar no peito
(ao contrário daquele que ainda circula –
a única coisa que as grades não podem segurar).

gata está agora à minha frente e o que mais marca é a clareza translúcida dos seus olhos (do seu olhar). tem um metro e sessenta e pouco, arrasta duas muletas que pouco préstimo oferecem, sem que se perceba muito bem porquê, veste de forma normal, colete por cima de t-shirt, por cima de umas calças de ganga clara. sapatos correctos, relógio aceitável, cabelo bem cortado. gata é romeno e quando o encontrei era ainda um quase indigente, um habitante vindo da mittle-europa em busca do eldorado ou de coisas mais simples. gata era cozinheiro de grande hotel, lá na sua terra natal, uma cidadezinha não longe da capital do seu país. pai de filhos, um dia encontrou a sua mulher em manobras menos lícitas com outro homem. ao contar-me isto a clareza dos seus olhos desaparece por uns momentos, dando lugar ao que parecem ser outros olhos. outro homem, ocorre-me. gata continua a sua história: bem vê, a mulher de uma vida, mãe dos seus 3 filhos, enrolada na cama com um homem que, por acaso.. era um seu amigo. como é que um homem recupera de uma coisa assim? - fita-me nos olhos. e foi este o caminho ínvio que o trouxe até portugal. nesses dias, eu era ainda um repórter pouco habituado às regras da profissão, que, aliás, não exercia, em bom rigor. limitava-me a sair de casa, todas as manhãs, com um pequeno caderno A5 enfiado na algibeira, um lápis usado e um telemóvel. deitava-me ao caminho e seguia sem destino, cidade fora, cidade dentro, olhando as pessoas nos olhos. acontecia-me de tudo, é bom de ver, ao atirar-me aos outros com tal frontalidade. as pessoas perdôam tudo, ou quase tudo, mas raramente perdôam um olhar directo, olhos nos olhos. as miúdas pensavam que eu as cobiçava (e cobiçava algumas, quando me distraía do meu afazer de repórter amador), os homens mais velhos praguejavam comigo, os jovens ameaçavam-me em voz alta. mas eu, que era jovem, nada fazia para inverter essa minha febril rotina diária - encontrar pessoas de carne e osso e pele e espanto e por aí fora. às vezes, calhava encontrar alguma, como no dia em que conheci gata. gata repetia, olhando-me para detrás dos olhos: como pode um homem sobreviver a uma coisa assim? há coisas fundadoras de grandes amizades masculinas. este segredo humilhante, dilacerante, de gata foi o início da nossa amizade. ao longo dos últimos anos, cada vez mais embrenhado na minha não-profissão, fui encontrando gata, pelas esquinas e recantos da cidade. trata-me por menino, e sou-lhe grato por isso. descobrimos juntos a nossa admiração comum por um clube de futebol, por certos treinadores e outros tantos jogadores. e pelas manhãs bem madrugadoras da cidade. e pela cidade em si. e pelo olhar claro e limpo, num caso filtrado por um par de olhos azuis marinhos, noutro caso filtrado pela negra neblina que por vezes me envolve. gata encontrou uma mulher nova, alugou dois quartos, num prédio de bairro, por cima de um café frequentado por junkies amenos. está-se bem, menino, atira-me ele, vezes sem conta, baralhando-me as emoções que nem sempre acompanham a positividade que sempre o acompanha a ele. gata, romeno, sessenta anos, pai de três filhos, ainda não avô, casado em regime de para que é que o papel interessa, adepto fervoroso do meu clube de futebol, ex-cozinheiro no restaurante de um grande hotel, é um lisboeta perfeitamente assimilado. de vez em quando, diz-me ele, bate uma certa saudade. mas a tv cabo, devidamente quitada num tugúrio da almirante reis, dá-lhe acesso às dores e alegrias da terra que deixou para trás, com notável nitidez e aceitável qualidade no som. não tem fantasmas, este meu amigo, nem sequer aquela imagem terrível (a palavra é minha) que lhe mudou a vida. é assim, menino, um homem tem tudo, para descobrir que não tinha nada. é assim, menino, um homem sem nada pode ainda ter tudo. até um país novo, com amigos novos, sol e bom futebol, o amor de uma boa mulher. gata fala-me com serenidade, como um pai a um filho. acho que é contra as regras do bom jornalismo envolvermo-nos com os objectos da nossa investigação. mas eu nunca quis ser bom jornalista, antes um formidável repórter, daqueles que escrevem umas linhas e dobram, do outro lado do mundo, uns quanto leitores seguros de si, em quatro. no fundo, gata mostrou-me que era possível. e isso é, em termos felinos e ao mesmo tempo humanos, dizer-nos para acreditarmos naquela coisa das sete vidas. que todos temos, bem ou mal escondidas, dentro de nós. mas temos.

o comboio

digamos no final deste sábado que
a novidade foi nada se ter passado,
que tudo cada vez se volve mais eterno,
profundamente chato e sem contornos,
e que não é possível um pássaro de fogo
entrar-me no escritório, vulgo biblioteca.
sei tão bem as cidades por onde caminhei
que bocejo somente em pensar ir
até ao aeroporto. todas essas cidades
se resumem à estrada que vai por aqui
não me interessa aonde.
mesmo a rapariga que achei bela,
a semana passada desfeou-se
e as árvores, porque é outono,
perderam todo o brilho que tiveram,
e nada disto é digno de citar-se.
portanto regressemos ao princípio.
nada sucede, e o meu coração lança
a crédito outro dia que jamais
poderei reaver. e quantos dias
assim hão-de somar-se em anos idos?
oxalá não me ponha a fazer contas
a esse tempo que vou perdendo
nem escute o comboio em que, miúdo,
pensei fugir de casa para sempre.

nuno dempster

por vezes, um mau tenente é o melhor soldado. por vezes, não.
[as palavras são de al berto]

20 maio 2010

'io sono l'amore' é um filme de luca guadagnino
breves notas mentais:

- a linguagem oblitera-te, às segundas, quartas e sextas. a linguagem inunda todos os teus poros, às terças, quintas e sábados. ao domingo falta-te a linguagem e é como se te faltasse o mundo.

- recuperar uma mandamento moderno: no, facebook is not the answer. sorry, guys and girls.

- reaprender a rezar, dá-me impressão.

- mais um ano sem pôr os pés na feira do livro. é o que se chama (não) meter os pés pelas mãos, quanto à dose diária de erudição literata.

- sim, o que é um nome? esse que usas é fortíssimo. nunca tinhas pensado nisto, que um nome se pode usar, como se fosse um "ícone fashionable". viver é aprender.

isto também é aquela coisa fugidia: a modernidade.

19 maio 2010


[a canção, a canção.]

18 maio 2010


amigos: ouçam isto, em casa, com o volume bem alto. talvez sejam tocados por essa coisa estranha - e linda - que me invade, não raro, quando escuto neil young. one of a kind, truly. exactamente como se diz daquelas pessoas que nos mudam a vida. isto é.. speechless.

ou então é música.

'i went to the radio interview, but I ended up alone at the microphone'
you're the kind of girl i like, 'cause you're empty and i'm empty, cantam os soberbos pavement, no rádio do carro. vai daí..
- qual é o projecto da sua vida, antónio mega ferreira?
- o projecto da minha vida? o projecto da minha vida sou eu.

17 maio 2010

16 maio 2010



cat people

curiosa a tribo que formamos, sós
que somos sempre e à noite pardos,
fuzis os olhos, garras como dardos,
mostrando o nosso assanho mais feroz:

quando me ataca o cio eu toda ardo,
e pelos becos faço eco, a voz
esforço, estico e, como outras de nós,
de susto dobro e fico um leopardo

ou ando nas piscinas a rondar -
e perco o pé com ganas sufocantes
de regressar ao sítio que deixei

julgando ser mais fundo do que antes.
a isto assiste a morte, sem contar
as vidas que levei ou já gastei.

margarida vale de gato

15 maio 2010


como um crente que não dá testemunho da sua fé, ando longe de ti, cidade minha. mas toda a gente sabe que te trago bordada na pele. em tempo de coisas que nascem e morrem, és eterna. em tempo de volatilidade, és constância. és, mesmo vista de longe, a cidade que está sempre perto. és espelho - maltratada cidade, fulminante cidade. metáfora perfeita de uma vida imperfeita.

14 maio 2010


declaração de intenções


para aqueles que insistem em diluir
isto que escrevo aquilo que eu vivo
é mesmo assim, embora aluda aqui
a requintes que com rigor esquivo.

à língua deito lume, o que invoco
te chama e chama além de ti, mas versos
são uma disciplina que macera
o corpo e exaspera quanto toco.

fazer poesia é árido cilício,
mesmo que ateie o sangue, apenas pus
se extrai, nem nunca pela escrita

um sólido balança, ou se levita.
então sobre o poema, o artifício,
a borra baça, a mim a extrema luz.


margarida vale de gato
in 'mulher ao mar' (editora mariposa azul)
 
[ou de como a uma superlativa tradutora, dizem os entendidos, se soma agora uma perfurantemente estupenda nova poeta. bem-vinda.]

13 maio 2010


talvez todos os defeitos do mundo, menos um: a humildade de pedir desculpa.

quando à brutal despressurização dos bosques em volta se junta a descalcificação dos teus ossos, vais pelo vento, de algibeiras vazias e olhar limpo - doces lábios procurando o assobio exacto. és tu a melodia.

12 maio 2010


como explicar aos passantes que ao som desta canção, se porventura o repeat fosse possível, eras capaz de escrever um romance, duzentas páginas em modo de escrita automática, sem um gatafunho, uma palavra ao lado, sempre prego e mãos e tudo no acelerador das tuas próprias partículas? como explicar a ti próprio?

11 maio 2010



repara, laura, nas minhas palavras,
uma hipótese entre tantas outras de seres feliz.

aqui, neste bairro que só nós dois habitamos,
nenhum linguista ousará desfazer
os nós entrelaçados dos nossos dedos;
nenhum filologista romperá jamais
os elos, os laços, os traços
que nos unem
e reúnem
à volta da enorme árvore frondosa da praça maior:
a linguagem.

de alexandre dito o grande, restam os livros.
de roma, outro tanto.
alexandria, sião, constantinopla?
poeiras
varridas pelo tempo.
já as palavras teimam, insistem, resistem.

como esta minha ideia louca, laura,
de te fazer feliz
por pura osmose semântica.

um dia, alguém dirá: foram felizes, tão felizes, aqueles dois.
e sabes que mais, laura?
no espaço destas exactas 27 linhas mal escanhoadas,
descontando já as linhas brancas,
sei que
fomos fomos fomos fomos

- isto é: sei que somos.

..porque o rock'n'roll, pela manhã, contra o céu azul dourado, enquanto os dedos tamborilam na porta do carro, furtando-se esquivamente às quatro paredes com rodas, enquanto o rosto se banha no ar frio da manhã, enquanto os semáforos piscam o olho uns aos outros, enquanto as meninas se dirigem para o emprego e cheiram à légua a pão fresco, a café da manhã e a jacarandá, enquanto as beladonas se desenham a si próprias, usando o céu como tela e as nuvens como tinta feérica, porque o rock'n'roll, pela manhã, salva.

..porque os milagres acontecem a horas incertas, como diz o poema.

10 maio 2010

porque não sou do benfica.

nunca poderia ser de um clube que arroga a dimensão como argumento. o estafado argumento dos 6 milhões, tal como celebrizado por um castiço ex-presidente, contém uma insuportável dose de proto-fascismo social. eu nunca pertenci a nenhuma maioria, a não ser eventualmente a decorrente do voto. mas esta decorre de uma escolha individual e reversível (de 4 em 4 anos). não se confunde com fantasias semi-metafísicas sobre "o povo escolhido". um populismo de massas travestido de grandiosidade serôdia leva sempre ao mesmo desfecho: a irrelevância histórica. deixem o tempo falar.

nunca poderia ser de um clube que é uma espécie de montra do que o portuguesismo tem de pior. um benfiquista, em regra (que, como em tudo, há excepções virtuosas), vive obcecado entre um passado mitificado (o benfica europeu, o eusébio, etc.), um presente enviezado (nos últimos 4 anos, ficaram sempre atrás de sporting e porto, mas não se lembram disso..) e um futuro simplesmente irreal ("o sporting vai desaparecer, o benfica vai esmagar" - gritava ontem uma alma; "quero ser campeão europeu", dizia Jesus, esquecendo a dimensão interna da equipa e do nosso futebolzinho.)

nunca poderia ser de um clube que vive entre febras e copos de três, mistura de popularucho e popular, sem elites, quase sem aristocracia, quase sem burguesia, quase sem intelectuais. como engenharia social, estamos conversados sobre a riqueza desta espécie de estado dentro do estado. dir-me-ão: mas se são tantos, todas essas tipologias têm de lá estar. verdade e mentira. verdade, porque estão, em regime de quotas. mentira, porque convém não esquecer que estamos em portugal, logo a base de recrutamento dos aficionados benfiquistas tem exacta correspondência na amorfa estrutura social do bom povo português.

nunca poderia ser de um clube insuportável, que ganhe (menos vezes) ou perca  (mais vezes), é sempre o maior, assente no prestígio europeu (uma falácia), no palmarés esmagador (uma complexa construção do regime, por muito que digam o contrário), numa mística de feira popular.

se o V império tem tons vermelhos ou encarnados, então eu saio já na próxima paragem. ninguém aguenta viver num portugalzinho exponenciado ao quadrado - se ser português é ser benfiquista, eu sou cidadão do mundo; se ser benfiquista é ser português, estamos conversados. nunca mais fazemos deste país uma coisa outra.

dito isto, convém fazer uma declaração de interesses: acho que a estratégia de gestão do clube é bem pensada e melhor executada, mesmo sem ter acesso aos (sempre importantes) pormenores dos bastidores. a maior parte dos meus amigos são benfiquistas. sempre "simpatizei" com raparigas benfiquistas. desculpem-me umas e outros, mas os sportinguistas são assim - igualmente insuportáveis. e, nestes tempos, cada vez mais mal-humorados ;-).

09 maio 2010


há no cinema de joão pedro rodrigues, para além de uma fome que é própria da arte que não faz cedências - pura, de certa maneira -, um sopro melodramático raro, em terras lusas. douglas sirk espreita a cada esquina. excessivo, barroco, por vezes ensimesmado em torno da eterna questão do género vs. identidade, é um cinema que divide. e é um murro no estômago, daqueles que nos levam a acreditar que é na fealdade banal que encontramos tantas e tantas vezes os gestos e objectos, os actos, mais sublimes. ontem, durante a baixa madrugada, o joão pedro pegou-me pelos colarinhos e mostrou-me estoutra lisboa, a do seu filme 'odete - two drifters'. como diz uma oração lembrada por um padre poeta: lembra-te que o coração ferido é o coração mais inteiro. palmas e flores, rapaz.

depois de umas quantas canções avulsas em estado de graça, veio 'alligator', disco estupendo. depois desse disco estupendo, veio 'boxer', fantástico álbum. depois de 'boxer', chega-nos agora 'high violet', de que é exemplo esta canção: 'terrible love'. e assim se vai fazendo a lenda destes rapazes, the national. ou de como, retrospectivamente, percebemos agora que o concerto deles que vimos, há dois anos, na nossa Aula Magna, não foi por acaso, muito menos um acaso. foi apenas e só os the national a fazerem-se uma das maiores bandas indie dos nossos dias. o concerto foi arrepiantemente bom, arrasador, essas coisas que se costumam dizer. o mais importante: foi inesquecível. e isso, demos as voltas que dermos, é uma das mais perenes provas dos nove. porque resistir é sempre vencer. terrible love? venha, venha.

08 maio 2010


spiritualized e gustav mahler? gustav mahler e spiritualized. because, ladies and gentlemen, we all are floating in a kind of space.

all i want in life's a little bit of love to take the pain away.

e assim os spiritualized entraram para a história da música popular. não é raro encontrar gente grande que se desfaz ao ouvir esta canção. meus amigos, isto chama-se space cosmic pop rock. outros dizem que se chama simplesmente uma coisa linda. eu chamo-lhe

perto do coração, muito perto.

esta noite, gustav mostrou-me o que escreveu, durante a tarde. estivemos uma hora a chorar, os dois, sem trocar uma palavra.

alma mahler

06 maio 2010

05 maio 2010


shakespeare 2.0.

- quem és tu?
- um bom soldado, na tempestade, protegendo as coisas que amo.

04 maio 2010

03 maio 2010


- aqui não há compromissos, só arranjos - não é, senhor stoppard?
- é sim, senhor dapieve.

greta gerwig, a nova musa do movimento indie at the movies norte-americano. nada contra.

01 maio 2010


i had a hole in the middle where the light went through, i told my friends not to worry.

sorrow found me when i was young, sorrow waited, sorrow won.

live on coffee and flowers, try not to wonder what the weather will be, i've figured out what we're missing, tell you miserable things after you're asleep.

through the (..) valley of the dead.

venom radio and venom television, i'm afraid of everyone.

with my kid on my shoulder, i try not to hurt anybody i like, but i don't have the drugs to sort it out.

lay me on the table, put flowers in my mouth, you can say we invented a summer lovin' torture party.

--

disto, meus amigos, há pouco.

a summer lovin' torture party, flowers, coffee. and misery.