27 dezembro 2010


'em cada homem uma centelha divina', já não sei quem disse isto, mas isto vale por si, tenha sido dito pela dona maria do terceiro esquerdo ou pelo sr. joaquim que me corta milimetricamente os bifes que quase não como. isso. isso e aqueloutra expressão que me vem à cebeça e que nos diz a todos (sim, a ti também) que 'cada dia que finda é uma perda irreparável'. que querem, sonhos de natal encharcados em óleo, à mistura com exaustivos balanços do ano, podem resultar nisto. saltamos do canto lírico para o mais desvairado free jazz, de big combos lisboetas e improváveis, de barrocas e majestosas obras de hip hop para o augie march de saul bellow - somos compulsivos na elaboração de notas mentais sobre o que não podemos perder de tudo aquilo que já perdemos. somos assim e, no fundo, gostamos. isso. isso e livros, um disparate de livros lidos, um disparate de livros por ler e que queremos ler, um disparate ainda maior de livros que não queremos ler e de vidas que não queremos viver. free flow, alguém falou em free flow? ora, portanto, é natal. ou melhor, é, apesar de tudo e apesar de tanto, Natal. não fomos ver os concertos de dia 25 - e prometiam. não fomos ver nada, este ano, optámos pela mostly home based therapy - ou quase. isto é o quê, este textinho ridículo? palavras, palavras, parole, parole, como na italiana canção. entretanto, estão quase a acabar os jantares e almoços de natal, essa empreitada própria da saison, como alguma fruta. cada vez menos, uma e outra, graças a estufas e às redes sociais - cada um que faça o emparelhamento que mais lhe convier. voltamos então a nova iorque, e à milão da alta burguesia industrial, tão bem captada pele lente do rapaz que filmou 'eu sou o amor', um dos filmes do meu ano. isso. isso e escrever, ser diletante, ser dilerante. dilacerante - não, agora não. listas. tanto por ver. teatro. performance. dança. música clássica historicamente informada. música clássica historicamente desinformada. livros de poesia. livros de ficção. ensaios. livros de não-ficção de mil e um géneros. jazz. discos pop-rock internacionais. discos do ano nacionais. concertos ao vivo. ópera e canto lírico. o que não vimos, o que não lemos, o que não soubemos. o que não vivemos. o beijo roubado às duas da madrugada que não aconteceu. a calma clarividente que não ocorreu. a coragem de avançar que não sucedeu. as noites namorando os teus olhos que não caíram - ou que não chegaram a amanhecer, quanto mais a amadurecer. e tudo isto e o seu contrário - que é o que a vida tem de melhor. porque foi muito, foi tanto. afinal, em 365 dias, eventualmente mais um, houve lugar para o risco e o riso, o dislate e o disparate, a ternura e a tontura, a comoção e a confusão, o sonho e o sono. sim, claro, aqui entrariam antigamente as saudades. mas agora não entram mais. antes uma aguardente de medronho do que um flash retrospectivo medonho; antes um licor imperial do que um descarrilamento interior infernal; antes um subtil sabor do que um tresloucado rubor. mas voltamos sempre às listas, aos balanços, aos ranços da memória, às partidas da história. e os vencedores do ano são: os teus lábios. tanto melhores quanto apenas imaginados. ou seja: vivos, de outra maneira. eternizados. míticos. cereja com ligeiros tons cítricos, chocolate e alfarroba, especiarias e laranjeira - ou de como na imaginação louca eles - e tu neles - são bons de qualquer maneira. ufa, menina. para quem não existe neste mundo, dás-me uma trabalheira!