30 junho 2010


um mandamento: nunca esquecer.
ou, como cantariam os joy division, noutro século: 'the eternal'.

ah, como é bom sentir a normalidade da derrota. afinal, 'que faria eu com esta espada'? podemos voltar, em paz, para a nossa vida videirinha e continuar a dizer mal daquela corja de cafagestes. no entanto, devíamos todos estar gratos aos nossos bravos rapazes - afinal foram excelsos, enquanto plenipotenciários representantes do que somos enquanto povo, nação, o que quiserem. um grupo de pessoas simpáticas, truly nice people, com algum talento e muita fé. não chega, mas vai dando para as sardinhadas e para os manjericos. agora, é renovar o stock de amendoins e minis e escolher uma equipa a sério. eu fico-me pela argentina - porque o génio puro é bonito de se ver; porque a raça que vem de dentro é bonita de se sentir; porque combinar raça e génio é para poucos. o futebol é um elemento chave da semiótica contemporânea e eu, apesar de contemporâneo contrafeito, rendo-me às evidências. dieguito, amigo, o gi está contigo - porque és, à tua maneira, uma utopia, um sonho. e é isso que move os deserdados do mundo, não é?

29 junho 2010


errata: onde se lê 'memphis', leia-se.. outra coisa qualquer.

28 junho 2010


sim, andamos a ler gore vidal, em especial este seu segundo livro de memórias (quase 5 décadas de vida vertidas com verve, humor e eloquência.) e também antónio manuel couto viana (o tal poeta, recentemente falecido, que ainda acreditava na vocação universal de Portugal, o que lhe custou rótulos vários - poeta ultramontano, por exemplo, mas há piores..). já que não ensinamos nada a ninguém, ao menos que aprendamos qualquer coisa.

26 junho 2010



atlas sound, aka bradford cox, acompanhado de panda bear, dos animal collective, aka noah lennox, a mostrarem que alguma nova música é assim - um deleite para os sentidos, uma alegria que comove, uma celebração sem excessos que não os que sempre fizeram a diferença e que, como bem sabemos, são, sempre sempre, invisíveis para os olhos. música para um novo século. música para uma nova sociedade, diria o tio john cale. música maravilhosa, apontada ao coração e ao corpo e aos sentidos. magnífica máquina de revelação.

25 junho 2010


somos assim: uma constelação a arder.

24 junho 2010

23 junho 2010



sim, é este o famoso raio verde. ao final do entardecer, olhando o mar, uma especiosa combinação de atributos no olhar com uma raríssima combinação dos elementos físicos permite a uns poucos experimentarem uma ilusão de óptica que, questão de fé, dizem poder mudar a vida de quem é dela testemunha. o raio verde, sim, é este. à disposição de todos vós, amigas e amigos que passam aqui. com os votos sinceros de que produza um qualquer resultado que vos faça sorrir. isso é que era. isso é que era.

..e há o rosto, sorridente e cinematográfico, daquela miúda, atrás do balcão, dizendo-te 'sou do nepal', quando lhe perguntas se por acaso não vem das filipinas. do nepal e de katmandu, sua mítica capital, que conheces de outros tempos. doze anos atrás, andavas por lá. repetes nomes de cidades que visitaste e o rosto, agora aceso e brilhante, interessa-se por aquele português que, improvavelmente, conhece a sua casa, esse vale em torno da capital, esse rio sagrado, ao longo do qual o cheiro das piras funerárias faz das suas, o templo dos macacos, os socalcos com arrozais, as estradas que serpenteiam, as cidades medievais como que teletransportadas para este tempo. o rosto, menos tímido agora, sorri-te e pergunta-te o nome, que, segundos depois, tentará soletrar, o melhor que consegue. pensas, numa fracção de segundo, no woody allen, no john lennon, nesses orientais amores que lhes saíram ao caminho. não que penses nisso, que não pensas - apenas em abstracto, digamos assim. mas, quem diria, encontrar alguém vindo de tão longe, no espaço e no tempo. doze anos passaram. doze anos e tanta coisa vivida. se john cassavetes tivesse sido português e nosso contemporâneo, talvez a tua vida fosse agora uma espécie de argumento. a tua vida e o teu rosto, nessa eterna e recorrente noite de estreia, habitada pelas sempiternas sombras que são, talvez, o que de mais humano trazes aos ombros. um café, uma miúda nepalesa, uma gabardine imaginária cossada, a tarde que cai, a vida aos repelões. nossa senhora do micro-espanto, avé.

21 junho 2010


'eu sou o amor' é um filme de detalhes. não é uma obra-prima, mas também não é 'mais um filme'. é deliciosamante anacrónico, recuperando a lentidão com que velhos mestres italianos captavam 'o sentimento' (visconti) e uma certa angústia existencial (antonioni), muito moderna e upper class. claro que douglas sirk e os velhos professores do melodrama clássico passam também por aqui. o filme perde um bocadinho na história e numa espécie de contorcionismo moralista. mas ganha em muitos outros campos: desde logo, no sofisticado 'design de produção' (deslumbrante é a palavra); na elegância vera daquela alta burguesia milanesa; no sempre prodigioso acting da sempre esbelta tilda swinton. e, dizemos nós - que também somos um homem -, como não ajoelhar perante a luminosa beleza nada óbvia desta mulher que nasceu para vestir a griffe jil sander? piedade, tilda, piedade.

19 junho 2010


seja este o sentido flutuante da poesia

"há sempre um lugar onde as coisas começam. é uma hipótese improvável, esta. uma convenção apenas dizendo-nos que o tempo e o espaço se enlaçam na experiência e que a linguagem corre, se precipita para algum lado, um lugar onde tudo adquire um sentido último e primeiro, outra vez. trata-se de uma convenção que me é fundamentalmente alheia. gostava de acreditar que os poemas não surgem dessa seta claramente transposta, e que, impregnados - densos - de sentido, acabam afinal por não ter sentido. porém, não gosto de dizer que estão do lado do som. prefiro a ideia de eco. o som terá acontecido, e o mundo - na sua materialidade de que a linguagem faz parte - devolve-me o som. o som da minha voz? da corrente de consciência que em mim circula como um vento que espalha aquilo que sou? os poemas não são vectoriais, são escalares. uma parte considerável do que escrevi prende-se com uma concepção da experiência que a faz presa - sujeitando-se à devoração - de uma atmosfera. estou a falar da inescapável condição que se prende com o dado de eu não poder fazer outra coisa senão interrogar, não o início, como disse, mas um princípio de ordem. não impressões de ordem, mas ideias de ordem, para usar uma reflexão que gravita à volta de Hume e gravita à volta de Stevens. assim, a atmosfera, que é um escalar - como o "medo" ou Angst que quis convocar - armadilha-me a vida, e eu respondo, devolvo o seu eco, transfiguro a poderosa - e invencível - cilada. uma forma de poder sobre a vida. em grande medida, tudo isto é revisitação. as palavras não são a linguagem, e o que ofereço a um leitor é simplesmente o vestígio, a biografia. no seu melhor, o poder sobre a vida - essa reacção à devoração - é uma forma do encantamento, uma tecnologia que encanta. talvez o início possa ser assimilado a uma outra convenção: a de que me libertei - ou estou em processo - desse sono dogmático que tende a ver em princípios de ordem lugares de origem contra os quais a indigência do real quotidiano merece reprovação ou fuga. o que me interessa está sempre a jusante, no delta do rio, não na nascente. as palavras que se reúnem sob os sortilégios desse jogo de linguagem que é a poesia servem uma ideia de ordem, disse. são a régua e o esquadro da experiência que não pode ser metrificada, que não é mensurável. talvez seja este o sentido flutuante da poesia."


luis quintais, numa espécie de posfácio ao admirável - e brutal - livrinho recém-editado: 'riscava a palavra dor no quadro negro' (edições cotovia, 2010).
..estás agora com um livro não identificado na mão, é de noite, o sótão da casa é o mesmo da casa dos teus avós em lafões, há muitos anos. estás sózinho e acompanhado, não há critério que te ajude a perceber. lês qualquer coisa. sabes que algures a figura está perto, como se estivesse ali e não estivesse ali. adormeces, as coisas mudam de lugar, acordas. vês que a figura esteve ali - sentes ainda a sua presença de uma forma que não é humanamente articulável, a não ser que inventasses uma nova linguagem, mas não tens esse dom, és ainda e só e para sempre humano. procuras o livro, onde está o teu precioso livro, procuras. percebes que a figura to terá tirado, durante o sono. que o leu, dobrou nos cantos, usou e abusou da semiótica que todo o livro traz consigo, aos ombros, a tira-colo, de todas as formas que possas imaginar. algures, com a sua letra minuciosa, há riscos e rabiscos, textos crípticos, numa escrita tão pequena que os teus olhos não conseguem ler, acompanhar, ficas-te pelos princípios de cada frase. repulsa e amor, deve ser uma coisa assim. por um objecto que assume todas as propriedades concentradas de uma figura humana. de súbito, estancas. e percebes, em determinada página, uma frase legível - algo que é para ti, só pode ser para ti. a frase diz-te:

"quero um amor fresco, todos os dias"

e entendes, finalmente, porquê - o porquê de certas coisas.

dias antes, em registo acordado, leras num mail que os nativos do teu signo dão muita importância (ou será que o que leste é que aquilo de que vais falar a seguir tem mesmo muita importância?) aos sonhos. aqui está, a prova provada de que assim é.

o outro tinha um sonho. eu tive um sonho. mas, sabes uma coisa, figura-livro-esfinge? trocava o sonho por uma vida.

16 junho 2010


és grande, bernardo. és grande.
que diria aquele que fui àquele que hoje sou?
- not enough, baby, not enough. try harder..

15 junho 2010

uma semana de hospitais pode ter, como já disse, um nada dispiciendo carácter formativo. desde generalidades avulsas (há excelentes profissionais e maus profissionais, como em todo o lado; há um certo registo de eficiência e aprumo que vai fazendo o seu caminho; ainda há muito para fazer, em termos de "customer service" por parte de algum pessoal médico, de enfermagem e auxiliar; etc.) até coisas mais íntimas e reflexivas (por exemplo, vem-nos à memória o ensaio filosófico(?) de susan sontag, de seu nome "olhando a dor dos outros / regarding the pain of others", na qual ela defende o direito inviolável à intimidade, o dever do pudor no olhar, e que só quem tem o poder de curar ou de atenuar a dor deverá ter acesso à observação - não é bem a palavra.. - do sofrimento alheio).

tudo coisas fortes, está bem de ver. tudo coisas necessárias, dizemos também.
Um Possível Questionário de Proust


Qual seu defeito mais deplorável?

A exigência. A impaciência. A intrasigência. Paciência.

Qual defeito mais deplora nos outros?

A intolerância. A brutalidade. A boçalidade. A falta de compaixão. A estupidez.

Qual seu estado mental mais comum?

A descrença desrazoável. A utopia feroz. A apatia disfarçada de energia (ou ao contrário).

Como gostaria de morrer?

Feliz por ter vivido. E deixando muitos outros, apesar de tristes, felizes por essa mesma razão. Agora a sério: depois de muita conversa com Deus e de ele me convencer absolutamente.

Se depois de morto tivessse que voltar à Terra, gostaria de voltar convertido em que coisa ou pessoa?

Custa-me responder. Talvez num livro que salvasse vidas, pessoas de si próprias. Livro é coisa?

Qual a sua maior extravagância?

Há quase 15 anos, ter deixado de fazer contas. Ser razoavelmente livre da ambição e preocupações mais materiais.

Em que ocasiões você mente?

Quando tento cativar os outros. Basicamente, o tempo todo, portanto.

Que pessoa viva te inspira mais desprezo?

Esqueci.

Que pessoa viva admira?

Minha avó materna. Todo o homem e mulher em que pressinto Humanidade.

Qual sua ideia de felicidade perfeita?

Impossível dizer. Mas mete mortos e vivos. Alguns homens e, palpita-me, algumas mulheres. Críptico. Então, vamos lá, outra vez. é de noite, alta madrugada, ela diz-me qualquer coisa. E eu digo, como no filme de Robert Bresson: "que estranho caminho tive que percorrer para chegar até ti.". Lá fora, daqui a um bocadinho, estão todas as pessoas importantes. Cheira a café, pão fresco, coisas simples. Acho que me entende.

Qual seu maior medo?

Descobrir que o niilismo era, afinal, justificado. Perder a minha humanidade. Perder os meus entes queridos - como toda a gente. A ordem não é bem esta.

Qual seu maior remorso?

Não ter sido capaz.

Qual a virtude mais valorizada socialmente?

O sucesso, em sentido amplo. Dá-me náuseas.

O que te desagrada mais em sua aparência?

Tudo o que me impede de ter aquela garota.

Quais são seus nomes favoritos?

Prefiro não responder. Toda a gente sabe. De homem: Homem.

Que talento desejaria ter?

Saber gerir as minhas emoções. Parar a dor de todo o mundo, num golpe de mágica. Saber escrever. Ser capaz de criar canções ou realizar filmes. Esquecia-me do mais tolo de todos: mudar o mundo.

O que te desagrada mais?

O egoísmo em que vivemos todos. A desatenção permanente de tantos. A falta de lucidez de muitos. A desonestidade de alguns. A violência psicológica. Vou repetir uma, lá de trás: a boçalidade.

Quando e onde você foi mais feliz?

Aos 15 anos de idade, talvez. Durante uma ou duas mãos-cheias de noites ("la dolce vita"). Sempre que alguém me diz: "gosto de ti". Amanhã.

Se pudesse, o que mudaria em sua família?

Uma única coisa: gostaria que vivessem melhor a vida, mesmo sabendo que me desejariam provavelmente o mesmo.

Qual é seu maior objetivo?

Fazer tudo o que posso, em prol de mim, dos outros, do mundo, do meu tempo. Que não esquecessem o meu nome. Objectivos impossíveis, está visto.

Qual sua posse mais valiosa?

O meu coração, apesar de tudo. E apesar do dono.

Qual a manifestação mais clara da miséria?

Os livros de História. E este sentimento amargo de ser possível mudar tanta coisa e nada acontecer. Falo de nós todos, em termos quase civilizacionais.

Onde desejaria viver?

Onde fosse feliz. Como isso é impossível, onde passasse mais tempo alegre. Como isso é difícil, onde puder ser livre para ser um bocadinho alegre e um nadinha feliz.

Qual seu passatempo favorito?

Ler e escrever. Como se vê, faço melhor o primeiro do que o segundo! E conversar, sempre.

Qual a qualidade que você mais aprecia em uma mulher?

Carácter e força? Bondade e ternura? Nunca me decidi. Combinar, por favor, com inteligência.

Qual a qualidade que você aprecia mais em um homem?

Carácter.

Qual seu herói de ficção favorito?

Ainda estou para descobrir. Um homem feito do melhor de todos os homens. Só pode ser ficção, não é? Alguns personagens de James Stewart, Henry Fonda, no cinema clássico. Na literatura, impossível responder. Curioso - enquanto penso, Corto Maltese atravessa-se à minha frente. Não será por acaso.

Quais são seus heróis da vida real?

Todos os que ousaram Ser. E que, para isso, arriscaram não estar mais. Para bom entendedor..

14 junho 2010


philip roth e 'o complexo de portnoy' (portnoy's complaint).
ou de como o homem é sempre o lobo do homem (seja ele um outro ou ele próprio).
canta o grande joão peste 'a nossa feroz vontade de amor', no novo disco dos pop dell'arte. mas isso já nós sabíamos, desde sempre,  não é, joão?

12 junho 2010


voar
e ser
estupidamente
mais que feliz.

11 junho 2010


cantiga de amigo

disse-te, lembras-te?, um moço:
o teu estilo levemente arcaízante,
de um classicismo sem calendário,

é uma escultura em movimento
que agarra o tempo e faz dele um lenço
para pôres, linda, ao pescoço.

(uns aprendem tabuada financeira.
tu aprendes por outro abecedário.)

10 junho 2010


laura, jenny, madeleine.

09 junho 2010


nada como uma voltinha por um grande hospital urbano, especialmente se com o coração apertado, para nos passar uma certa "malaise". não é um exercício agradável. mas não deixa de ter um carácter formativo nada negligenciável.

e de repente, de onde não se espera, sai-nos ao caminho uma "clarinda", 38 anos, filha de 16, bata azul apenas digna, fazendo verdadeiros milagres com a sua psicologia de quem já viu muito, de quem, adivinhamos, já terá visto quase tudo. bem-haja, minha senhora. deve saber tanto de internet e blogs como eu da vida bem vivida - nisso somos próximos. e noutras coisas que não cabem aqui.

perto do lugar oficinal, o manuel de freitas - himself - atravessa a estrada e atravessa-se à frente do nosso circunstancial táxi. quem diria que aquele rapaz, de melena negra e olhar ensimesmado, é um corajoso editor, um lúcido crítico e um dos maiores poetas contemporâneos, em língua Portuguesa? aquele exacto rapaz, de calças ruças e blusão desportivo. quantos manéis terei visto hoje, ao longo da minha jornada?

entre a minha novela televisiva e hospitalar das terças - guilty pleasure, pois claro - e esta minha quarta-feira vai todo um mundo de proximidade e outro tanto de distância. assim sendo, contas feitas, ficamos exactamente no mesmo sítio. mas diferentes.

nunca regressamos inteiros ou iguais de lado nenhum.

[nota mental: rever tudo, outra vez.]

08 junho 2010

retomando as minhas memórias enquanto jovem repórter, é-me impossível esquecer a velha história que me aconteceu numa primavera já antiga, quando vista daqui. faço aqui um pequeno excurso para dizer que, contra a cartilha pela qual me ensinaram o métier, eu acredito piamente de que o tempo é o segundo maior mistério da criação (quem quiser, pode grafar com C., que não me ofende o estilo). quero com isto dizer que é para mim evidente que os acontecimentos que atribuímos ao nosso próprio passado - o ontem, mais prosaicamente - encontram-se todinhos no presente que vivemos. poderão argumentar: claro que sim, naquilo que somos trazemos todas as experiências que foram, tudo o que nós próprios fomos. não é isso que quero dizer. o que pretendo afirmar é bastante diferente: tudo o que aconteceu está vivo, algures numa dimensão paralela, não inteligível pelas nossas apenas humanas capacidades. neste sentido, e acreditando neste espécie de princípio, somos levados a concluir que pode ser admissível achar que cada um de nós de desmultiplica em milhares de outros eus. e que todos eles são o mesmo eu que agora vos escreve e ao mesmo tempo consubstanciações diferentes de uma mesma essência. somos um work in progress, mas não um photomaton tirado no momento. somos um filme, que vem de longe e que vai para longe, pelo menos assim esperamos, constituído por uma sequência de incontáveis stills. cada um deles está vivo e em cada um deles estamos nós próprios vivos, de uma maneira diferente. fechamos aqui este longo - e, dizem-me aqui, algo lunático.. - excurso, para voltarmos à história, velha se vista daqui, através das lentes canónicas (mas viva e actual, se olhada através de uma perspectiva holística e atemporal). falemos então desse passado (ou destoutro presente).
a rapariga chegou até mim, através de um amigo de um amigo de um amigo. dizem os almanaques jornalísticos que as redes pessoias não são uma ferramenta fiável, para quem quer encontrar o santo graal: uma boa história, uma história decente, uma história com alma. chegados aqui, talvez tenham já percebido de que nada do que as regras dizem foi necessariamente cumprido por mim, ao longo da minha carreira de repórter. dizia, pois, que a rapariga chegou até mim e que chegou com vontade de contar uma história.
a primeira vez que a vi, confesso que me deixou desconfortável. era demasiado elegante, altiva, com um porte que parecia saído de outro tempo - uma coisa assim já não se encontra, pensaria um tipo mais misógeno, todos os dias. e assim era, de facto.
- você é que é o tal repórter? - atirou, secamente, sem sequer olhar para mim.
- depende de quem pergunta - esta tirada aprendi-a em bom tempo, pensei para comigo.
- mas é ou não é? - disparou.
- depende. - repliquei, tentando estar à altura.
inspirou longamente, atirou o fumo de cigarro na direcção do prédio em frente ao qual se encontrava, a meio do passeio e mudou de registo. que magnífica actriz daria esta jovem, ocorreu-me.
- deixe lá, tem razão. chamo-me lauren. que deselegância a minha. claro que você é o tal repórter. - enquanto me dizia isto, deixou cair a capa de mulher fatal, ao mesmo tempo que dava uso ao seu modo mais frágil. gostei ainda mais dela, assim.
- então, conte lá, que razão a fez querer conhecer-me? - foi a forma mais airosa que encontrei para retomar aquela espécie de diálogo.
- nem queira saber, meu caro. nem queira saber. ando há que tempos às voltas com uma dúvida existencial. e lembrei-me de que um amigo de um amigo meu - corou ligeiramente, pareceu-me - era primo de um jornalista. seu primo. e é assim que procurei o seu contacto.
- muito bem. nada de extraordinário. acontece. vamos ao assunto? - a masculina impaciência a aflorar, a fazer das suas, ainda que de forma, felizmente para mim, subtil e não passível de prova objectiva.
- é simples e complexo. e tudo ao mesmo tempo, Deus meu. é simples porque tenho que lhe dizer o seguinte: ando a cruzar-me comigo própria. o que é que isto tem de simples? espere pela parte complexa.. (e quase desistiu de si, ao completar esta frase, abandonando as palavras à sua sorte).
- de facto, não é vulgar. ou seja, e desculpe a franqueza, começa a ser interessante. para mim, compreenda, quero dizer..
- não faz mal. é normal. afinal, não deve ser todos os dias que alguém lhe traz uma história destas, assim, de bandeja, prontinha a ser servida.
- depende.
- depende de quê? ou do quê?
- quem é que lhe disse que me interessam histórias dessas? ou aos meus leitores? - e aqui mentia com quantos dentes tinha. dentro de mim, já me tinha decidido - aquela história tinha de ser minha.minha.
- pois. é um drama. em todo o lado, vejo-me a mim própria. mais jovem, muito mais jovem, em adolescente, em criança. penso que estou a ficar maluca.
- e não está..? - arrisquei.
- meu caro amigo, eu sou psiquiatra, entende? eu sei que não estou maluca! o que estou, como estou, o que tenho, isso não sei.
- creio não a surpreender se lhe disser que não sou médico, padre, psicólogo, espírita.. que diabo posso eu fazer por si?
- muito, meu caro, muita coisa. por exemplo, procurar nos arquivos por casos semelhantes aos meus. o seu jornal ou revista, ou lá o que é, não tem imensos arquivos? e, como jornalista, não tem acesso aos principais arquivos e registos públicos? ora aqui está o que pode fazer: investigar, ajudar-me a comprender.
e, acompanhando a cadência desta última frase, partiu, passeio fora, dizendo um elegante adeus com  a sua delicada mão.
fiquei ali, especado, de chapéu na mão, a pensar. mas que raio é isto, pá? esta tipa estará a gozar contigo? isto é uma partida daquele amigo do teu amigo que ela usou para chegar até ti? mas que raio de coisa é esta?
nunca mais apareceu, depois desse dia. o tal amigo do meu amigo negou, quase furiosamente, que alguma vez tivesse existido tal mulher. o meu amigo, via-se no seu rosto, parecia preocupado comigo, com a minha sanidade. entendia-se.
até que um dia, voltei a vê-la. chamava-se lauren, de facto. sorria-me, a partir de um carrossel antigo, na feira popular da cidade. estava com uma amiga, de costas para mim, que a tratava pelo nome, lauren. acenei-lhe a medo, mas ignorou-me. perturbado, fui tomar um café forte e fumar uma cigarrilha que usava, de tempos a tempos, como sos de recurso. quando voltei, havia desaparecido, haviam desaparecido as duas. dei várias voltas, esbaforido, pelo recinto da feira, mas ambas haviam simplesmente desaparecido. como se nunca tivessem existido.
nessa noite, cheguei a casa assustado. pousei o chapéu e atirei o casaco para o sofá, enquanto desapertava o primeiro botão da camisa. abri a janela, manobrando com habilidade a guilhotina. espreitei a rua nocturna, a luz apenas sugerida, dois ou três passantes solitários. de repente, senti uma presença, ali, mesmo ao meu lado. virei-me, de um salto. em frente, numa das paredes, estava um espelho. não, não era um espelho. era o meu rosto no espelho. não, não era o meu rosto. era lauren quem me sorria, a partir do espelho.
- tom? tom? tom! acorda, tom!
fui acordado pelo meu chefe, em plena sala da minha própria casa. era já manhã plena.
disse-lhe, meia hora mais tarde, já recomposto:
- chefe, tenho uma coisa estranha para lhe contar.
disse-me, de volta:
- não me digas, andas a ver mulheres em todo o lado. olha, tom, também eu! mas eu tenho 55 anos, acho que é capaz de ser natural.. - e riu-se, com gosto. - Vamos mas é tratar dessa tua saúde e é para já.
claro que não tive coragem de continuar a conversa.
felizmente, nunca mais vi lauren. na rua, na feira popular ou em casa. mas ainda hoje, que já passaram tantos anos, estremeço ao ler o seu nome, em qualquer livro ou nas legendas de um filme. sei que, de uma forma qualquer que não consigo explicar, lauren é a mesma daquele tempo. ainda mais bonita, atrevo-me, e deixem-me dizer-vos um segredo: acho que por vezes caminha de braço dado comigo. o que eu gosto deste segredo só nosso. e do facto de ninguém perceber nada desta nossa história.
cada um é livre à sua maneira.

inverness is my address, oh yes,
until i got my new summer dress.

07 junho 2010



'do not go gentle into that good night,
(..)
rage, rage against the dying of the light.'

dylan thomas
dos livros sem pó (ou as minhas mais recentes leituras)


(..)
grafei “inventadas”? pois bem:
e a mentira (a literatura)
é ainda a improvável derrota
de que não nos salvaremos
nunca. tão igual à vida, portanto.

manuel de freitas


'escarpas', gastão cruz [o regresso, em boa forma, de um poeta canónico e formalista.]
3,5 em 5

'mulher ao mar', margarida vale de gato
[auspiciosa estreia nas lides poéticas em nome próprio de uma ilustre tradutora.]
4 em 5

'a última porta', manuel de freitas
[antologia do superlativo poeta (e crítico e editor), arauto-mor da geração dos 'poetas sem qualidades'.]
5 em 5

'londres', nuno dempster
[longo poema corrido de um ilustre (quase) desconhecido.]
3 em 5

'macau', paulo henriques britto
[recente prémio PT de literatura; um livrinho magnífico e, a espaços, cintilante.]
4,5 em 5

'santo súbito', miguel-manso
[terceiro livro de um novo poeta com voz própria e coisas para dizer. ligeiramente menos conseguido que as suas duas obras anteriores ('contra a manhã burra' e 'quando escreve descalça-se'), continua contudo a mostrar-nos um território delicado e pessoal, eregido com bom gosto e uma recusa do confessionalismo excessivo - pecha de muita 'jovem poesia'.]
4 em 5

'disse-me um adivinho', tiziano terzani
[curiosísssimo relato do lento e atento périplo de um jornalista pelos orientes do nosso contentamento.]
4 em 5

'franny e zooey', j.d.salinger
[duas novelas ou contos, sendo 'franny' um suave 'tour de génio', como o autor nos habituou.]
5 em 5, por 'franny' / 4 em 5, por 'zooey'

'carpinteiros, levantai alto o pau de fileira (seguido de seymour, uma introdução), j.d.salinger
[mais duas novelas ou contos, sendo 'carpinteiros(..)' um conto que merece o epíteto p-e-r-f-e-i-t-o..]
5 em 5, por 'carpinteiros(..)', 4 em 5, por 'seymour(..)'

'pergunta ao pó', john fante
[um dos grandes inspiradores do nosso tio charlie - ver entrada seguinte. um livro lindo, lindo. lindo, sobre as desventuras de um jovem aspirante a escritor. vitalista, livre e libertador. magnífico.]
5 em 5

'correios', charles bukowski
[uma das obras em prosa do poeta-quase-maldito, para muitos desconhecida. bem-humorada, sulfúrica, cortante, cheia de rugas e de vícios. humana, portanto.]
4 em 5

'os objectos chamam-nos', juan josé millás
[quase uma centena de micro-contos, algures entre o tom confessional-urbano e uma espécie de suave realismo mágico, reiventado à moda de madrid.]
4 em 5

'inverness', ana teresa pereira
[mais um 'opus' no trilho encetado pela autora, há quase duas décadas. como sempre, deliciosamente anacrónico, encantatório, no habitual registo cosmogónico, ritualista e, porque não dizê-lo, quase com sabor a mistério e suspense.. metafísico.]
4 em 5

'des histoires vraies', sophia calle
[livrinho saído da oficina polivalente desta conhecida artista multimedia, mostra-nos, em vinhetas curtas, pequenos episódios quotidianos onde o papel do acaso, de um certo 'fantástico minimalista', da semiótica existencial ocupam lugar de relevo. estranho, perturbador a espaços, belíssimo.. como, aliás, quase todas as intervenções artísticas desta, ousamos dizer, 'artista total'.]
4 em 5

01 junho 2010



"sem fé, ouso pensar a vida como uma errância absurda a caminho da morte, certa. não me coube em herança qualquer deus, nem ponto fixo sobre a terra de onde algum pudesse ver-me. tão pouco me legaram o disfarçado furor do céptico, a astúcia do racionalista ou a ardente candura do ateu. não ouso por isso acusar os que só acreditam naquilo que duvido, nem os que fazem o culto da própria dúvida, como se esta não estivesse, também esta, rodeada, de trevas. seria eu, também, o acusado: o ser humano tem uma necessidade impossível de satisfazer.

como posso assim viver a felicidade?
procuro o que me pode consolar como o caçador persegue a caça, atirando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta. quase sempre atinjo o vazio, mas, de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo, sopro dum vento que mal sobe pela árvore.
debruço-me.
tenho-a! mas tenho o quê, entre os dedos?
se sou solitário – uma mulher amada, um desditoso companheiro de viagem. se sou um poeta ou prisioneiro – um arco de palavras que com assombro reteso, uma súbita suspeita de liberdade. se sou um ameaçado pela morte ou pelo mar – um animal vivo e quente, coração que pulsa sarcástico; um recife de granito bem sólido.
sendo tudo isso, é sempre escasso o que tenho!
as formas de consolo: se procuro umas, outras há que me perseguem sem que eu as convoque. sussurram odiosas. enchem-me o quarto de murmúrios.
o prazer: 'entrega-te sem restrições'!
o talento: 'usa-me tão mal como a mim mesmo'!
a minha sede de gozo: 'só os gulosos sabem viver'!
a solidão: 'despreza os homens'!
este desejo de morte: 'fere, mata'!"


stig dagermann, in  “a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer”