16 dezembro 2010


dizias que 'o rosto atrai, mas é o corpo que prende'. dizias mal, rapaz. o rosto atrai e prende e devasta e desgraça.

tomemos como exemplo académico (assim nos defendemos do ridículo) esta 'chica'. ao longo dos anos, habituaste-te a vê-la como presença secundária - uma flor incrustada na paisagem -, algo a que nos habituamos, que achamos normal reencontrar, como aquelas amigas que revemos num qualquer passeio matinal de domingo, após uns meses sem nos termos visto. uma presença agradável, motivo para sorrisos sinceros, mas não para sentimentos intensos - a normalidade pode também ser isto, bem o sabemos. há, no entanto, um dia em que qualquer coisa fica em nós, como uma semente que, invisivelmente, germina. lembras-te aqui daquela tua recorrente expressão: 'quando as coisas mudaram, já tudo tinha mudado'. é mais ou menos isso: os processos interiores são feitos de subtilezas. e têm essa característica maravilhosa que é surpreenderem. às vezes, com doçura; outras tantas, de modo fulminante. a violência pode ser doce e fulminante, atenta bem. mas, dizia-te, o segredo são os rostos. os rostos que te perseguem noite dentro, quando as horas são séculos intermináveis. os rostos das pequenas atrás do balcões de circunstância. o sorriso metafórico das donzelas. o riso aberto que tudo esmaga, vórtice centrípeto que tudo absorve em seu redor. as curvas do rosto. a forma dos lábios. os olhos, os olhos, os olhos. como na canção em que o segredo está todo, e sempre são quase sete minutos de canção, naquelas palavas finais: 'os olhos de avelã'. dizia-te: atentamos no caso daquela 'chica' a que nunca deste grande valor. agora, de súbito, num filmezinho que não é uma obra-prima ela aparece-te. e o que recordas dela não é o corpo - o pudor do olhar está sempre em ti -, não é o modo algo histriónico como fala, não é aquele pózinho de 'star' que ela arrasta. não. o que te envolve, o que ficou a germinar bem dentro de ti, é aquele rosto. o rosto e aquele olhar. abismo de fragilidade e poço sem fundo, beleza inarticulável. o rosto e o olhar. e eu, sentado, numa fila discreta do cinema, embasbacado e pensando:

'como seria amar-te?'.

pensando melhor: pergunta retórica. às vezes, sabes, são as melhores. as mais sinceras e mais justas. as mais necessárias, também. as únicas que fazem sonhar.