30 janeiro 2012


mais flores, não, obrigado - diz ele.


a condição*

pelas avenidas
as pessoas sofrem;
elas sofrem a dormir, elas acordam
a sofrer;
até os edifícios sofrem,

as pontes
as flores sofrem
e não há salvação –
o sofrimento senta-se
o sofrimento paira

o sofrimento espera
o sofrimento é.
não perguntem por que há
bêbados
drogados
suicidas
a música é má
e o amor
e o argumento:
agora este lugar
enquanto escrevo isto
ou enquanto lês isto:
agora é o teu lugar.

charles bukowski




* tradução de manuel a. domingos


nos discos, como de resto em tudo, há a balada do cafézinho - oh lonely me - e esse território que poucos foram capazes de visitar, inventar ou recuperar.. e voltar para contar. matt elliott é desses poucos. há uns anos que vem gravando discos impossíveis de serem escutados. ou quase. anda para aí um rapaz moderno a dizer que tem o sonho de gravar "um disco líquido". nada contra. já matt elliott não deve ter sonho nenhum, a não ser sobreviver à sua própria música - navios que se afundam, enquanto fantasmas dançam. e nós ali. e nós aqui. ai de nós, matt, ai de nós.

25 janeiro 2012




eu ligava então o computador e repetia desoladamente o gesto de sempre, procurando no génio alheio uma ponta de redenção para o meu esforçado poema. a primavera anunciava-se lá fora, contornando esquiva a esguia janela, mas os meus dedos não sabiam, nesses dias, procurar o pólen improvável que sempre nasce do esforço mais devotado, quase a possível terminação para quem sempre sonhou com a taluda (o contrário, infelizmente, seria todo um outro poema, com pouca cor, algum choro e decerto ranger de dentes). por entre erros de métrica e formalismos inestéticos, os dedos martelavam impiedosamente esse betão que podem ser as letras, em dias maus, quando  revelam todo o seu mau fígado e pior coração. coisas da ordem dos factos, tentava convencer-me, dedilhando o teclado e varrendo, nunca é demais dizer, o tal génio alheio, os tais que têm coisas para escrever vindas do turbilhão, do desalinho da alma, do escuro que brilha. felizes esses infelizes, escrevem coisas com estética e preceito. pior seria, tu como eu sabes bem, escrever sempre em esforço, ter algures no deserto interior um oásis em potência, mas nem arte nem ciência para o fazer florir, pelo menos em tempo útil. por isso te chamas inverno, mesmo gostando de verão, mesmo se tantos encontram o teu
lugar muito mais nos outonais campos da primavera (ou será ao contrário..?). coisas da ordem dos factos, incontornáveis tal como escrever esta palavra - ia dizer: nestes tempos. melhor seria lembrar o ruy belo e a sua famosa e solene declaração, cheia de pujante atitude, em vez da pusilânime contenção  que a vida moderna aconselha. sim, rui, também eu 'odeio este tempo detergente'. ironia biográfica, se porventura conhecessem quem por detrás deste matraquear esforçado displicentemente se esconde. ironia? só da mais fina. que o tempo não está para cedências ao deus menor da velocidade sem sal. e assim nos quedamos, em castelhano e tudo, que o tempo escasseia e o poema sobeja. devaneios à sexta quem os não tem? fica assim manco o poema, à falta de um encerramento condigno. como a vida que teima em equilibrar-se em menos pernas do que as que te são devidas pelo grande vendedor de ilusões. vende detergente, velocidade, ferro em brasa, coisas sem préstimo ou essencialidade. 


resta a escrita, o esforço, o resto que a ninguém aproveita, velharias civilizacionais. resta uma casa, um rosto, a distância murada para a fealdade, um nome, uma ideia louca. 

resta-te a liberdade.

23 janeiro 2012



Carta de São Paulo aos Coríntios, 1-13


if i speak in the tongues of mortals and of angels, but do not have love, i am a noisy gong or a clanging cymbal. and if i have prophetic powers, and understand all mysteries and all knowledge, and if i have all faith, so as to remove mountains, but do not have love, i am nothing. if i give away all my possessions, and if i hand over my body so that i may boast, but do not have love, i gain nothing.

love is patient; love is kind; love is not envious or boastful or arrogant or rude. it does not insist on its own way; it is not irritable or resentful; it does not rejoice in wrongdoing, but rejoices in the truth. it bears all things, believes all things, hopes all things, endures all things.

love never ends. but as for prophecies, they will come to an end; as for tongues, they will cease; as for knowledge, it will come to an end. for we know only in part, and we prophesy only in part; but when the complete comes, the partial will come to an end. when i was a child, i spoke like a child, i thought like a child, i reasoned like a child; when i became an adult, i put an end to childish ways. for now we see in a mirror, dimly, but then we will see face to face. now i know only in part; then i will know fully, even as i have been fully known. and now faith, hope, and love abide, these three; and the greatest of these is love.

18 janeiro 2012




(because you - lonely dolls - are everywhere i look)


in tribute to all things petite,
pretty and sweet
this verse i offer and greet
in desire to replete

a portrait painted from truth
but imagined to soothe
for beauty, eternal in youth
loves pity, compassion, and ruth

i stumbled out of the saloon
an evening last june
and heard a distant mournful tune
under the dyad moon

my soul, though with wine i did douse
the song did arouse
i followed, a drunken louse
unto a cardboard house

and through the window to see
a doll before me
singing to the mirror was she -
was it a plea?

her room was all dresses and bows
for a doll needs her clothes
she leaned in to breathe from a rose
and stood on her tippy-toes

with a brush made of jade and pearl
she straightened her blonde curl
i saw the sad eyes of a girl
under teardrops, aswirl

she went to her canopied bed
and laid down her head
she picked up her sheep-doll and said
something with dread

though i was too drunk to make sense
i felt her essence
and turned to leave this pretense
for night, black and immense

i remember that singing doll
and her grievous call
as a little reminder to us all
whose sadness wasn't so small

17 janeiro 2012

13 janeiro 2012





before i close the door
i need to hear you say goodbye
baby won't you change your mind?




12 janeiro 2012




queria de ti a estrela maior e as tuas sementes de verão no céu da minha boca. o azul dos teus olhos são policromias por inventar que fazem do inverno uma outra sagração da primavera. cansado de escolher caminhos, os meus olhos elevaram-se e repousaram na quinta nuvem. cravado na porta, o bilhetinho dizia: todos os meus reinos por um beijo. escondido por entre o terceiro verso da última página e o pó da contracapa, enganava o tempo como aqueloutro ladrão de corações preparava o assalto do século: roubar-se a si mesmo, sem testemunhas. de pés descalços sobre a lâmina, o equilibrista sabia ter de um lado o sublime e do outro o ridículo - para onde cairá? escuta-me: as flores de fevereiro descerão dos campos e encherão as casas de limão, laranja, lima, tangerina. todos sabemos que o que queima não é o fogo, mas a perspectiva, a partir desse lugar: desertos desolados, um mar de gelo. nesses dias, escrevia como vivia: canetas de aparo fino e grossas lágrimas de tinta. no retrovisor, o inverno; no horizonte, o verão; no coração, a primavera - isso é que era. mas não era. rio em vez de sangue; mar em lugar de pele; vagabundo e exangue - assim era o coração dele. um dia, farei do inverno uma outra coisa qualquer - disse-lhe ele, enquanto se afastava de guarda-chuva semi-aberto e de coração semi-cerrado. um dia, repetiu baixinho, já só para ele. lá fora, a chuva confundia-se com as lágrimas, como sempre acontece nas histórias sem moral. no seu despojamento, era feliz. tinha a beleza como ópio. cantava, madrugada fora, todas as rosas mortas e outras dores em flor. ou sonhava sonhos que metiam o comércio tradicional e afectos defeituosos. sonhava também uma casa futura, uma coisa dourada, uma espécie de elegância extrema a esmagar o nada. como um animal que pensa e sente, numa jukebox revisitada. este febril eterno coração descendo, rente à noite, uma alameda de sonhos queimados. e tudo o resto era amor.

10 janeiro 2012



(a)o rapaz que se lembrava das suas vidas futuras


o ensaísta e filósofo Adorno disse um dia que 'a poesia não é mais possível, depois de Auschwitz'.

quem perceber isto, andará próximo de perceber o que me leva a interromper este espaço, de onde me vêm os soluços e os espasmos, quando me sento diante do teclado. de onde vem o deserto negro que toma conta de mim, e que Antonioni teria decerto filmado com o seu gélido - e tão profundamente humano - virtuosismo. por agora, as pontas dos dedos são como imprestáveis rosas mortas. as flores morreram, às mãos do inverno, quando era suposto ser ao contrário. quem se mete com a natureza, leva. quem desafia o tempo, leva. quem se pretende omnipotente, leva. descrente, serás arrasado - rugiram os céus. e cumpriu-se. mas, contudo, ainda e sempre, seremos um memento,  um monumento, um cenotáfio, ao mais desmesurado e transbordante amor. a isto, à nossa vida, à nossa amizade, se chamou a true labour of true love. tal como a este espaço, o flores de inverno, que acabará em breve, como simbólico toque de finados, como semiótico requiem, como ícone vívido e vivo a tudo aquilo que foste, a tudo aquilo que fui, a tudo aquilo que, juntos, fomos. que somos. que sempre seremos.

06 janeiro 2012

credit: gleb garanich, for reuters

a poem in dark black


the last Georgian man cries
over the body of his last relative,
in the Georgian town of Gori.


another way to say:
i love you
, brother of mine.
yesterday and today
and for all the upcoming time.




[nota: este é, muito provavelmente, o antepenúltimo post que será publicado no flores de inverno. o penúltimo custar-me-á muito a escrever, pelo que vos peço algum tempo de espera. quanto ao último, esse, pelo contrário, será quase instantâneo - um nano-segundo, se tanto, bastará para (me) desligar deste nosso/vosso mundo. forever and ever, amen - como dizem os rapazes lá dos states. é a vida, isso. nem mais, nem menos. e a vida, como bem sabemos, custa a todos..]


03 janeiro 2012




) in progress (

01 janeiro 2012




foste a flor de laranjeira,
sempre visível a meus olhos,
insistindo contra as minhas moribundas narinas.

foste delícia,
amparo e embalo,
em milhões de biliões de segundos.

e a cada segundo,
foste vida e esperança e luz,
e, inteirinho, foste
todo o meu mundo.


(do you know how much i love you, my best unbeaten brother?)