31 dezembro 2010


'fim - o que resta é sempre o princípio feliz de alguma coisa.'
agustina bessa-luís

num jardim às (amor)eiras

abrir o e.mail pela manhã
e sentir a brisa inundar o rosto
mistura de romã e de hortelã
com a luz em zénite de agosto.

rimas forçadas porventura
recomendando mais juízo,
mas a poesia é aventura
e tudo o mais que é preciso.

falo, claro, metaforicamente,
querendo antes dizer Poesia.
repara: uma só letrinha diferente
e falamos já de quase magia.

vistas abertas para o mar
janela-vida rasgada que sorri
afinal, diz a Agustina, terminar
pode ser via-sacra de alegria.

como se abríssemos de par em par
esta estranha coisa - a alma -
e ousássemos outra vez navegar
com toda a garra e toda a calma.

mais não sei dizer, queridas meninas,
que não tenha dito mil vezes no retrovisor:
frémitos, balas, palmas e salvas,
tudo apenas declinações óbvias deste

infinito e delicado, terno e eterno,
Amor de Inverno - sempre em flor.



em lisboa, lá estarei.
so help me our lord of the little precious things.

2011.


um adeus português

nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

alexandre o'neill


see, the luck i've had
would make a good man turn bad

see, the life i've had
would make a good man turn bad.

a murderous desire for love.

a glória será não esquecer.

'a single man' é um filme de tom ford - e é também uma belíssima metáfora sobre a identidade e os seus abismos. que seja (quase, quase..) sobre a minha é um mero detalhe, brevíssimo rodapé de poeira sideral.

30 dezembro 2010

nothing but flowers.

29 dezembro 2010


6 fragmentos, 6 espectros, 6 estilhaços - 1 homem

1. nunca uma árvore pode ser derrubada, quando a melodia da tarde envolve o tronco, a copa, as folhas dispersas pelo céu, recortando nuvens, e um rasto de luz fica preso à sombra projectada no solo, pouco antes de o sol desaparecer completamente.

2. sem o céu das latadas de verão, guardo as estrelas da noite que a cidade esconde, porque talvez alguém se vá embora de vez, conduzindo um chevrolet de 1940, ou qualquer outro carro de carroçaria vermelha, a brilhar, cheia de cromados deslumbrantes, como num anúncio onde uma mulher exibe um sorriso de nácar.

e nem sequer uma palavra, um postal de aniversário, um toque de lápis que limite a boca.

3. já passa das quatro da manhã e não consigo dormir. a escuridão prolonga-se no meu peito cheio de suor e taquicardia, a noite passa como um flashback imprescindível para compreender o resto do filme. no sonho acordado, correm aquelas imagens condensadas nas pessoas conhecidas, mas que não são elas, são outras disfarçadas de mim, uma florescência.
levanto-me e ligo a televisão. passeio a insónia pela publicidade aos utensílios de cozinha, aos instrumentos de tortura de perder peso, e talvez memória, com imagens de o antes e o depois, como se fosse possível a mudança anunciada em sonhos cabalísticos ou nos sonhos onde se voa sobre uma montanha, e que nos fazem acordar em grande aflição, a perder o pé.
daqui a pouco tenho de acordar de vez e esquecer-me de mim, meia hora no chuveiro, ensaboar-me três ou quatro vezes, distraído, sem reparar no corpo, na carne, na flacidez do tempo.
(muita gente pensa que eu sou um anjo alinhado pelo meridiano de greenwich, com uma flor acorrentada no bolso do colete.)

4. tremia-lhe a garganta com a vibração do comboio. chegou a casa alarmado com a explosão do próprio corpo que enfrentara no dia em que foi às sortes.
e no domingo, com as gargalhadas à volta, bebeu o vinho que lhe tingia as despedidas.
sentiu na pele a farda de caqui, o peso da mauser, o despropósito das botas.

5. tornou-se igual à cidade que viera habitar. tinha dentro de si espaços novos e rectilíneos, bairros com casas todas iguais, habitações fechadas em pátios, zonas de utilização pública.
e pedaços degradados, ruínas de lojas cadentes, à espera de trespasse ou liquidação total.

6. às seis horas, arrumava os papéis da secretária, cobria a máquina de escrever com uma capa de pergamóide e saía entre até-amanhãs, sem contabilizar as beatas num cinzeiro esmaltado.
quando chegava à rua, olhava uns plátanos, sobranceiramente, e distraía-se no recorte das folhas – memória de uma infância arborizada.


antónio ferra

1. a 3. in 'estação suspensa', europress, 2009;
4. a 6. in 'bio grafia', europress, 2010

[via blog 'bibliotecário de babel' - obrigado, josé mário silva, por mais esta descoberta]

28 dezembro 2010


na década de sessenta, mais de vinte anos passados, desde o final da segunda guerra mundial, e em concreto da guerra do pacífico, foram encontrados alguns soldados japoneses perdidos, totalmente isolados do mundo em ilhotas inóspitas, vivendo ainda como se o imperial japão estivesse em plena guerra, dispostos a lutar por um país e por uma ideia aniquilados de forma brutal, por criminosas bombas atómicas, muitos anos antes.

homens sózinhos, com uma fé inquebrável, que lutavam por um ideal - justo ou simplesmente insano, ainda assim um ideal.

quando encontro homens assim, reconheço-me. tantos anos passados, tantas vidas vividas, tantas derrotas que aniquilariam impérios inteiros, e ainda resta alguma dignidade, alguma honra, alguma fé. como se por entre um uniforme disforme, sujo, rasgado, maculado, brilhassem ainda as insígnias do jovem e galante cadete que um dia fui.

"ah, homem - mesmo na sarjeta, sempre a olhar as estrelas!" - disse um dia oscar wilde.

com uma das canções mais tocantes do mais tocante disco escutado em toda a década - micah p. hinson and the gospel of progress -, confesso que não sei que mais dizer.

o príncipe abdica e parte rumo ao deserto - dele dizem ser louco, mas ele sente-se lucidamente desperto.
os teus lábios


os teus lábios:
tanto melhores
quanto mais imaginados.
ou seja:
vivos, mas de outra maneira,
míticos e eternizados.
notas de prova à lareira:
cereja com ligeiros tons cítricos,
chocolate e alfarroba,
especiarias e flor de laranjeira.
ou de como na imaginação louca eles
- e tu neles, bem vês -
são bons de qualquer maneira.

ufa, menina.
para quem (quase) não existe neste mundo,
dás cá uma trabalheira..

27 dezembro 2010


(.)
true wolf philosophy,
which states very clearly
that every bluff must
promote good. which means
you eat what you’ve fooled:
all of little red riding,
from her shoes to her hood.

'em cada homem uma centelha divina', já não sei quem disse isto, mas isto vale por si, tenha sido dito pela dona maria do terceiro esquerdo ou pelo sr. joaquim que me corta milimetricamente os bifes que quase não como. isso. isso e aqueloutra expressão que me vem à cebeça e que nos diz a todos (sim, a ti também) que 'cada dia que finda é uma perda irreparável'. que querem, sonhos de natal encharcados em óleo, à mistura com exaustivos balanços do ano, podem resultar nisto. saltamos do canto lírico para o mais desvairado free jazz, de big combos lisboetas e improváveis, de barrocas e majestosas obras de hip hop para o augie march de saul bellow - somos compulsivos na elaboração de notas mentais sobre o que não podemos perder de tudo aquilo que já perdemos. somos assim e, no fundo, gostamos. isso. isso e livros, um disparate de livros lidos, um disparate de livros por ler e que queremos ler, um disparate ainda maior de livros que não queremos ler e de vidas que não queremos viver. free flow, alguém falou em free flow? ora, portanto, é natal. ou melhor, é, apesar de tudo e apesar de tanto, Natal. não fomos ver os concertos de dia 25 - e prometiam. não fomos ver nada, este ano, optámos pela mostly home based therapy - ou quase. isto é o quê, este textinho ridículo? palavras, palavras, parole, parole, como na italiana canção. entretanto, estão quase a acabar os jantares e almoços de natal, essa empreitada própria da saison, como alguma fruta. cada vez menos, uma e outra, graças a estufas e às redes sociais - cada um que faça o emparelhamento que mais lhe convier. voltamos então a nova iorque, e à milão da alta burguesia industrial, tão bem captada pele lente do rapaz que filmou 'eu sou o amor', um dos filmes do meu ano. isso. isso e escrever, ser diletante, ser dilerante. dilacerante - não, agora não. listas. tanto por ver. teatro. performance. dança. música clássica historicamente informada. música clássica historicamente desinformada. livros de poesia. livros de ficção. ensaios. livros de não-ficção de mil e um géneros. jazz. discos pop-rock internacionais. discos do ano nacionais. concertos ao vivo. ópera e canto lírico. o que não vimos, o que não lemos, o que não soubemos. o que não vivemos. o beijo roubado às duas da madrugada que não aconteceu. a calma clarividente que não ocorreu. a coragem de avançar que não sucedeu. as noites namorando os teus olhos que não caíram - ou que não chegaram a amanhecer, quanto mais a amadurecer. e tudo isto e o seu contrário - que é o que a vida tem de melhor. porque foi muito, foi tanto. afinal, em 365 dias, eventualmente mais um, houve lugar para o risco e o riso, o dislate e o disparate, a ternura e a tontura, a comoção e a confusão, o sonho e o sono. sim, claro, aqui entrariam antigamente as saudades. mas agora não entram mais. antes uma aguardente de medronho do que um flash retrospectivo medonho; antes um licor imperial do que um descarrilamento interior infernal; antes um subtil sabor do que um tresloucado rubor. mas voltamos sempre às listas, aos balanços, aos ranços da memória, às partidas da história. e os vencedores do ano são: os teus lábios. tanto melhores quanto apenas imaginados. ou seja: vivos, de outra maneira. eternizados. míticos. cereja com ligeiros tons cítricos, chocolate e alfarroba, especiarias e laranjeira - ou de como na imaginação louca eles - e tu neles - são bons de qualquer maneira. ufa, menina. para quem não existe neste mundo, dás-me uma trabalheira!

26 dezembro 2010


há dias, mais que menos,
em que uma canção solar
embalando esse teu olhar
é tudo o que deveras temos

e muito mais porventura
do que aquilo que merecemos.

25 dezembro 2010


"o acto de criar precisa de uma força dinâmica, e que força é mais potente do que o amor?"

igor stravinsky
in loving memory of

avó álvaro
avó teresa
avó antónio
tia alzira

23 dezembro 2010

'the quiet man' é um filme de john ford

deixem passar o homem tranquilo, porque ele gosta muito de viver. e nós como ele.

no meio da azáfama das compras de natal, num dos centros comerciais da cidade, reparei pelo canto do olho que, numa livraria, um casal se beijava enquanto sorria, rodeados, ele e ela, por muitos livros.

ele é um jornalista e escritor que talvez vocês conheçam - os mais atentos a estas coisas, decerto.

este homem, que tem um nome vulgar (e que, apenas por pudor e respeito, não revelarei) é um grande escritor, um artíficie de ideias, um magnífico escultor de palavras.

bissextamente, cruzo-me com uma sua crónica dominical, num dos nossos jornais. utiliza sempre um estilo muito pessoal, como que desdobrando palavras comuns, encontrando nelas semânticas escondidas, sempre ao serviço de ângulos inusitados, de ideias livres, de associações que nos fazem estremecer - textos cintilantes. acabamos rendidos e, não raro, comovidos. comovidos - entendem?

este homem teve um grande amor na sua vida. ela era uma mulher, como ele, razoavelmente conhecida. quando morreu, na sua meia-idade, os testemunhos de amigos do casal sobre o amor deles deixavam-nos à beira das lágrimas - entendem?

ela morreu, de uma doença má. ele sobreviveu e escreveu sobre ela e essa sua descida às trevas coisas simples que nos tocavam fundo. fundo - entendem?

o tempo passou. ontem, dei por mim a olhar para este homem que beijava uma mulher. e sorriam ambos, dentro de uma loja cheia de livros, indiferentes a quem estava à volta, como verdadeiramente todas as pessoas deveriam sorrir quando têm a sorte - eu disse a sorte, entendem? - de ter alguém que os beija daquela maneira e com aquele sorriso, literalmente, estampado nos lábios.

sim, a felicidade é possível. e, sim, não atraiçoamos ninguém, nem os nossos grandes amores, quando nos deixamos ser felizes, outra vez.

não lhe disse nada, mais uma vez por pudor e respeito. fiquei a olhá-los, enquanto folheava uns livros e deambulava pela livraria de ocasião.

no som ambiente do centro comercial, os senhores da canção abaixo, cantavam 'fairytale of new york', exactamente, e eu senti-me um rapaz feliz e preparado para a vida e preparado para tudo e preparado para dizer, outra vez:

e se eu gostasse muito de viver?

(entendem?)

ou de como um homem, mesmo quando em processo de auto-mutilação - probably drunk, probably stoned, definitely fucked up - pode ser ainda e sobretudo um grito em prol de um mundo melhor, mais belo, mais simples.

em 1987, ainda estávamos todos vivos - eu, a kirsty maccoll, os pogues, o alucinado shane macgowan.

na irlanda, onde muita gente morreu de fome, não há assim tanto tempo atrás, (repito: onde muita gente morreu de fome), todos sabem que só uma mistura improvável de transcendência e de vitalidade-aqui-e-agora nos pode salvar d(n)este mundo.

hoje, ofereço-vos a memória daquela que pode muito bem ser a minha canção de Natal preferida de todos os tempos.

a todos vós, aí desse lado, os meus votos de um Natal muito feliz, vindos do fundo do meu coração sem fundo.

22 dezembro 2010



..some kind of record.

na sociedade mediática e voyeurista em que incontornavelmente vivemos, temos uma relação de atracção e repulsa simultânea por aquela pequena tribo de artistas radicais que fazem da sua própria vida matéria para a sua arte, como se entre uma (vida) e outra (arte) existisse uma espécie de osmose. o que é biografia e o que é criação ficcional, ficcionada? à maneira de alguns iconoclastas célebres, o que é performance calculada e como se distingue do que é a vivência espontânea? criatura e criador alimentam-se mutuamente, numa relação nem sempre clara, como se uma e outra fossem combustível e fósforo - e vice-versa. a vida como suprema ficção. e o acto criativo como statement existencial.

parafraseando o grande kurt vonnegut, bem podemos também nós dizer, a propósito do flores de inverno, que 'tudo isto aconteceu. mais ou menos'.

21 dezembro 2010


a década

os 10 primeiros anos 2000 - bem sei que deveriam acabar em 31.12 de 2009, mas, que querem, exerço o meu direito à heterodoxia iconoclasta - foram uma era. e quando falamos de uma era, a expressão que ocorre é que 'já era'. a era. e nós nela, claro está.

a década das (des)ilusões, bem se poderia dizer.

como o país, como o meu clube, como tantas outras coisas de que tanto falamos, foram, suspeito bem, anos perdidos.

valeu a pena? valeu a pena, pois. viver é isso, aceitar as estações, mas sem medo da nossa própria exposição às inclemências, e às delícias, dessas mesmas estações.

se escrevesse em Inglês, diria que a década foi a década dos "bitter mixed feelings". como escrevo em Português, direi que foi simplesmente a década do encanto e do desencanto, ao mesmo tempo - o que, bem vistas as coisas, pode ser sintetizado naquela quintessencial palavrinha acima referida: (des)ilusão(ões).

como a insanidade, disse alguém, é continuar a fazer as coisas da mesma forma e esperar um resultado diferente (ceteris paribus, claro está..), então a conclusão possível é a de que é preciso ousar fazer as coisas de forma diferente.

também se podem acrescentar variações várias aqui - por exemplo, dizer que, à maneira de whitman, "é possível sobreviver a este mundo, se usarmos de sabedoria e simplicidade". o problema é que aquele mundo, o mundo definido pelo tempo e o espaço habitados por walt whitman, já não é este mundo. mas vale como ideia, como princípio.

a década da pele, a década da poesia, a década da vertigem, a década do sucesso e do seu reverso, a década da renovação dos e nos amigos, a década do amadurecimento, a década em que todos chegámos a adultos, num mundo de crianças e de jovens eternamente jovens, o mundo das redes sociais, o mundo do terrorismo como ameaça global - e individual -, o mundo da tecnologia, o mundo da velocidade, o mundo da transitoriedade, o mundo das sequências pacíficas de perdas como modo de vida contemporâneo, o mundo da fruição imediata e imediatista, o mundo sem perspectiva para lá desta noite. o mundo, nesta década. este mundo. o nosso mundo.

a década da poesia. a década da violência vintage. a década amarga.

que seja uma outra coisa agora, a que se agora inicia.

one line punch poem

em 1986, ainda estávamos vivos.

20 dezembro 2010

Um Conto de Inverno

(desta vez, dedicado à Ana Teresa Pereira. por entender.)

foi assim:
era inverno..

havia já sete noites que sonhava com elas. não de forma caótica, mas, pelo contrário, de forma marcialmente organizada, como que obedecendo a um ritmo exterior, fulgurante - naquele sentido mais incomum da palavra. sonhava com elas, com método, régua e esquadro, uma por dia (melhor dizendo, uma por noite). em cada noite, assim que adormecia (era o que lhe parecia), logo embarcava num carrossel tingido pelas cores próprias do que é vivo - uma espécie de revisitação dos lugares interiores, romaria estival pelos verões antigos do seu coração. uma, depois outra, depois mais uma, depois mais outra. cada uma delas ocupava uma noite e, como imaginara no tempos antigos em que aladino e sandokan eram ainda sinónimos de maravilhas por vir, havia uma cadência, uma ideia de ordem, uma espécie de mecanismo que, uma vez interiorizado, encontrava o seu próprio sentido. era assim que elas apareciam, com uma regularidade infalível. acordava de manhãzinha invariavalmente exausto, extenuado. era como fazer amor numa espécie de plano interior - obrigava a muito mais coisas do que a forma mais pedestre de fazer amor. todos os dias, melhor todas as noites, uma princesa ocupava o seu espaço, sem pedir licença, usando as suas credenciais, aquele salvo-conduto para a vida que damos a quem entregamos (ou entregámos um dia) o coração. sete eram elas para sete noites. ao contrário do plot bíblico, não havia domingo, o que obrigava a um esforço desumano, sobre-humano, infra-humano - talvez qualquer coisa ainda por inventar mas desesperadamente humana. a cada uma, um cenário interior diferente, obrigando, na noite seguinte, a mudar o cenário, o enquadramento, os actores secundários, a iluminação, todo o set e todo o mood. mas não havia equipa, nunca havia equipa alguma. neste métier 'estamos sozinhos com as coisas que amamos'. e com as coisas que amámos. com ambas. assim passavam os dias, assim se passavam as noites, sempre sempre sempre com um frenesim subterrâneo, como aquele mar a que os marinheiros experimentados chamam 'mar de azeite': à superfície uma calma exasperante, mas, sob essa fina camada de falsa serenidade, correntes subaquáticas letais. calma de morte, por assim dizer. um corrupio, um frenesim, como um dia um político de águas profundas (lá está..) crismou a actividade quotidiana do seu transitório líder. lembrava-se de ter lido isto nos jornais e, ao pensar nisso, ocorria-lhe o facto de os jornais poderem ser oráculos alternativos (ideia desvairada, ao mesmo tempo, como todas as que fazem estremecer).

o livro não era mau, pensou ela. um bocadinho teen talvez, nos seus arroubos emocionais. um estilo algo gongórico (como gostava-abominava esta palavra) a polvilhar a intriga, algum psicologismo exacerbado. mais secura e mão firme, um chicote que amestrasse os fantasmas do escriba, meia-dúzia de cortes cirúrgicos e talvez este livrito fosse não só uma coisa que lhe agradava mas também uma coisa que agradasse aos outros. estava farta de coisas que só a ela agradavam. quer dizer, admitia que tinha uma certa graça ver o mundo do cimo de uma árvore, mas, que diacho, descer cá baixo, roçar as calças pelos tojos e urtigas, beber o vinho dos lírios, sujar as mãos de carvão, dar pulos no ar, trincar maçãs, todas essas coisas tinham o seu encanto. a beleza devastadora do trivial, quando vista de cima, é igual ao seu inverso - como tornar objectiva a relação entre uma coisa e outra, como qualificar uma como melhor ou pior, como estabelecer comparações entre o que se não conhece, o que se não experimenta, o que se não vive? por isso mesmo sempre costumava embirrar com sujeitos com opiniões fortes e convicções pretensamente inabaláveis. olhava para eles com uma certa pena, que, vista de fora, resvalava logo para uma atribuída (mas injusta) arrogância. diziam-lhe que era por ser uma mulher bonita, com aquelas feições esculpidas e um perfil clássico (mais um pouco e a palavra era cinematográfico. ou menos um pouco). a altivez não vinha daí, da sua pose exterior. a altivez não existia, mas, para saber isso, era preciso conhecê-la. e para a conhecer era preciso não ter medo dela. ou não a desejar como ela costumava ser desejável - um troféu inacessível tornado acessível por razões que ninguém procurava exactamente saber.

quando o carro parou, aquela luz azul-acinzentada própria de certos dias de inverno, quando o dia passa testemunho à noite, tomou o seu papel principal. como nos filmes dos quais se diz: 'a natureza ou a paisagem é actor principal'. debaixo de um candeeiro de lata, a imitar pobremente mas com um resquício de dignidade candeeiros de outros tempos, ela era agora uma imagem de hopper (mas de um hopper alternativo, um hopper do basfond - sorria para si própria com estes trocadilhos de linguagem). uma mulher, ainda bonita, recortada contra a meia-luz, envolta na névoa, gabardine garbosa, um periclitante equilíbrio entre o guarda-chuva, o livrinho na não, o cigarro displicentemente arrumado por entre os lábios. o livro de contos que ocupava o seu mundo tinha uma capa negra e, a custo, deixava ler qualquer coisa como 'novos contos de inverno'. ou talvez 'nove contos de inverno'. num bolso lateral da gabardine, espreitava outro livro. parecia ser algo como 'têmporas de cinza' e, desta feita, virtude da mancha gráfica, era possível descortinar o nome do seu autor: 'a. m. cabral'. parecia ser assim, pelo menos.

quando parou o carro, ele sabia o que fazia. e sabia que sabia. uma mulher assim, com aqueles livros - que ainda não sabia, quando tomou a decisão de abrandar e parar, serem exactamente aqueles - não se encontra todos os dias. uma mulher que cheirava a inverno e que, iria perceber não muito mais tarde, sabia a inverno. sempre fora assim, desde miúdo: antes de ter as experiências físicas, terrestres, já o resultado estava nele gravado. seguia cegamente esta espécie de instinto que lhe fazia gostar (ou não) das outras pessoas, sem saber porquê. saber sabia, não sabia era explicar isso, por isso, no mundo normal, era como se não soubesse. no caso das mulheres, era ainda mais fino este seu sétimo sentido. não gostava de falar disso, por pudor. porque o cheiro e o sabor de uma mulher não é articulável. pensava na improbabilidade do que acabara de pensar e sentir e fazer, em micro-segundos; ainda mais, nos pensamentos que o assaltavam durante a curta viagem de carro que acabara de ser interrompida. andava a sonhar com as suas ex-namoradas, com as mulheres da sua vida, uma por dia. ou melhor, pensava para consigo, uma por noite. como se desesperadamente participasse num concurso cujo prémio máximo era saber enfim qual era a certa. ou, e não podia deixar de afastar esta hipótese, como se, de uma maneira oblíqua, se estivesse a despedir. talvez perturbado por este pensamento, a mulher sob o candeeiro, à beira da estrada naquele bairro da cidade sem grande movimento àquela exacta hora, talvez aquela mulher que, mesmo ao longe, se via estar a ler havia captado a sua atenção. naquela zona, ele sabia-o perfeitamente, as prostitutas invadem duas ou três ruas curiosamente recatadas. essa possibilidade bailava nele próprio em paralelo com tudo o resto. mas, talvez mesmo por isso, pensou na beleza de se apaixonar para sempre por uma prostituta que lia contos de inverno. talvez assim os sonhos nocturnos terminassem, talvez assim as suas antigas mulheres descansassem e o deixassem descansar, talvez assim, nessa negação sublime da estatística e do determinismo, ele sentisse coisas novas. ou, simplesmente, se sentisse enfim ele próprio.

o carro arrancou. um desportivo dos anos 50. cromado e vermelho sangue nos sítios certos. ele acendeu-lhe o cigarro, apesar do vento. reparou que ela lia o seu livro, aquele que se esforçava por dizer: isto sou eu, isto sou só eu. e quanto mais dizia, mais os leitores e os críticos e os editores e os tradutores e os revisores e essa malta toda diziam: bem pensado! uma personagem que é o autor, nada mais do que o autor, em exercício de exposição sem rede. bem inventado, sim senhora. quanto mais lhes damos a verdade, maior a lenda que criam à nossa volta. como se isso fosse impossível, como se escrever o que somos fosse um exercício inverosímil, um acto impossível, uma boutade manifestamente artificiosa.

- esperei por ti toda a minha vida.foram estas as primeiras palavras que ela me dirigiu. e foram estas as palavras que mudaram a minha vida. vou contar-vos uma história. a história dela. a minha história também. é uma história de inverno, com uma mulher-fatal, cigarros renitentes, descapotáveis em sangue-vivo, livros a sair dos bolsos. esta história obviamente nunca aconteceu. tal como eu não existo, sou apenas um personagem à solta, que se escapou da algibeira do meu criador. em cada ponta dos meus braços um coração que escreve. e a noção exacta de que nunca acreditarão na história que vos vou contar.

foi assim:
era inverno..
the 2010 literary supplement - os meus livros do ano

ficção:
inverness, ana teresa pereira
franny e zooey, j.d. salinger
pergunta ao pó, john fante
os objectos chamam-nos, juan josé millás
um repentino pensamento libertador, kjell askildsen
correios, charles bukowski

poesia:
o mundo não acaba no frio dos teus ossos, rosa alice branco
o pajem formidável dos indícios, alberto de lacerda
riscava a palavra dor no quadro negro, luis quintais
erros individuais, josé miguel silva
mulher ao mar, margarida vale de gato
novas memórias de ansiães, a.m. pires cabral
disse e repito, antónio manuel couto viana
restos de quase nada e outras poesias, antónio manuel couto viana
a última porta (colectânea selectiva), manuel de freitas
santo súbito, miguel-manso
matriohskas, carlos contreras elvira
lo más importante es saber atravesar el fuego, charles bukowski
arder en el agua ahogar-se en en fuego, charles bukowski
um circo no nevoeiro, renata correia botelho

ensaio:
ó, nuno ramos
ágape, agonia, william gadis
aula de poesia, eduardo pitta
joão césar monteiro, as folhas da cinemateca

literatura de viagem:
morte na pérsia, annemarie schwarzenbach
paris, julien green
o japão é um lugar estranho, peter carey
disse-me um adivinho, tiziano terzani

indefinido:
des histoires vraies, sophie calle

memórias / autobiografia:
navegação ponto por ponto, gore vidal

técnico:
como recuperar empresas em dificuldades ('turnaround' em portugal), rogério ferreira do ó

desenho:
diários de viagem - desenhos do quotidiano, 35 autores contemporâneos (organização de eduardo salaviza)


..e os PRÉMIOS 2010 vão para..

título do ano
riscava a palavra dor no quadro negro, de luis quintais

ovni(s) literários do ano
ó, de nuno ramos
des histoires vraies, de sophie calle

desconforto(s) do ano
morte na pérsia, de annemaria schwarzenbach
as recensões críticas de meridiano de sangue, de cormac mccarthy (quanto mais o livro..)

personagem de ficção 'bigger than life' do ano
arturo bandini, brilhante, comovente, inesquecível criação (e alter-ego) de john fante

prémio 'perfect-as-perfect-can-be' do ano
o conto franny, de j.d. salinger, umas dezenas de páginas cujo grau de excelência pertence ao domínio do maravilhoso e do sublime..

o que não li e que gostaria de ter lido
pão com fiambre, de charles bukowski
a beleza e a tristeza, de yasunary kawabata
depois da chuva, de william trevor
uma antologia de poesia chinesa, na tradução de gil de carvalho
as aventuras de augie march, de saul bellow


e, finalmente, os GRANDES PRÉMIOS do meu 2010 literário..

editora do ano
ahab edições (porto)

livro(s) do ano (ex-aequo)
pergunta ao pó, de john fante (ahab)
disse-me um adivinho, de tiziano terzani (tinta da china)
ó, de nuno ramos (cotovia)


lembras-te de teres ido ver este filme e de hesitares e hesitares e hesitares em me convidar? lembras-te de, no final do filme, ter ido ter contigo, de surpresa, e de teres ficado com aqueles 'mixed feelings' estampados no rosto (estou contente e não estou contente, por estares aqui)? eu lembro-me. e lembro-me, também, de nessa ou noutra noite próxima, me teres dito que passaste o filme a pensar que 'o bill murray' (talvez um misto da fisicalidade inábil e dos silêncios intensos e expressivos do bill murray com os meandros da personagem por ele interpretada - mas é uma mera suposição minha..) se 'parece contigo, daqui a uns anos'. que 'era um elogio', acrescentaste. não sei que pensar, sabes? mesmo hoje, a uma distância de segurança já muito razoável (como se houvesse razoabilidade que valesse nestes velórios que se prolongam por anos e anos e anos..), nunca arrisquei ver o filme. porquê? - perguntas. respondo-te: por medo. sim, por medo. de mim, do futuro. das broken flowers.

19 dezembro 2010


(..)
mas não era eu
porque o ontem já foi
e o hoje é apenas ketchup
e galgos de corrida
e doença
e mulheres algumas mulheres
momentaneamente tão bonitas
como qualquer catedral
(..)


charles bukowski

18 dezembro 2010



yes, my ruthless heart is still here.


eu não quero viver com a premissa céptica e cínica bem interiorizada: 'trust no one'. eu não quero as minhas veias envenenadas por esse amargo travo que a desconfiança sistémica e sistemática traz. não quero, por opção. claro que me tens alertado para o outro lado da moeda, para o preço a pagar. quando me esqueço, tu lembras-me. lembras-me, com crueldade (como fazem os amigos em estado de desespero - que as muito boas intenções levam por vezes à utilização de técnicas de muito baixo calibre..), recuperando, uma e outra vez, aquele velho exercício que é o desenho caótico da minha 'personal events timeline'. sabes que é suficiente para fazer lázaro regressar de bom grado às catacumbas. outras tantas vezes, socorres-te daquela modinha de sempre e segredas-me ao ouvido: 'are you ready to be heartbroken?'. é desleal. mas eu sei que não, que, no fundo, é uma apenas uma forma operativa, eficaz, de me mostrares onde conduzem os caminhos que escolhi. sim, tens razão, é um preço alto, quase obsceno. mas, em contrapartida, sei que também sabes que não consigo usar como lema na lapela esse tão moderno 'trust no one'. porque isso significaria não acreditar em nada, em ninguém. não acredito em grandes ordenamentos abstractos, nem em metafísicas, nem em epifanias. e não acredito em mim. por isso, o que me resta são os outros. essas catedrais imperfeitas, mas tão belas como as mais belas - adaptando as palavras pungentes e perfeitas do muito nosso tio charlie. 'trust no one'? 'trust everyone, trust anyone, trust each one - as long as you know Shakespeare inside out and, of course, providing that you keep well in mind that you will be broken many times. broken but not beaten'.

17 dezembro 2010

Deus criou muitos poetas, ao que parece. mas, nem por isso, muita poesia.
prioridades.

conheci uma miúda linda-como-linda-podia-ser que dava nomes de filósofos aos seus gatos. deitava-se com eles a rondarem a sua cama - supônho eu que nunca consegui dela, da cama entenda-se, estar mais próximo do que a 3 metros (e Deus sabe como tentei), num permanente e apropriadamente felino jogo de sedução. às vezes, durante a noite, os gatos-filósofos aproximavam-se dela e da sua cama e, subrepticiamente, tomavam conta de uma e de outra. infiltravam-se nos sonhos daquela miúda e tomavam formas impossíveis: homens com cabeça de gato; cães que miavam; todo um circo de 'freaks'. a miúda assustava-se não raro. mas, ao acordar, não se lembrava de nada e encontrava algum aconchego nos felinos que por alí dormitavam. filósofo escondido com gato de fora é a expressão que me ficou e que para sempre, desconfio, me deixará alerta. é preciso ter cuidado com os gatos, esses seres cheios de graciosidade e de 'souplesse'. é preciso ter cuidado com os filósofos, esses seres que se infiltram no nosso quotidiano e que nos fazem perguntas mázinhas, a meio da noite. é preciso ter cuidado com as miúdas que amam os seus gatos e os seus filósofos, acima de tantas outras coisas. e, acima de tudo, é preciso ter cuidado com as camas dessas miúdas. mesmo a 3 metros, um tipo está sempre perdido.

16 dezembro 2010


dizias que 'o rosto atrai, mas é o corpo que prende'. dizias mal, rapaz. o rosto atrai e prende e devasta e desgraça.

tomemos como exemplo académico (assim nos defendemos do ridículo) esta 'chica'. ao longo dos anos, habituaste-te a vê-la como presença secundária - uma flor incrustada na paisagem -, algo a que nos habituamos, que achamos normal reencontrar, como aquelas amigas que revemos num qualquer passeio matinal de domingo, após uns meses sem nos termos visto. uma presença agradável, motivo para sorrisos sinceros, mas não para sentimentos intensos - a normalidade pode também ser isto, bem o sabemos. há, no entanto, um dia em que qualquer coisa fica em nós, como uma semente que, invisivelmente, germina. lembras-te aqui daquela tua recorrente expressão: 'quando as coisas mudaram, já tudo tinha mudado'. é mais ou menos isso: os processos interiores são feitos de subtilezas. e têm essa característica maravilhosa que é surpreenderem. às vezes, com doçura; outras tantas, de modo fulminante. a violência pode ser doce e fulminante, atenta bem. mas, dizia-te, o segredo são os rostos. os rostos que te perseguem noite dentro, quando as horas são séculos intermináveis. os rostos das pequenas atrás do balcões de circunstância. o sorriso metafórico das donzelas. o riso aberto que tudo esmaga, vórtice centrípeto que tudo absorve em seu redor. as curvas do rosto. a forma dos lábios. os olhos, os olhos, os olhos. como na canção em que o segredo está todo, e sempre são quase sete minutos de canção, naquelas palavas finais: 'os olhos de avelã'. dizia-te: atentamos no caso daquela 'chica' a que nunca deste grande valor. agora, de súbito, num filmezinho que não é uma obra-prima ela aparece-te. e o que recordas dela não é o corpo - o pudor do olhar está sempre em ti -, não é o modo algo histriónico como fala, não é aquele pózinho de 'star' que ela arrasta. não. o que te envolve, o que ficou a germinar bem dentro de ti, é aquele rosto. o rosto e aquele olhar. abismo de fragilidade e poço sem fundo, beleza inarticulável. o rosto e o olhar. e eu, sentado, numa fila discreta do cinema, embasbacado e pensando:

'como seria amar-te?'.

pensando melhor: pergunta retórica. às vezes, sabes, são as melhores. as mais sinceras e mais justas. as mais necessárias, também. as únicas que fazem sonhar.

porta san pancrazio (1989)

as abelhas não voaram para longe, nem um cavaleiro partiu
a galope. no bar gianicolo, velhos companheiros relembram os dias
da infância, e o cubo de gelo derrete­‑se, arrefecendo o frágil motor
grato por beber duas vezes a mesma água.

oito anos passaram. guerras rebentaram e esfumaram­‑se,
famílias desfizeram­‑se, a escumalha desnudou os dentes envelhecidos;
aviões caíram do céu e o rádio murmurou «Jesus».
os lençóis ainda podem ser lavados, mas as rugas da pele

não se rendem à palma mais suave. o sol sobre uma roma
no inverno empurra o fumo púrpura com raios desnudos. a cinza
tresanda a folhas queimadas, e a fonte brilha como uma medalha
vacilante pendurada num canhão que ao meio dia dispara a sua salva.

a pedra é usada para manter cativa a memória.
contudo é mais difícil aparecer do que desaparecer numa perspectiva
fugindo da cidade pelos anos fora e para além
em perseguição do puro tempo, desprovido de amor e de futuro.

a vida sem nós, querida, é pensável. ela existe como
abelhas, cavaleiros, bares, habitués, colunas, vistas,
e nuvens sobre este campo de batalha cujas estátuas eternas
triunfam, com o seu corpo, sobre a possibilidade de te tocar.

joseph brodsky
(tradução de sandra costa)

15 dezembro 2010


o que se foi

o que se foi se foi.
se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.

se o que se foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.

portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.

então por que me faz
o coração bater tão forte?

ferreira gullar

in 'em alguma parte alguma'
editora ulisseia

conta-se, nos mais intelectuais 'mentideros' do cinema europeu, que o polaco krzystof kiewslowski, esse assombroso cineasta moral, cogitava realizar uma tetralogia, iniciada com os filmes azul / branco / vermelho. quando a morte o surpreendeu, andaria às voltas com o argumento do quarto e último filme da série. alguns dos mais próximos colaboradores, lembram-se, e coincidem no testemunho, de que o cineasta procurava encontrar o melhor argumento que servisse o seu intuito de encerrar o ciclo da única forma que achava possível. do filme que nunca foi iniciado ficou apenas esta vaga memória e um título rabiscado no caderno de ideias que sempre acompanhava kiewslowski: 'preto'. preto, evidentemente.

14 dezembro 2010




sublime e desamparado ensaio sobre a fragilidade e a identidade.
um dos discos do ano para o 'flores de inverno'.
5 discos do meu 2010

The National, High Violet

Perfume Genius, Learning

Hot Chip, One Life Stand

Darkstar, North

B Fachada, B Fachada*


20 canções do meu 2010

How to Dress Well, Ready for the World

Eels, Oh So Lovely

Gil Scott-Heron, On Coming From a Broken Home

Neil Young, Love and War

Wolf Parade, What Did My Lover Say? (It Always Had To Go This Way)

The Black Keys, Never Gonna Give You Up

LCD Soundsystem, I Can Change

Beach House, Walk in the Park

Sufjan Stevens, I Walked

Twin Shadow, Slow

MGMT, Congratulations

Aloe Blacc, Femme Fatale

Avi Buffalo, What's In It For?

Márcia, Pudera Eu

The Drums, Forever and Ever Amen

Lola Jesus, Sea Talk

Mayer Hawthorne, Just Ain't Gonna Work Out*

Girls, Hellhole Ratrace*

El Perro del Mar, Change of Heart*

Fionna Apple, Why Try to Change Me Now*

* em bom rigor, discos / canções de finais de 2009, mas só escutadas em 2010
10+1 Filmes do meu 2010

Estrela Cintilante, de Jane Campion

(ultra-romantismo doentio ou beleza transcendente? - filmado de forma bela e pungente)

Greenberg, Noah Baumbach

(misogenia radical ou aguçado instinto de defesa? - filmado com secura e rugosidade)

Tudo Pode Dar Certo, Woody Allen

(idem, idem, aspas aspas - mas aqui filmado com verve e graça)

Polícia Sem Lei, Werner Herzog

(a descida aos infernos internos como caminho de redenção - filmado com viscosidade)

O Escritor Fantasma, Roman Polanski

(os tempos que correm ou de como já nem tem que existir um desfecho moral para nada - filmado com classe e de forma clássica)

O Laço Branco, Michael Haneke

(o micro é o macro e todos os fundamentalismos são essencialmente trágicos - filmado num preto e branco anacrónico e glacial)

Nas Nuvens, Jason Reitman

(um feel good movie about feeling not good at all - e filmado exactamente assim)

Um Homem Singular, Tom Ford

(a terrível solidão e a incapacidade da estética responder a desafios existenciais - filmado com perfeito e impossível bom gosto)

As Ervas Daninhas, Alain Resnais

(a loucura como um grão no mecanismo do quotidiano, uma pitada de imaginação e despertamos o feroz instinto da liberdade - filmado com uma vitalidade luminosa, terna e ligeiramente desbragada)

Eu Sou o Amor, Luca Guadagnino

('a medida do amor é o amor desmedido' - filmado como se antonioni e visconti tivessem nascido na Itália de hoje e realizado o filme a meias)

+

Lola, Brilllante Mendoza

(o amor de mãe só é ultrapassado pelo amor de avó, essa espécie de superlativa dupla mãe - filmado como urgência e proximidade e um sopro qualquer)
aqui estamos, são 23h de sábado, encharcados em jornais de sexta e semanários. adivinhamos que lá fora há outra cidade, a cidade que um dia foi nossa - mas isso foi há tanto tempo. dizia-te, tal como acontece com as canções, os livros, todas as belas artes, que somos forçados a deixar de frequentar, com a morte do amor, há uma alteração geográfica - física, podes dizer - que acontece no espaço que habitamos. todos o sabemos, de quando em vez. sim, assim é, nada podemos verdadeiramente fazer quanto a isso. esquece os amigos, longe, nas suas vidas. esquece as conquistas antigas, esses escombros talhados a cinzel na tua memória - quero dizer, na minha memória. nada de nada ajuda, farmacopeias incluídas. temos que refazer as coordenadas e saber abdicar com dignidade. ora abdicar é uma fina arte, se por acaso usássemos o inglês entre nós. esta cidade não é a cidade intensa, febril às vezes, alegre, solar e nocturna que conheci. o coração de sábado à noite, cantado pelo tom waits e decantado em carne viva naquele livrinho do manuel de freitas, pode ser cruel. mas, antes ou depois, chega o momento em que o ínclito príncipe abdica. eu abdiquei desta cidade. da cidade que já foi minha, tantas e tantas vezes. da cidade que perdi, outras tantas. é este também o jogo da vida, esta corda tensa que vamos manuseando como podemos, entre distensões curtas e o medo de que a tensão exagerada conduza a uma quebra. na corda, como na mão. como no coração. é sábado à noite, não saio de casa há 3 meses. descubro outras coisas, faço o luto da cidade e da memória e da alegria. da pele, do rosto cinematográfico, da pele. desculpa-me o desabafo. desculpa-me o embaraço. mas, como diz a outra senhora de que muito ambos gostamos: só não me desculpes a ternura.

13 dezembro 2010

lamento e exortação

que chegámos demasiado tarde ao leito
da vida para qualquer sonho de emancipação
revolucionária, percebemo-lo aos vinte anos;
que justiça é uma palavra em esperanto
e a lei o mero eixo onde gira o privilégio,
percebemo-lo depois, muito a contragosto.

resta-nos perder a última ilusão: a de que
haja ainda espaço, nesta feira popular
da mediocracia, para uma escrita que não
seja celebração do estúpido, estridente
carrossel do embuste, da grande roda
que nos entontece de riso (em voltinhas
de onde a alma sai torcida e sem emprego),
do túnel de horrores publicitários, da barraca
de tiro em que fazemos de patos; espaço,
enfim, para que dois dedos de beleza se
entrelacem, ou dois dedais de inteligência
se toquem num brinde ao farrapo da verdade.

qando percebermos também isto, amigos,
saberemos que a gloriosa era da literatura
ocidental chegou ao fim, derretida (como
aliás sugere o seu acrónimo) pelo aquecimento
da emoção global; que não viemos aqui
para tentar ressuscitar um moribundo
(como crêem os mais optimistas), mas sim
para animar um velório. carpideiras somos,
de violino ao ombro. o funeral está na rua.
se queremos brilhar ainda um pouco,
é agora ou nunca. afinemos as cordas,
as lágrimas, em dó maior. vamos a isto?


josé miguel silva
em 1953, douglas sirk, imigrado na américa, após a ascensão e queda do III reich, na sua pátria natal, deu uma entrevista a um pequeno jornal de artes do tenessee ('art inc.'). contava ele, mestre, para muitos incontestado, do melodrama, que, por esses dias, tinha em mãos um argumento imbatível, bem capaz, na sua opinião nada isenta, de mudar a história do 'scripting' americano (o que equivaleria, ontem como hoje, muito provavelmente a mudar a história mundial do guionismo para cinema, 'tout court'..). o jornalista-entrevistador não conseguiu arrancar a douglas sirk qualquer elemento adicional sobre o que estaria por detrás daquela revelação, deixada cair ao sabor do acaso ou meramente por descuidada displicência.

décadas depois, um sobrinho-neto de douglas sirk, ao remexer num velho sótão familiar, encontrou (parece uma cena de filme, o que tem a sua graça, convenhamos) um caderno manuscrito, assinado, logo na capa, pelo seu famoso tio realizador. com a curiosidade própria dos rapazes-sobrinhos-netos-de-uma-personalidade, ralph edward sirk, leu logo ali todo o 'script'. falava, em traços largos, de um mundo em que todos os seres humanos tinham por companhia uma máquina chamada 'the heart companion', espécie de cão-guia biónico, dotado de inteligência emocional artificial, capaz de, qual oráculo moderno, os ajudar a atravessar as tumultuosas tempestades omnipresentes em todas as relações humanas.

ralph espantou-se primeiramente com o que lhe parecerem ser óbvias incongruências, impossibilidades gritantes. o seu emérito tio-avô nunca havia escrito na vida o mais pequeno texto que se aproximasse dos géneros ficção científica, fantástico, histórias sobre utopias e distopias. por outro lado, o conceito de inteligência artificial não havia ainda sido inventado - seria dos robots? haveria robots, na época em que o seu tio-avô presumivelmente teria escrito aquelas páginas?

a exegese e a hermenêutica vieram então dar as suas doutas palavras. especialistas em douglas sirk, vindos da europa e do japão, debruçaram-se sobre a grafia, o estilo, o tom, o léxico, a semântica, os padrões, as mais subtis inflexões da escrita. dissecado o manuscrito, não havia dúvidas: era um genuníno 'script' assinado pelo homem dos melodramas. arriscaram-se dichotes como 'mera brincadeira entre filmes a sérios', 'esboço quase primário', 'ideias para desenvolvimento posterior', 'um momento de fraqueza', 'um pastiche metafórico'. voltaram assim descansados para as suas bibliotecas e escritórios, um pouco por todo o mundo. o cânone estava intacto.

douglas sirk, dietmar ainda em alemão, havia sido engenheiro de formação e, diziam os seus assistentes, tinha um raciocínio matemático aguçado. o 'script' que então escrevera era, afinal, um quase livro infantil, escrito para os seus dois filhos, com o mui nobre ojectivo de eles poderem 'crescer, acreditando no futuro'. pensou em escrever uma parábola sobre a doença e o milagre da cura universal, mas os seus genes calvinistas não o permitiram (isto, sabe-se porque o confessou, ainda em vida, muitos anos depois desses tempos de jovem pai..). tendo afastado a saúde enquanto tema e ficando por tocar o instável domínio da metafísica (difícil de abordar, mesmo para um ser dotado como sirk), restaram as relações humanas, em geral, e o amor romântico entres dois seres humanos, em particular. douglas sirk, como prova a sua obra cinematográfica, soube como poucos entretecer os planos metafísico e das ultra-complexas relações humanas, pelo que não admira terem sido exactamente estes os eixos avaliados para o 'script' de que temos vindo a falar, mesmo que destinado a ser lido por petizes.

como escrever sobre tema tão delicado e variado, ainda por cima numa óptica positiva e, como se não chegasse, para crianças (seres ainda tocados por uma certa capacidade de maravilhamento, a que alguns, tolamente, chamam ingenuidade)? a resposta chegou sob a forma do 'script' (que afinal não era bem um 'script'), encontrado tantos anos depois pelo seu sobrinho-neto ralph.

no topo da primeira página, em letra longilínea e sóbria, reinava majestosamente o título: 'the heart companion'.

03 dezembro 2010


'nothing lasts really', she says. 'not happpiness, not despair'.


este blog vai descansar uns dias.
para coisas urgentes e importantes: flores_de_inverno@hotmail.com
para outras coisas também..
até breve.






02 dezembro 2010


'na primeira noite que passei na rua, dormi à porta do cemitério, onde estava o meu pai (e agora a minha mãe). estava perdida, não sabia nada, dizia coisas terríveis - dizia ao meu pai para me levar para o pé dele, para acabar com isto, coisas assim..'

testemunho escutado ontem, na televisão, numa reportagem sobre os sem-abrigo, rtp1

'haverá em portugal cerca de 2000, 1800 sem-abrigo. por opção ou por circunstâncias da vida. que sejam 2000. faz-me confusão - então nós, neste país, não conseguimos sequer acabar com isto, com esta situação? faz-me impressão, percebe?'

testemunho ouvido no mesmo programa

uma certa forma de saudade. da inteligência fulgurante, viva e próxima.

01 dezembro 2010


as pessoas lutam por causas perdidas,
porque são as únicas pelas quais vale a pena lutar.

e sim as pessoas morrem por causas perdidas.
e sim as pessoas vivem ao morrerem por causas perdidas.

e pessoas que vivem ao morrerem
são pessoas vivas.

relembrando james stewart - our all time favourite actor -, numa famosa cena do não menos famoso filme 'mr. smith goes to washington', de frank capra (outro dos heróis do nosso muito pessoal panteão).

relembrando james stewart - o que é o mesmo que dizer: relembrando a mim próprio quem sou. para que não me esqueça nunca do 'ethos' que me mantém vivo e que me dá sentido.