30 novembro 2010


e há em ti uma beleza devastadora, como todas as belezas que conjugam, para além da superfície, uma ideia da própria beleza. repara, josep, não és mais do que um homem. mas conseguiste, mais uma vez, derrotar o cinismo matreiro, o culto da eficácia, a soberba de sua majestade. e como o fizeste tu, josep? com meios, claro que sim. mas, acima de tudo, com uma ideia positiva, uma formidável máquina de futebol total, à altura de todas as laranjas mecânicas que vimos jogar. uma máquina alimentada pelo génio humano e pela ideia furiosa (sim, é herberto helder, que querem?), furibunda, de que é possível ser o melhor, guardando silêncio, sendo elegante, unindo na ponta da chuteira qualidade individual e coreografias colectivas. ontem, josep, puseste a tua equipa a jogar como no tempo do 'dream team' - essoutra equipa de sonho, de há quinze ou vinte anos atrás. quando uma certa ética (porque é disso que se trata) se junta a uma certa estética (porque é também disso que se trata), ficamos todos arrasados pela beleza, como dizer agora, convulsiva. josep, nós, os habituais perdedores do mundo, ajoelhamos perante ti. nos noventa minutos de uma partida de futebol resgatámos essa coisa linda - a ideia de que, mesmo neste mundo calculista e mecânico, ainda é possível aos bons ganharem aos maus. com a elegância moral de quem sabe ter a razão (ou  melhor, uma certa ideia de razão..) do seu lado, mesmo que contra todos os ares do tempo, contra todas as espumas dos dias. foi lindo, épico - como um poema in progress, arrebatadora ideia viva, a caminho de se cumprir.

moltes gràcies, josep.

29 novembro 2010

blague melancólica

erros individuais,
má fortuna,
amor ardente.

porque raio havia
de ser diferente
com a gente?

dizias, amiga?
saí para comprar jornais, e não cigarros, na tabacaria de bairro. da porta, vindo do frio final de tarde, ali estava ele, o manuel, o mais triste (e o mais certeiro, infelizmente) poeta da nossa adiada geração (sim, isto é alexandre o'neill, o tal do país adiado). saudámo-nos, com cortesia e alguma dificuldade, como acontece entre certos homens que se medem, certos da admiração que sentem um pelo outro (e também por medo da lucidez pontiaguda das palavras que essoutro desfere, mesmo que com a cortesia devida aos estranhos). até à próxima - foi assim que me despedi do manuel, e uso aqui do mais cartesiano e objectivo rigor descritivo.
devolveu-me as mesmas exactas palavras, como se, de certa forma, as palavras não fossem mais do que um boomerang (e penso em lâminas geladas, desculpa). no dia seguinte, a pequeno-burguesa livraria estava já atafulhada dos costumeiros compradores compulsivos (não vale a pena abastardar a palavra que seria certa, Natal, já nem vou explicar-te o porquê..), que tratam os livros como mercadoria (quando são hóstia sagrada). escondido, por detrás de tomos desinteressantes, lá estavas tu, josé miguel, amigo do manuel, insígne poeta também e também tu cultor dessa amarga lucidez a que muitos chamam a enjoativa poesia do concreto, da fealdade, um mero despejar de maleitas e vexames que mais valia ficarem para todo o sempre encarcerados em gavetas lá de casa. sempre assim foi: os mais sábios, os mais lúcidos, são uma ameaça para os situacionistas, os escapistas, os manipuladores, os tolos da freguesia. sim, sempre assim foi, manuel e josé miguel. nessa mesma tarde - escura como breu, afinal era inverno outra vez -, viajámos juntos por essa itália tão tua. e nunca itália me pareceu um país tão triste, um cenotáfio tão estéril, uma sombra eterna e glacial, como nos teus poemas de viagem, nesse anti-lirismo sufocado e (ab)surdo. terminas o livro, josé-miguel-amigo-do-manuel-vizinho-meu, com essa lição descoroçoante: "lembrem-se, vós que passais, que o benefício do banquete é a observação dos convivas". no niilismo deste aforismo, deixei-me cair a pique, no que fui seguido pelo dia e pelo resto - todos em desamparada queda livre. e eu, como kiarostami, uma perfeita "copie conforme" de toda essa tristeza funda e original, repetida em mim, "ad eternum e ad nauseam"..

dizias o quê, amiga?

27 novembro 2010


eram exactamente 20h55 de sexta-feira, dia 26 de novembro de 2010. com as mãos fincadas no volante do carro e o rosto gelado (dos dois lados), essa menina que mais parece o joão blake em feminino (joana bernardo, sim, j.b., como em joão blake), aos comandos da radar, lança sobre a cidade esta canção.

dizem que carrego na poesia, que me perco em intensidades várias, que cultivo a obscuridade, que sou uma perda de tempo ambulante para mim próprio. mas, e é apenas uma hipótese inverificável, se trouxessem convosco o tempo todo essa coisa a que chamam semiótica, talvez me entendessem.

'cause i already knew, claro que sim.

26 novembro 2010


breve reflexão com destinatário preciso

se é verdade que 'o poema ensina a cair' (na formulação lúcida de luísa neto jorge) ou que, de forma mais genérica, toda 'a poesia ensina a cair' (ligeira reformulação, desta vez da responsabilidade de eduardo prado coelho), talvez seja altura de mudar de registo. afinal, o acto de nos levantarmos também é um modo de vida ancestral. e recomendado, ao que dizem. qualquer dia é um bom dia para se começar a empreitada.
e, pequenas ou grandes, iniciam-se todas pelo mesmo exacto local: o (ou um) princípio. a ele, que é um'outra forma de dizer 'ALLEZ!'

2011 já apetece. para variar de 'anos avariados', que seja um ano escrito em prosa - são os meus preci(o)sos votos.

25 novembro 2010


quase salvo pela gentileza dos estranhos, mais uma vez.

obrigado, senhor taxista.

24 novembro 2010


'the future as i see it', jean noire
circa 1972, oil on canvas, anderson museum, los angeles, usa
'sob a calçada, a praia!'
'somos razoáveis: queremos o impossível!'
paris, maio de 1968

e é assim que chegamos a este dia, dito de greve geral, em que muitas coisas entram em suspensão, para que possamos pensar, para que a voz da rua se escute. que a aproveitem para isso e não para ir ao centro comercial. sejam homenzinhos e mulherzinhas, usem a cabeça, pensem no país que (não) temos e naquilo que temos que fazer melhor. façam como eu, peçam desculpa. não culpem as circunstâncias, os ladrões dos políticos, o estado do Estado, o desgoverno do Governo - pensem, como disse alguém famoso, naquilo que vocês podem fazer pelo vosso país, sim, pelos outros, sim, por vós, pá, por vós, pelos filhos que (não) têm, pela sociedade que (não) construíram, pelo estado danação desta (não) nação. sejam crescidos.
e é assim que sais de casa manhã cedo e ouves logo a força reaccionária das ruas, esse pequeno patronato ridículo, sem mundo para além do seu umbigo, a rosnar contra a greve geral - esses calaceiros, que deviam era trabalhar no sábado e no domingo! ouçam, pobres de espírito, eu trabalho numa grande empresa, do lado do patronato, e essa rapaziada politizada, furiosamente esquerdista, desrazoável tantas vezes, causa-me dissabores. mas é preciso entender, escutar, andar na rua e perceber, é preciso olhar a pobreza envergonhada, as políticas injustas, é preciso refazer as bases e, então sim, exigir, ser firme, afrontar quem bloqueia por bloquear, essas forças do contra só porque sim mais as suas agendinhas políticas, as rasteiras manipulações disfarçadas de alta política. é preciso pensar, pensar, pensar. é preciso lucidez.
e é assim que no caminho matinal vais cumprimentando um e outro e, de repente, estancas e pensas que, se porventura uma revolução liderasses, os teus seguidores seriam mais depressa essa massa de desvalidos de todos os géneros que cumprimentas com um sorriso do que toda a inteligentzia bem falante que te cerca, noutros círculos em que te moves. tu, como um duce dolce, um agitador, pregando o amor cósmico, tão new age, fazendo das flores no bolso de trás das calças não um símbolo de orientação sexual mas um rigoroso manifesto ético - flores, uni-vos e tomai o mundo!
e é assim que pensas, ainda no banho, 'faça-se em mim, segunda a Tua vontade', já que confias bem mais na Sua clarividência, do que nos teus critérios, escolhas, apetites, inclinações.
e é assim que josé mário branco passa em broadcasting - ouch. o célebre 'fmi', esse grito lancinante, desesperadamente poético e poéticamente desesperado. talvez 10 ou 20 pessoas escutem e talvez esse facto mude alguma coisa. e talvez uma só dessas 10 ou 20 pessoas mude o mundo. para melhor, para melhor, que para pior já basta assim, como na modinha-ditado popular.
e é assim que os clash te cantam ao ouvindo: 'i'm all lost in the supermarket, i cannot more shop happily'. e pensas que, há 30 anos, já esta civilização(?) líquida, materialista, repentina, fugidia, estava toda aqui no punk-rock estranhamente dançável desta banda de intervenção (no tempo em que os animais falavam, bem sei..).
e é assim que no teu fato impecavelmente janota, colocas uma gravata vermelha (não é encarnada, é mesmo vermelha-coração). e que no teu bmw prateado atravessas a cidade enquanto escutas o josé mário branco
e pensas
e pensas

Deus meu, o que faço eu aqui? meu Deus, quem sou eu?

e de maneira que foi assim. e de maneira que é assim. de maneira que sou assim.

23 novembro 2010


driving licence

sentir a impermanência
escalar a pele
desde a ponta dos pés

sentir a finitude
descer a pele
desde a ponta dos cabelos

intuir o seu exacto
ponto de encontro:
ali mesmo junto ao coração.

sempre
em contra-mão

sempre
atropelado

por si próprio
e por alguns outros.

quem dera ter tirado
em tempo certo

a universal
carta de condução

não é fácil de conduzir não
um destemperado coração.

22 novembro 2010


em memória de tiziano terzani (jornalista correspondente, grande repórter, viajante dedicado e incansável, autor de livros de viagens, crente no poder do 'pacifismo cósmico', à maneira oriental), a minha companhia espiritual deste último mês e provavelmente o homem que mais me fez pensar, nestes últimos tempos - perdão, Pensar.

21 novembro 2010


i break horses. i break horses. i.

19 novembro 2010


dizias, portanto, que a vida, lá fora, cá dentro, continuava como se num imenso e contínuo plateau. parte verdade - o cinema é, ilusão ou não, também um sistema sociológico, habitado por seres humanos, como tudo o resto -, parte mentira, mas ainda assim um gigantesco plateau.

se é um plateau, é um plateau de que autor, de que género de filme? nada de grandes gestas heróicas, nada de comédias, de grande sagas históricas, de ficção sci-fi. talvez uns pózinhos de série b, algum noir, uma pitada de existencialismo clássico e outro tanto de modernidade angustiada. mas este cinema não existe. o que existe é, por exemplo, o cinema colorido por fora, anacrónico no grão e na paleta de cores e de objectos que ocupam a cena, o cinema, dizíamos, de eric rohmer.

nada de grandes dramas. nada de cavalgadas em prol da salvação do mundo. nada de biopics exemplares, bigger than life. cinema quase vérité, feito das pequenas coisas que não atrapalham o fluir do mundo, mas que, a uma escala micro, pessoal, são verdadeiros turbilhões subterrâneos.

dizias, portanto, que era como se habitássemos (n)um plateau. de maneira que é assim que continuamos a flanar pelos dias.

és cinema e ao cinema voltarás. metade ficção; metade realidade humana. onde começa uma e acaba outra? boa pergunta. boa pergunta..

"Human relationships didn't work anyhow. Only the first two weeks had any zing, then the participants lost their interest. Masks dropped away and real people began to appear: cranks, imbeciles, the demented, the vengeful, sadists, killers. Modern society had created its own kind and they feasted on each other. It was a duel to the death...in a cesspool."

"I could see the road ahead of me. I was poor and I was going to stay poor. But I didn't particularly want money. I didn't know what I wanted. Yes, I did. I wanted someplace to hide out, someplace where one didn't have to do anything. The thought of being something didn't only appall me, it sickened me . . . To do things, to be part of family picnics, Christmas, the 4th of July, Labor Day, Mother's Day . . . was a man born just to endure those things and then die? I would rather be a dishwasher, return alone to a tiny room and drink myself to sleep."

"The nine-to-five is one of the greatest atrocities sprung upon mankind. You give your life away to a function that doesn't interest you. This situation so repelled me that I was driven to drink, starvation, and mad females, simply as an alternative."

"Drinking is an emotional thing. It joggles you out of the standardism of everyday life, out of everything being the same. It yanks you out of your body and your mind and throws you against the wall. I have the feeling that drinking is a form of suicide where you're allowed to return to life and begin all over the next day. It's like killing yourself, and then you're reborn. I guess I've lived about ten or fifteen thousand lives now."

"I was naturally a loner, content just to live with a woman, eat with her, sleep with her, walk down the street with her. I didn't want conversation, or to go anywhere except the racetrack or the boxing matches. I didn't understand t.v. I felt foolish paying money to go into a movie theatre and sit with other people to share their emotions. Parties sickened me. I hated the game-playing, the dirty play, the flirting, the amateur drunks, the bores."

"This is a world where everybody’s gotta do something. Ya know, somebody laid down this rule that everybody’s gotta do something, they gotta be something. You know, a dentist, a glider pilot, a narc, a janitor, a preacher, all that . . . Sometimes I just get tired of thinking of all the things that I don’t wanna do. All the things that I don’t wanna be. Places I don’t wanna go, like India, like getting my teeth cleaned. Save the whale, all that, I don’t understand that . . ."

"There's nothing to mourn about death any more than there is to mourn about the growing of a flower. What is terrible is not death but the lives people live or don't live up until their death. They don't honor their own lives, they piss on their lives. They shit them away. Dumb fuckers. They concentrate too much on f***ing, movies, money, family, f***ing. Their minds are full of cotton. They swallow God without thinking, they swallow country without thinking. Soon they forget how to think, they let others think for them. Their brains are stuffed with cotton. They look ugly, they talk ugly, they walk ugly. Play them the great music of the centuries and they can't hear it. Most people's deaths are a sham. There's nothing left to die."

"The problem was you had to keep choosing between one evil or another, and no matter what you chose, they sliced a little bit more off you, until there was nothing left. At the age of 25 most people were finished. A whole god-damned nation of a**holes driving automobiles, eating, having babies, doing everything in the worst way possible, like voting for the presidential candidates who reminded them most of themselves. I had no interests. I had no interest in anything. I had no idea how I was going to escape. At least the others had some taste for life. They seemed to understand something that I didn't understand. Maybe I was lacking. It was possible. I often felt inferior. I just wanted to get away from them. But there was no place to go."

lição 1: got till it's gone é o nome da canção acima. no further comments, meritíssimo.

lição 2: say it loud: i am black and i am proud. lindo, às vezes.

lição 3: janet jackson, ainda que bem acompanhada, não deixa de ser janet jackson. e qual é o problema, rapaz? o problema é o de sempre - o preconceito. os purismos. que rimam com eugenismos da pior espécie. curte o som, man. curte a estética, brother. curte a mensagem.

lição 4: precisamos de mais Mulheres. never enough, as maiúsculas donzelas.

18 novembro 2010

em repeat


eu sei, eu sei, estou hiper-activo nas teclas e nos sentidos desgovernados. o velho fenómeno de compensação, afastado que está o chocolate. e não fumo (quase). e bebo pouco. vai daí, teclar é mesmo compensação directa. só pode ser. por exemplo, de repente, nesta porcaria de escritório, lembras-te de uns olhos a olhar para ti. e lembras-te, o verbo é outro mas ainda está por inventar, lembras-te (fica este) de dizer que não sabes se há um sentido, um desenho inteligente, um fito, um propósito, que há sempre a opção de não acreditar e começar aqui mesmo, hoje e agora, a partir isto tudo, o que inclui a minha vida e a tua, o coração (este mata-borrão que tudo absorve) e o corpo, as mesquinhas danças profissionais, e tudo o mais que, suspeitamos, serve para pouco. mas, lembras-te, logo a seguir de atirar algo como há sempre a outra possibilidade. e que desdenhar essa possibilidade é abandonar a possibilidade de uma beleza ética e estética e o que tu quiseres, mais vocês todos, mais eu todo - sei lá, todos. de repente, lembras-te do rosto e dos olhos - esses instrumentos divinos - e dessa tua expressão isso foi tão bonito. e brilhavas no escuro, como uma derradeira luz no deserto urbano, uma espécie de farol e eu uma espécie de barco em mar agitado e eu olhava para dentro de ti - e se pudesse, por osmose, mergulhava em ti, cindindo-me em milhões de partículas, atómos e matérias luminosas. eu sei lá. à volta, ardem as constelações, como sempre no verão e, para certas pessoas certas, em todas as estações. cá dentro, arde o diacho do corpo, esse desassossegador permanente. entre uma coisa e outra, a memória de uma frase certeira, no momento certo. e os lençóis por testemunha. e a madrugada lá fora, esmagada, uma e outra vez, pela poesia da tua pele na minha pele. se isto é prosa, eu sou poesia. e um coração, amigo do peito e arqui-inimigo, que ainda sabe a saliva.

viva o sporting, porra! e neste desesperado link emocional, encontras a chave para todas as paixões desrazoáveis, esta ínclita inclinação para enfrentar de frente a borrasca, esta afeição pelos loosers e pelos desalinhados, por essa patine aristocrática que trazes colada a ti, por esse modo de ser anacrónico e em modo looping. do auto-tune, ferramenta electrónica de trazer por casa, se diz que faz maravilhas pelo hip hop homemade. o que eu gostava de ter um aparelhómetro assim, um amansador de feras portátil, um redutor de intensidade, um estabilizador de electricidades várias. mas, se o tivesse, logo, logo, diria algo como: quero um intensificador, um desestabilizador formidável, quero tropeçar até cair! viva o sporting, porra.

17 novembro 2010


de michelangelo antonioni bem se poderia dizer que era 'a sua cena'.

16 novembro 2010


'luz silenciosa' é outro sacana de um filme, realizado por carlos reygadas, e ao qual voltaremos..
(às vezes, o paraíso)

um céu e nada mais - que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul - como de tecto.
e o seu número tal, que deslumbrados
eram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais - que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. um céu e nada mais.

..

se eu cantasse o amor sem resultado ou causa,
seria mais sensata: chegava-me uma lua de papel,
um par de braços lisos, conformados

se eu cantasse o amor sem causa ou resultado,
tinha muito mais paz: fingida em luas-cheias,
seria mais sensata e decerto poeta bem melhor

assim o que me resta é lua cheia a trans-
bordar de tridimensional. a paz a falhar toda
e eu resolvida em causa a insistir papel. e amor.


ana luísa amaral

15 novembro 2010

estava na exacta esquina onde se cruza a avenida com a ruazinha de bairro. esperava, como sempre, alguma coisa ou alguém. uma forma de combater o torpor da vida e, de certa forma, a malaise da cidade ao domingo. ela apareceu de repente e pediu-me para a ensinar - non sense, diparei de imediato. eu não tenho nada para ensinar a ninguém, muito menos a quem ainda tem futuro. não quero deturpar, enviesar, influenciar, o que cresce por si. ela argumentou com trinta e quatro poderosos argumentos, ainda que eu só me lembre de três (os olhos azul-celeste e o sorriso novecentista). o desfecho até um petiz o era capaz de intuir - my fair lady is back in town. como comédia, farsa, tragicomédia ou drama, é o que se verá. tudo isto se passou assim e tudo isto se passou de maneira completamente diferente. de forma que eu lá segui viagem, de assobio tosco na curva dos lábios e de mãos nas algibeiras vazias. quando confiam em nós, como nos velhos romances de formação, em que jovens rapazes e jovens donzelas adquirem um carácter mais ou menos exemplar, mas nós não confiamos em nós próprios, fazer o quê? eram estes os meus pensaementos enquanto deslizava pela avenida, mirando as montras. de súbito, estanquei, perante o vidro perfeitamente polido de uma drugstore. era eu ali, perante o juiz mais implacável - eu próprio, pois claro. metia-me medo a fisionomia da desconfiança talhada no meu rosto. acordei deste pensamento ao som das badaladas de uma igreja qualquer das redondezas, que não via (mas que não precisava de ver, para saber que era dali que vinham as badaladas que me haviam despertado). por mim, na rua, passavam homens e mulheres e homens e mulheres, como sempre passam por nós nas ruas das grandes cidades. eram os primeiros anos do século em que me fiz homem. e o país, o meu país, era grande e permitia a um rapazola sonhar - essa coisa sem preço, tal o valor.. saber isto era como almoçar um frango, daqueles de que só as velhotas conhecem os segredos culinários e que transformam de uma carne comum num faustoso repasto. pensei para comigo que talvez dali a 100 anos, num país qualquer da europa, alguém perceberia exactamente o que eu sentia, aquele subterrâneo turvelinho que, em qualquer ponto da cidade, me saía ao caminho sem sequer pedir licença. que pensamento mais disparatado, ocorreu-me, felizmente. e enquanto trincava uma maçã vermelha como os tecidos que certa manhã vi na tinturaria da avenida das acácias, lembrava-me daqueles olhos azuis-celestes e daquele sorriso novecentista e do meu novo papel de professor e pensava como a vida é bela mesmo quando temos tantas angústias e tantas dúvidas e temos apenas dezoito anos e estamos sózinhos na grande cidade como sózinhos estamos perante o mundo e tudo é afinal harmonioso porque vivemos finalmente do e para o momento - essa espécie de religião do novo século.
chamo-me jim, e a esta cidade, no ano da graça de 1910, alguns chamam nova iorque.

14 novembro 2010


e 'badlands' é um sacana de um filme, realizado por terrence malick

'a vida breve', é um romance de juan carlos onetti

"(..) quando morreu, em 1994, em madrid, juan carlos onetti não saída de casa há vários anos; não porque sofresse de qualquer problema físico, mas simplesmente porque tudo aquilo que lhe interessava estava ali: a mulher, o gato, e os livros de chandler e de dashiel hammett."

josé riço direitinho, in ípsilon, sexta-feira, 12/11/10, a propósito da edição de mais um livro do autor.

12 novembro 2010



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11 novembro 2010

10 novembro 2010

09 novembro 2010


felicidade em turim

encontrámo-nos no valentino em turim
e viajámos por toda a itália de comboio,
dormindo juntos.
eu não falei em sexo.
disse dormindo juntos.
coisa de que a sexualidade é,
e não é, uma parte.
é esse dormir juntos
que é sagrado para mim.
bocejarmos juntos.
podes ter sexo com qualquer pessoa
mas com quem podes dormir?

odeio-te
porque dormiste comigo
e me deixaste.

paul durcan
em 'a snail in my prime: new and selected poems', 1993,
tradução de pedro mexia

[nota: eu não odeio ninguém. mas gosto muitíssimo deste poema, apesar da relativa violência que utiliza para dizer o que quer dizer - e que, na minha modesta opinião, diz muitíssimo bem. em prosa, seria um libelo acusatório, um manifesto hostil, um martelo metafórico alimentando a auto e a hetero flagelação. assim é quase doce, apenas triste. e muito mais bonito ;)]

chalmers butterfield captou assim esses míticos anos cinquenta estadunidenses. neste caso, estamos em rocksprings e em cripple creek, respectivamente (ambas no colorado) - algures, portanto, na grande nação americana.

a película é kodachrome - marca devidamente registada e que ficou para a história da fotografia (logo para a nossa própria história).

este é o país que vive o e do sonho americano. a terra das oportunidades. mas também a pátria da expressão 'nunca há segundos actos na vida dos americanos'.

no fundo, é como uma metonímia - os estados unidos como representação do mundo; e os americanos como representação de todos nós.

como compatibilizar todas as possibilidades com o determinismo que nega o segundo acto? e entramos assim no campo da lógica mais pesada, do pensamento filosófico sofisticado, dos paradoxos metafísicos.

pensamos, manhã cedo, nesses anos cinquenta, cristalizados nos fotogramas acima. ou seja: pensamos já neste aqui e agora, visto a partir do futuro.

a tecnologia evoluiu, entretanto, de forma estonteante. e evoluirá, seguramente, nas próximas décadas, de forma inimaginável à luz dos arquétipos que hoje usamos. a pergunta, contudo, mantém-se: e a metafísica, continuará na exacta mesma posição, essa insolúvel risada cósmica? ou será antes o silêncio (na metafísica, talvez a pior das respostas)?

entre o silêncio e a risada, presos a um fotograma anacrónico - eis o nosso destino.

já falámos de coisas mais alegres, não já? haja saúde.

08 novembro 2010


'ele chamava-se arturo, mas detestava esse nome e queria chamar-se john. o seu apelido era bandini, mas ele queria que fosse jones. o pai e a mãe eram italianos, mas ele queria ser americano. (…) viviam em rocklin, colorado, dez mil almas de população, mas ele queria viver em denver, a cinquenta quilómetros de distância. tinha sardas, mas preferiria não as ter. andava numa escola católica, mas preferiria estudar num liceu público. tinha uma namorada chamada rosa, mas ela detestava-o. servia de acólito, mas era levado da breca e detestava os outros acólitos. queria ser um bom rapaz, mas tinha medo de ser um bom rapaz, pois temia que os amigos o considerassem um bom rapaz. era arturo e amava o pai, mas vivia no medo de crescer e de se tornar mais forte do que o pai.'

in 'a primavera há-de chegar, bandini', de john fante, traduzido por rui pires cabral, para as edições ahab


isto, meus caros, não escreve qualquer um. agora imaginem o prazer que é ler centenas de páginas sempre com a fasquia lá em cima.. 'pergunta ao pó' e 'a primavera há-de chegar, bandini' estão já traduzidos para a nossa língua, num esmerado e dedicado trabalho de competentíssimos tradutores e de apaixonados editores. numa livraria, perto de vós. corram.

tu que olhas para mim,
eu que olho para ti,
o instante em que nos cruzamos,
contra as leis do tempo e da probabilidade,
este rectângulo digital,
oráculo que resta em tempo de deuses descrentes.

esse olhar teu em mim
e este olhar meu em ti,
faísca frenética,
metafísica amorosa ao final da tarde que finda,
algo fundo que nos afunda
e uma constelação que se acende.

nenhuma beleza se mede
por possibilidades ou lucros imediatos
- antes pela louca certeza
de que somos absolutamente possíveis,
como este nosso amor
entre quem morreu há décadas, tu,

e quem vive quase morto,
este metafórico e sulfúrico eu,
que ainda sou.

manuel cintra ferreira (1942-2010)

crítico de cinema do jornal expresso, programador da cinemateca nacional, entre outras coisas.

um daqueles seres em vias de extinção, por acreditarem, sem metáforas ou floreados meta-poéticos, no poder formador e, mais importante, transformador do cinema (CINEMA com maiúsculas, se quisermos ser rigorosos).

outro daqueles que me ensinou o pouco que sei - que me fez ver para além do que parece evidente, para encontrar o que parece verdadeiro - e que, na dúvida, é indiscutivelmente belo.

até sempre, amigo.

07 novembro 2010

05 novembro 2010



cada vez que sorris

um condenado à morte
escapa
por entre muros de betão

e a matemática
amanhece
em convulsão

e a luz
desmaterializa-se
até à mais pura exaustão

a felicidade inteira

ou outra forma
de dizer o verão.

04 novembro 2010


há quatro décadas, já antonioni antecipava - e, de certo modo, fixava - a sacrossanta igreja mediática, em cujo altar reina majestosamente a velha máxima "o que não é (tele)visto, não existe". da aldeia global aos quinze minutos de fama, do teletrash viciante e vicioso ao apogeu do video matando as antigas estrelas da rádio, da cultura paparazzi ao império eregido pela pink press, tudo é hoje transaccionável através de, e pela força das, imagens. na era do simulacro, melhor a foto do que a humana voluptuosidade pulsante, ali mesmo, à mão de semear - mas também à mão de fotografar.

a culpa não é do facebook, desta vez. mas a responsabilidade há-de ser de alguém. depois queixem-se.


e era o rio e eras tu
e esta cidade e esta saudade
que te (d)escrevo assim

e esta estranha vontade
colada à minha sofrida pele
com essência de jasmim

como se arriscando ao malmequer
- num vertiginoso jogo floral -
um bom pedaço de mim

tudo ou nada, o que se quiser,
como um país novo saído do forno,
e ao diabo a palavra nim!

03 novembro 2010


verso vão

onda de sol, verso de ouro,
perífrase vã. extasiar-me,
antes, por esta fusão,
mistura de brilhos. ou, ainda
mais íntima, a consciência
extensa como o céu, o corpo de tudo,
semelhança absoluta. respirar
na quebra da onda. na água,
uma braçada lenta
até ao limite de mim.

fiama hasse pais brandão
a favor ou contra o famigerado orçamento?
dilma ou serra?
tea party, republicanos ou democratas?
cavaco, alegre, nobre, lopes ou moura?

estas coisas têm importância. no fundo, à nossa pequenina escala, todos nós temos as nossas presidenciais, as intercalares, as legislativas, as moções de confiança, as moções de censura. à nossa medida, as coisas não são assim tão diferentes. escolher cansa, desgasta, desilude; mas não escolher legitima tudo - incluindo tudo mesmo. e ninguém, em seu perfeito juízo, aceita viver assim.
dia de todos-os-santos

era dia de todos-os-santos, tal e qual,
e o carro deslizava suave pelas colinas douradas
ao encontro de um qualquer encontro.
na rádio, o velho lobo era homenageado em directo
e escutava-se agora a voz do homem que jaz morto.
talvez um dia, quem encontrar as gravações antiquíssimas
de uma certa estação fria,
sinta o mesmo - pudor e amor - por sentir ter entre mãos
algo precioso, que nos pertence e que não nos pertence.
na mesma rádio, falava-nos agora a companheira do velho lobo,
e a voz não tremelicava, a emoção estava controlada ao mílimetro,
coisa de que não somos capazes (talvez quando crescermos).
a canção que se escutava em fundo, apenas trecho musical
mas não menos fulminante, era aquela daquele rapaz
com nome de cidade oriental esventrada - beirut -
aquela exactamente que nos faz deflagrar o coração.
quando, mais tarde, pedi o vinho da madeira doce
e o saboreei em tragos muito lentos e muito suaves,
pensava em ti - videotape que trago inscrustado -,
no velho lobo (almirante do ar, ocorre-me a expressão),
na sua companheira tão elegante (e tão superior a mim,
naquela justeza admirável e contida que só as mulheres).
as colinas de lisboa continuavam lá
e eu deslizava como que pelo dorso de um puro-sangue amigo,
e tudo era suavidade e tudo era como a doçura antecipada
do vinho da madeira que beberia dali a instantes
(mesmo que, claro, o não soubesse - que a poesia tem limites)
quando estacionei frente ao rio,
não percebia porque tremia, nem porque tinha os olhos
enxaguados, exauridos, exangues, extenuados,
nem muitas outras coisas deveras patetas (coro levemente).
lembrei-me então daquele dono de circo que dissera no jornal do dia
- só levam daqui os três ursos depois de me matarem a mim primeiro!
virei-me para ti, meu senhor cosmos estuporado, e gritei:
- só levam os meus sonhos depois de me matarem a mim primeiro!!
ou tudo ou nada, desgraçado!!
quando entrei no tal encontro, apresentei-me assim: olá, sou poeta.
e lisboa e o rio abraçaram-me, entre eles,
enquanto ursos levitavam ao pé do Cristo-Rei,
e o velho-lobo-do-ar-almirante mai-la sua sereia me piscavam o olho
e o rapaz como nome de cidade oriental esventrada me dizia baixinho:
- i dream of electric dreams which dream of you..

e era o tejo
e eras tu
e era já a saudade que não sei dizer

e foi assim
o meu dia de todos-os-santos.

01 novembro 2010



lover, will you look at me now?
i'm already dead to you
but I'm inclined to explain
to you what i could not before
whatever you didn't do, what you couldn't say
i am sorry that the worst has arrived
for i deserve more
for at least i deserve the respect of a kiss goodbye

tell me, do you think of me now
as i think of you?
for i could not have shaken the touch of your breath on my arm
for it has stayed in me as an epithet
i am sorry the worst has arrived
for i'm on the floor
in the room where we made it our last touch of the night

i walked, because you walked
but i won't probably get very far
sensation to what you said
but i'm not about to expect something more
i would not have run off
but i couldn't bear that it's me
it's my fault
i should not be so lost
but i've got nothing left to love

lover, will you look from me now
i'm already dead
but i've come to explain
why i left such a mess on the floor
for when you went away i went crazy
i was wild with the breast of a dog
i ran through the night
with the knife in my chest
with the lust of your loveless life

i walked, because you walked
but i won't probably get very far
sensation to what you said
but i'm not about to expect something more
i would not have run off
but i couldn't bear that it's me
it's my fault
i should not be so lost
but i've got nothing left to love

i walked, because you walked

(os darkstar - a nossa paixão mais recente.. -, a transfigurarem, via hyperdub, a canção dos radiohead "videotape")

(e thom yorke, líder dos radiohead, em solo absoluto, às voltas com a mesmíssima canção)