25 outubro 2010

love is a foreign language

hoje.
4 anos. quase 2000 posts. tantas estações.

quantas vidas.

..

naquele dia soubemos
que falávamos de coisas distintas
falando do mesmo,
que entre o dito e o entendido existe
um vazio sobre o qual se constrói
o auto-engano indeliberado em que vivemos.

a forma na qual nos apercebemos
já não tem importância nesta altura.
o que realmente desassossega,
o urgente, é saber que não sabemos
quantas vezes não teremos compreendido.


..

um homem vivo levanta a foto
de um homem que já morreu
e, ao contemplá-la, a sua mão tirita
por pensar que, ao morrer, será outra

a mão que, bem viva, tiritará
ao erguer e contemplar a sua foto.
o fractal repetir-se-à até à náusea
a não ser que o olhar do homem

olhe ao contrário e se aferre à imagem
tal como um poeta faz à palavra;
acreditando que ao morrer será outro

o que, vivo, se aferrará à sua
tal como se fosse um salva-vidas
a flutuar no mar dos afogados.

..

o teu corpo ocupa um espaço no tempo.
o teu corpo dura um tempo no espaço.

como um mapa anterior ao território
ou uma palavra que não se pode escrever
somos o meio pelo qual não se justificam
dois fins que são recíprocos em nós.

viver é segurar-se a ambos os extremos,
demorar dois sentidos que ao cruzar-se
restituem o presente até à ausência
desde a qual o teu corpo se desfaz.

..

este poema só é um poema
porque tu me disseste que me amas.
se este poema não fosse um poema
e tu me tivesses dito que me amas
teríamos um problema. assim,
se este poema fosse mesmo um poema
e não me tivesses dito que me amas
a ordem entre os dois não existiria.
poema e amor, tudo se equilibra
quando escrevo que dizes que me amas
exactamente como estes versos
que existem quando dizem que nós
nos amamos neles para além
da troca impossível com a morte.

..

diz-lhe tu. ouvir-te-á com mais atenção.

diz-lhe que assim não vai a lado nenhum,
que chega uma idade em que a ilusão
por conseguir viver como se quer
nem dá para um prato de lentilhas.

que confie na voz da experiência
e concorra a uma vaga de professor:
então já vai ter tempo de escrever
essas coisas que escreve e que ninguém percebe.
e que corte o cabelo, por amor de Deus,
que assim parece um vagabundo
à procura da sua sombra pela noite.
que repare nos filhos do Guillermo.

diz-lhe tu, meu amor. sabes que eu
fico enervado só de pensar nisso.

..

mexes as coxas como se soubesses
que és a herdeira de uma história repetida.
balanças as ancas com a certeza
de quem sabe que a moda
é a primeira coisa a passar de moda.
mas também te perguntas se é só por pena
que o rapaz do balcão te sorri
e achas que a tua vida é só uma ilha
aos olhos distantes dos outros.
certo dia queimaste os teus peluches
só para ver como ardiam com eles
o princípio e o limiar da tua tristeza
,
mas, apesar de tudo,
danças com a energia secreta da pedra,
com um antigo dom de fonte ou lábio.
apesar de ti, mostras o umbigo e ris:
sabes que a poesia também precisa de ti.
..

mesmo em frente à praia do sul,
na Ericeira, puseram uns bancos
onde as pessoas se sentam a ver o mar.
há espuma de gasóleo esta manhã,
e um saco assusta os banhistas
que querem ver nele uma alforreca.
algumas tardes também eu me sento
a enganar-me com corpos que derivam
despojados, afinal, da função
que modelou a forma que confundo.
é então que vislumbro o teu rosto
a rir contra o sol do meio-dia,
escondido atrás do chapéu de palha
que agora nos recorda aquele verão.
diz-me: "vamos. é hora de voltar.".
de repente, nenhum de nós os dois
é o mesmo. a caminho do carro
a nossa felicidade é esse cão
que está a ladrar ao mar desde a beira.

..

(..)
que a vida é exactamente isso:querer apenas medir com um metro
a largura inatingível do desastre.


carlos contreras elvira
in 'matrioshkas', editora arcádia (babel), 2010

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Um bem haja ao jardineiro das flores mais belas, ternas e tantas vezes comoventes que vou colhendo neste jardim.
x

segunda-feira, outubro 25, 2010 4:58:00 da tarde  
Anonymous Ale said...

Parabéns ao blog e ao blogger!
Jardineiro das flores de inverno, as mais sensíveis e delicadas...

Parabéns por espalhar o perfume da flor de laranjeira pelos campos e planícies verdejantes...

Um beijo em flor...

segunda-feira, outubro 25, 2010 10:03:00 da tarde  
Blogger JdB said...

Renovados parabéns, desta vez à luz do dia e não nas profundezas de um estabelecimento onde, entre garfadas alimentares, se reforça a alma. Partamos de flor (es de inverno) ao peito.

terça-feira, outubro 26, 2010 12:59:00 da tarde  

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