25 maio 2010

nos meus primeiros dias de repórter, levava à letra o conselho de kierkgaard, segundo o qual, na primeira metade da vida, o que um homem deve verdadeiramente temer é tudo aquilo que, por uma razão ou por outra, deixa de fazer, tudo o que não ousa realizar, ficando-se numas mui humanas covas. vivia em conformidade com essa - e com muitas outras - regras e isso significava não ter medo de me embrenhar a fundo por caminhos mais sombrios, ruas esconsas, lugares que muitas pessoas não sonham sequer que existem. numa dessas minhas deambulações solitárias, cruzei-me com sofia. sofia, nome seguramente inventado, era uma profissional do que o cidadão comum chama "sado-masoquismo", ainda que, à boa maneira portuguesa, numa versão simpáticamente ligeira. aquilo que para o comum mortal, não praticante de tão sui generis credo, é uma "especialidade erótica", mais ou menos desviante, para sofia era todo um edifício teórico, cuidadosamente eregido, em torno do que chamava "os princípios sagrados da dor". aprendi muito, nesses meus diálogos com ela, normalmente realizados em cafés manhosos, nos bairros mais típicos da cidade. os cafés terão sempre um papel social insubstituível, seja na alta ou na baixa cultura. não admira, pois, que sofia e eu, de forma mais ou menos rápida, tivessemos estabelecido uma espécie de pacto - um sms, dois sms, e lá estávamos, frente a frente, olhos nos olhos, escondidos do mundo, num qualquer pequeno café, nem perto nem longe do bairro onde ela habitava. claro que, a princípio, sofia andava desconfiada de mim e das minhas reais intenções. eu entendia, claro que sim. e, olhando agora retrospectivamente, posso até dizer que eu próprio desconfiava um bocadinho de mim e das minhas reais intenções.. sofia não era um portento de beleza, mas no género balzaquiana, não estava mal. eu era um repórter em serviço, obcecado e obsessivo com o meu trabalho, mas, que diabo, havia ainda em mim uma réstea do rapazote que, no fundo, continuava a ser. ao longo das tardes, e das noites, em que perorávamos sobre aquela, para mim, tão estranha forma de vida, fomos ganhando confiança, como exércitos que não sabem bem para onde cair: aliados ou inimigos? dilemas eternos da coisa humana. foi assim, gradualmente, que sofia me contou muito do que sabia. falávamos sobre a sua vida, dentro e fora da sua especialidade profissional, digamos assim, sobre a importância dos papéis na nossa vida, sobre o risco de caírmos numa terra de ninguém existencial - um limbo em que somos todos e nenhum dos múltiplos papéis que desempenhamos. fiquei também a conhecer o perfil dos seus clientes ("amigos", como ela lhe chamava). insuspeitos, como sempre acontece na realidade, eram médicos, psicólogos, psiquiatras, arquitectos, professores universitários, até um escritor ocasional. prometi-lhe, claro está, que alguns dos segredos partilhados nunca seriam por mim revelados. lembro-me de ela me ter perguntado, enquanto sorvia uma longa, e nada típica, chávena de café bem negro: como pode um repórter prometer uma coisa assim, que não revela segredos? então não é esse o objectivo da profissão? expliquei-lhe a minha visão sobre o que era ser-se repórter, sobre o absoluto esclarecimento ético necessário, sob pena de desabarmos interiormente. que um repórter verdadeiro está nos antípodas dos paparazzi - enquaanto estes últimos expôem a mera superfície, mesmo que escondida, um repórter interroga os verdadeiros subterrâneos da humanidade, o que está por debaixo da pelílcula social que a todos nos envolve. o seu bisturi é de alta precisão e não se compra em nenhuma loja de utensílios para jornalistas. outras vezes, falávamos de nós, sempre num jogo de salão de alto risco. por exemplo, de mim, do rapaz que eu também era, do que gostava de fazer e não fazer, se já havia experimentado alguma das técnicas que a tornavam famosa - e desejada - num círculo restrito. recusei sempre, com amabilidade, invocando o mais humano dos sentimentos, simples medo. sofia respeitava sempre as minhas posições, porque percebia que o meu interesse era genuínamente desinteressado, no sentido transaccional do termo. eu estava ali porque sim, por mero acaso, era gentil o suficiente, interessado pelos conceitos e não apenas pelo lado mais animalesco ou instintivo do assunto. não era comum encontrar rapazes assim, muito menos homens assim. e assim me foi deixando ficar. um dia, contudo, em que tinha já vários cadernos cheios de furiosos apontamentos sobre aquele mundo, sofia disse-me que ia embora, para fora de portugal. senti saudades imediatas, coisa que também é contra as regras da boa reportagem. mas eu não fazia boa reportagem, por isso, acho eu, podia bem dispensar as regras inerentes à boa reportagem. fazer reportagem bastava-me e enchia-me de júbilo - descobrira enfim uma profissão suficientemente amiga da palavra liberdade. e isso era, para um jovem rapazote como eu nesses tempos era, o mais santo graal. sofia ia-se embora, por razões pessoais e por razões relacionadas com o seu métier. deixou de atender o telefone, de responder às minhas sms. a reportagem estava escrita - ambos o sabíamos muito bem. era tempo de seguir viagem. meses depois, com surpresa, recebi uma longa sms dela, talvez o meu último registo passível de demonstração material desses tempos. dizia assim: "para que nunca me esqueças, gostava que viesses ter comigo, ao meu estúdio. não te vou obrigar a fazer nada de especial, já sei que não aceitarias. por isso, propônho-te que me batas à porta, à meia-noite. encontrarás a porta aberta. entra. ao fundo do corredor, à direita, estarei na minha cama, semi-adormecida. gostava que me abraçasses e que me adormecesses. depois, podes sair. mas ficas assim com uma memória da mulher que também sou. e eu do rapaz que também és, para além do repórter que tentas ser." lembro-me do que senti, ao ler as palavras de sofia. mas, como prometi em juramento solene de mim para mim, um repórter não conta tudo. há coisas que ficam connosco. apenas posso adiantar que dormi muito bem, estupidamente bem, nessa noite. e que, ia jurar, a sofia também. nunca mais a vi.