08 junho 2010

retomando as minhas memórias enquanto jovem repórter, é-me impossível esquecer a velha história que me aconteceu numa primavera já antiga, quando vista daqui. faço aqui um pequeno excurso para dizer que, contra a cartilha pela qual me ensinaram o métier, eu acredito piamente de que o tempo é o segundo maior mistério da criação (quem quiser, pode grafar com C., que não me ofende o estilo). quero com isto dizer que é para mim evidente que os acontecimentos que atribuímos ao nosso próprio passado - o ontem, mais prosaicamente - encontram-se todinhos no presente que vivemos. poderão argumentar: claro que sim, naquilo que somos trazemos todas as experiências que foram, tudo o que nós próprios fomos. não é isso que quero dizer. o que pretendo afirmar é bastante diferente: tudo o que aconteceu está vivo, algures numa dimensão paralela, não inteligível pelas nossas apenas humanas capacidades. neste sentido, e acreditando neste espécie de princípio, somos levados a concluir que pode ser admissível achar que cada um de nós de desmultiplica em milhares de outros eus. e que todos eles são o mesmo eu que agora vos escreve e ao mesmo tempo consubstanciações diferentes de uma mesma essência. somos um work in progress, mas não um photomaton tirado no momento. somos um filme, que vem de longe e que vai para longe, pelo menos assim esperamos, constituído por uma sequência de incontáveis stills. cada um deles está vivo e em cada um deles estamos nós próprios vivos, de uma maneira diferente. fechamos aqui este longo - e, dizem-me aqui, algo lunático.. - excurso, para voltarmos à história, velha se vista daqui, através das lentes canónicas (mas viva e actual, se olhada através de uma perspectiva holística e atemporal). falemos então desse passado (ou destoutro presente).
a rapariga chegou até mim, através de um amigo de um amigo de um amigo. dizem os almanaques jornalísticos que as redes pessoias não são uma ferramenta fiável, para quem quer encontrar o santo graal: uma boa história, uma história decente, uma história com alma. chegados aqui, talvez tenham já percebido de que nada do que as regras dizem foi necessariamente cumprido por mim, ao longo da minha carreira de repórter. dizia, pois, que a rapariga chegou até mim e que chegou com vontade de contar uma história.
a primeira vez que a vi, confesso que me deixou desconfortável. era demasiado elegante, altiva, com um porte que parecia saído de outro tempo - uma coisa assim já não se encontra, pensaria um tipo mais misógeno, todos os dias. e assim era, de facto.
- você é que é o tal repórter? - atirou, secamente, sem sequer olhar para mim.
- depende de quem pergunta - esta tirada aprendi-a em bom tempo, pensei para comigo.
- mas é ou não é? - disparou.
- depende. - repliquei, tentando estar à altura.
inspirou longamente, atirou o fumo de cigarro na direcção do prédio em frente ao qual se encontrava, a meio do passeio e mudou de registo. que magnífica actriz daria esta jovem, ocorreu-me.
- deixe lá, tem razão. chamo-me lauren. que deselegância a minha. claro que você é o tal repórter. - enquanto me dizia isto, deixou cair a capa de mulher fatal, ao mesmo tempo que dava uso ao seu modo mais frágil. gostei ainda mais dela, assim.
- então, conte lá, que razão a fez querer conhecer-me? - foi a forma mais airosa que encontrei para retomar aquela espécie de diálogo.
- nem queira saber, meu caro. nem queira saber. ando há que tempos às voltas com uma dúvida existencial. e lembrei-me de que um amigo de um amigo meu - corou ligeiramente, pareceu-me - era primo de um jornalista. seu primo. e é assim que procurei o seu contacto.
- muito bem. nada de extraordinário. acontece. vamos ao assunto? - a masculina impaciência a aflorar, a fazer das suas, ainda que de forma, felizmente para mim, subtil e não passível de prova objectiva.
- é simples e complexo. e tudo ao mesmo tempo, Deus meu. é simples porque tenho que lhe dizer o seguinte: ando a cruzar-me comigo própria. o que é que isto tem de simples? espere pela parte complexa.. (e quase desistiu de si, ao completar esta frase, abandonando as palavras à sua sorte).
- de facto, não é vulgar. ou seja, e desculpe a franqueza, começa a ser interessante. para mim, compreenda, quero dizer..
- não faz mal. é normal. afinal, não deve ser todos os dias que alguém lhe traz uma história destas, assim, de bandeja, prontinha a ser servida.
- depende.
- depende de quê? ou do quê?
- quem é que lhe disse que me interessam histórias dessas? ou aos meus leitores? - e aqui mentia com quantos dentes tinha. dentro de mim, já me tinha decidido - aquela história tinha de ser minha.minha.
- pois. é um drama. em todo o lado, vejo-me a mim própria. mais jovem, muito mais jovem, em adolescente, em criança. penso que estou a ficar maluca.
- e não está..? - arrisquei.
- meu caro amigo, eu sou psiquiatra, entende? eu sei que não estou maluca! o que estou, como estou, o que tenho, isso não sei.
- creio não a surpreender se lhe disser que não sou médico, padre, psicólogo, espírita.. que diabo posso eu fazer por si?
- muito, meu caro, muita coisa. por exemplo, procurar nos arquivos por casos semelhantes aos meus. o seu jornal ou revista, ou lá o que é, não tem imensos arquivos? e, como jornalista, não tem acesso aos principais arquivos e registos públicos? ora aqui está o que pode fazer: investigar, ajudar-me a comprender.
e, acompanhando a cadência desta última frase, partiu, passeio fora, dizendo um elegante adeus com  a sua delicada mão.
fiquei ali, especado, de chapéu na mão, a pensar. mas que raio é isto, pá? esta tipa estará a gozar contigo? isto é uma partida daquele amigo do teu amigo que ela usou para chegar até ti? mas que raio de coisa é esta?
nunca mais apareceu, depois desse dia. o tal amigo do meu amigo negou, quase furiosamente, que alguma vez tivesse existido tal mulher. o meu amigo, via-se no seu rosto, parecia preocupado comigo, com a minha sanidade. entendia-se.
até que um dia, voltei a vê-la. chamava-se lauren, de facto. sorria-me, a partir de um carrossel antigo, na feira popular da cidade. estava com uma amiga, de costas para mim, que a tratava pelo nome, lauren. acenei-lhe a medo, mas ignorou-me. perturbado, fui tomar um café forte e fumar uma cigarrilha que usava, de tempos a tempos, como sos de recurso. quando voltei, havia desaparecido, haviam desaparecido as duas. dei várias voltas, esbaforido, pelo recinto da feira, mas ambas haviam simplesmente desaparecido. como se nunca tivessem existido.
nessa noite, cheguei a casa assustado. pousei o chapéu e atirei o casaco para o sofá, enquanto desapertava o primeiro botão da camisa. abri a janela, manobrando com habilidade a guilhotina. espreitei a rua nocturna, a luz apenas sugerida, dois ou três passantes solitários. de repente, senti uma presença, ali, mesmo ao meu lado. virei-me, de um salto. em frente, numa das paredes, estava um espelho. não, não era um espelho. era o meu rosto no espelho. não, não era o meu rosto. era lauren quem me sorria, a partir do espelho.
- tom? tom? tom! acorda, tom!
fui acordado pelo meu chefe, em plena sala da minha própria casa. era já manhã plena.
disse-lhe, meia hora mais tarde, já recomposto:
- chefe, tenho uma coisa estranha para lhe contar.
disse-me, de volta:
- não me digas, andas a ver mulheres em todo o lado. olha, tom, também eu! mas eu tenho 55 anos, acho que é capaz de ser natural.. - e riu-se, com gosto. - Vamos mas é tratar dessa tua saúde e é para já.
claro que não tive coragem de continuar a conversa.
felizmente, nunca mais vi lauren. na rua, na feira popular ou em casa. mas ainda hoje, que já passaram tantos anos, estremeço ao ler o seu nome, em qualquer livro ou nas legendas de um filme. sei que, de uma forma qualquer que não consigo explicar, lauren é a mesma daquele tempo. ainda mais bonita, atrevo-me, e deixem-me dizer-vos um segredo: acho que por vezes caminha de braço dado comigo. o que eu gosto deste segredo só nosso. e do facto de ninguém perceber nada desta nossa história.
cada um é livre à sua maneira.